Metade

Ele a acorda com um sussurro no ouvido. Está nervoso e cochicha baixo, como se temesse tudo. Ele a acalma, antes que grite, e diz cheio de medo:

“Há um barulho na cozinha, amor. Está ouvindo? Fale mais baixo, pode ser alguém que nos ouça. Está ouvindo agora? Então fique bem quietinha aí, só escute. Há um barulho na cozinha, amor.”

O silêncio se adensa, o ar parece aparado. O silêncio assobia no ouvido, como uma broca giratória penetrando até o cérebro, um chiado de estática, como se a alma estivesse fora do ar.

Quem quer que esteja na cozinha percebeu que está sendo percebido e parou com o ruído. O marido continua deitado, imperceptivelmente puxando as cobertas para o peito, no escuro.

“Parece que… ouvi alguma coisa”.

“Tem alguém lá na cozinha, querida”.

Os segundos gotejam grossos, todas as paredes parecem apertar o espaço, como os dedos de uma mão monstruosa e implacável, no escuro.

“Vai lá ver o que é?”

“Está louca!? Pode ser um… bandido”.

“Ou pode não ser nada. Vai lá ver o que é, ou não vamos conseguir dormir mais”.

“Mas…”

“Vai lá, homem. Honre esse troço que tem no meio das pernas”.

O marido deu de ombros, derrotado, conformado. Não adiantava mesmo discutir naquela hora. Cabia-lhe, como macho da casa, enfrentar o desconhecido. Igualdade de direitos, ninguém lembra na hora do perigo.

Levantou-se como de um túmulo. Sair de dentro do calor das cobertas foi agônico. Caçou os chinelos, mas acabou mancando, descalço, pelo piso, deixando cada pé tocar o taco com remorso, e saudades do calor da cama.

Abriu a porta preparado para dar de cara com um machado e render o espírito. Não havia nada além daquela escuridão horrível no corredor. Poderia haver ali qualquer coisa, desde aranhas gigantescas até ninjas assassinos, de olhos fechados, escondendo o brilho de uma adaga na dobra de um quimono negro.

Normalmente acionaria o interruptor e uma festa de luz encharcaria tudo, revelando os segredos do breu absoluto. Mas não ousava fazer isso, não. Poderia haver mesmo algum ninja. Poderia haver um ladrão.

Deu dois passos. Pesados como pilares de prédios. Plantou os dedos no chão, quase marcando a madeira com um beliscão. Respirava ríspido, apertado no peito, tentando conservar o silêncio. Se houvesse alguma coisa ali no escuro, já estaria sob mira, ou sendo calculado em calorias.

O corredor se alongava desde a porta do quarto, passando pela cozinha. Espichou o pescoço para ver além da esquina. Não havia nenhuma alteração no pano preto de sua visão. Maldita noite de lua nova. Maldito sono leve que lhe traíra daquela forma. Por que o bendito ladrão não era mais cuidadoso? Que levasse o faqueiro de prata, presente de casamento, mas que o levasse sem fazer barulho.

Abriu os ouvidos tudo quanto pôde: nenhuma lastimável nota interrompia a uniformidade do silêncio. Somente lá fora, na rua, raros carros passavam. Maldita noite de terça feira.

Por fim criou coragem. Não haveria caranguejeiras gigantescas, nem ninjas furtivos, nem ladrão. Acionou o interruptor e deixou que a luz o enxaguasse de seus medos: na cozinha irretocavelmente limpa não havia nenhum traço de movimento estranho. Nem presente nem passado.

Respirando mais leve, encostou-se à parede. Como era medroso. Pobre coitado! Não havia tarântulas nos cantos, nem executores encomendados, nem arrombadores desastrados.

Tratou de dissipar os medos restantes acendendo as luzes dos outros cômodos do apartamento. Todos vazios, arrumados, silenciosos. Nenhum livro fora de lugar na estante. Nenhuma gota de sangue em nenhum tapete. Nenhuma faca esquecida à vista. Nenhum vivente que justificasse que se sonho tivesse sido espantado.

Voltou à cozinha, encheu um copo com água do filtro e bebeu de um gole, ávido, vitorioso. “Meu Deus, como sou medroso”. Voltou ao quarto confiante, balançando a cabeça para si mesmo enquanto se recriminava.

Abriu a porta sorridente. “Querida, não era nada…”

Era o nada. Que estava na cama ao seu lado. Não havia ninguém ali tampouco. Sob a luz morta da lâmpada fluorescente as cortinas não esboçavam nenhum movimento. Metade da cama, intocada, lhe contava que algo realmente estava errado. Nele.

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