No Açougue das Ideias

Começo a semana pensativo sobre muitos problemas pessoais, entre os quais um resfriado desses de ficção científica, e me deparo subitamente com mais chorumelas sobre como os escritores nacionais, tadinhos, são maltratados pelos leitores nacionais. O tema não é novo e nem é simples, o que é simples é a constatação de que muitas lágrimas já foram choradas nesse velório e ninguém enterra o defunto. Nem pretendo eu, não hoje, mas começo a “dar uns toques” às carpideiras de que é hora de fechar o caixão.

Quem me chamou a atenção para o caso foi o colega Thiago Rulius, do blog Papo Livro, por sua vez citando uma crônica de Victor Schulde e Raphael Montes, publicada no Jornal do Brasil, um blogue de notícias que herda o nome de um falecido jornal.

Bem, diz o Victor, que escreve livros infanto-juvenis (mas não crônicas de jornal, diga-se), que presenciou uma cena em certa livraria, na qual uma potencial compradora de livros fez cara de decepção ao descobrir que uma obra pela qual estivera interessada fora escrita por um autor nacional. A crônica em questão é um desses textos que concentram tudo o que têm a dizer no primeiro parágrafo, tornando supérflua cada letra posterior. O tal parágrafo diz o seguinte, com grifos meus (leiam o parágrafo prestando atenção aos trechos destacados).

Semana passada, fui abordado em uma livraria do centro do Rio por uma moça que queria ajuda na escolha de um livro de suspense ou de aventura. Entre os lançamentos, recomendei A noite maldita (ed. Novo Século), do André Vianco, e Fios de prata (selo Fantasy), do Raphael Draccon. A moça estava bastante entusiasmada com as indicações até ler a biografia dos autores. Sua expressão mudou subitamente e ela largou os livros com um vigoroso “ai, autor brasileiro não, né?”. Perguntei qual era o problema e ela se defendeu, dizendo que o livro não era para ela e que “dar de presente livro nacional pega mal, né?”. Sem muita paciência, me afastei, mas fiquei observando quando ela pescou um Harlan Coben na prateleira e enfiou-se na fila para pagar.

Que tipo de pessoa aborda um desconhecido em uma livraria pedindo indicações de livros para comprar? Certamente uma pessoa sem noção das coisas, visto que os vendedores estão lá exatamente para isso. Uma pessoa só pede ajuda a alguém conhecido ou a alguém que pareça estar lá para isso. Ou a moça em questão conhecia o autor pessoalmente ou ela o o achou com cara de vendedor de livraria ou ela é uma sem noção. Voto no item “c”.

O próprio autor, ao final, confessa ter ficado sem muita paciência quando suas indicações foram rejeitadas, embora eu aposte que ele ficou mais ofendido pela afirmativa de que “dar de presente livro nacional pega mal”. Mas se você não tem paciência para enfrentar esses obstáculos, como pode esperar que as pessoas o entendam e valorizem? Não se trata aqui de implorar, pois isso o escritor nacional estereotipado já faz até demais. Trata-se de ouvir, para entender, porque somente conhecendo é possível reagir. Mas o autor preferiu ficar “sem paciência” e, em vez de conversar com a potencial leitora e tentar vencer sua resistência, preferiu fazer aquilo que o típico autor nacional adora fazer: reclamar com outros autores nacionais.

Dois dias depois, participei de uma mesa de debates com autores de literatura nacional no monumento Estácio de Sá. O evento estava cheio e o entusiasmo dos leitores em ter contato direto com autores era evidente. Diante de episódios tão díspares, foi inevitável a pergunta: por que brasileiro não lê brasileiros? Especifico: por que brasileiro não lê brasileiros contemporâneos?

Coerência não é o forte dos dois autores deste artigo. Se o evento estava cheio e o entusiasmo dos leitores era tão grande, como ainda cabe a pergunta sobre por que o brasileiro não lê brasileiros contemporâneos. Algo não se encaixa neste raciocínio: ou o brasileiro lê, sim, autores brasileiros contemporâneos, ou não os lê. Se não há interesse pela literatura nacional, então por que estaria cheio um evento de autores nacionais? Há três respostas possíveis: Ou o interesse existe, mas não é atendido pela massa dos autores contemporâneos, ou o evento estava cheio de outros autores apertando reciprocamente as mãos, ou o evento estava “cheio” porque o local era minúsculo, tornando o evento em si irrelevante.

Estas hipóteses não são investigadas pelo texto. Suspeito que pouco sejam investigadas pelo típico autor nacional. Afinal, ele não tem paciência com quem o rejeita inicialmente, gosta de frequentar pequenos ambientes controlados onde encontra um público cativo e entusiasmado.

Mais adiante se afirma: André Vianco, por exemplo, chegou na marca de um milhão de exemplares com suas histórias de vampiro – tema bastante explorado em obras estrangeiras também.

O autor poderia ter mencionado Zibia Gasparetto, Paulo Coelho, Chico Buarque e vários autores de não-ficção. Então é claro que o autor nacional vende. O pressuposto do texto é intrinsecamente falho: não há necessidade de argumentar sobre um ponto que o próprio texto evidencia falso.

Mas se o autor nacional vende, a ponto de se tornar best-seller, como Paul Rabbit, porque a contínua chorumela do autor nacional sobre o desinteresse do público pelo livro nacional? Não será que certos autores nacionais não vendem porque não escrevem aquilo que o público quer ler? Será obrigatório escrever e vender aquilo que o público quer ler? Será que todo autor deve ser best-seller?

São muitas as perguntas para se responder, e é preciso paciência, que o autor confessa não ter muita. O que ele não entende é que o sucesso é algo difícil, que não depende só de talento e nem só de esforço. Nem todo mundo tem a sorte de se tornar best-seller antes dos trinta, como Stephen King. Além dos que nunca se tornarão, existem aqueles que ralam uma vida inteira para chegarem ao sucesso já na velhice, como George R. R. Martin. A carreira literária não é para quem já entra no ônibus procurando um assento de janela.

A rejeição do nacional não é um fenômeno específico da literatura, e portanto não há nada que nós autores possamos fazer. Por mais que participemos de mesas-redondas, oficinais, palestras, feiras e leilões, a verdade é que o povo continuará dando mais valor ao estrangeiro do que o nacional. Ainda somos um povo de mente colonizada, e isso foi reforçado nos últimos cinquenta ou sessenta anos, pela invasão das marcas multinacionais, com o beneplácito da ditadura. O autor estrangeiro é desejado pelo mesmo motivo por que o carro importado é cobiçado, o perfume francês, os vinhos europeus, o uísque escocês, a vodca russa. Os Estados Unidos são a nação dominante no mundo, então a língua de lá, o inglês, está para a cultura literária da mesma forma que a vodca russa está para o Conhaque de Alcatrão de São João da Barra. Ter o estrangeiro é mostra de status. Quem tem dinheiro no bolso, mas pouca noção na cabeça (como parece ser o caso da moça da livraria) não quer um objeto para dele usufruir, mas para o ostentar.

A ostentação é a chave. Não se ostenta um autor obscuro, por mais que gostemos do livro. Ostenta-se o autor cujos livros viram filmes, esses a gente quer ter na prateleira. Não há como competir contra isso: é preciso uma mudança cultural profunda, ou a paciência de tentar convencer de que o nosso livro merece um canto da atenção do freguês. Sem paciência é natural que a moça vá comprar um livro qualquer que tenha nome de estrangeiro na capa (e muito autor nacional mutreteiro trata de arranjar um pseudônimo pseudogringo para isso mesmo).

Pós escrito maldoso, à la Millôr: Mestre, confio em ti, mas não em tua obra. Que autor é esse que precisa de ajuda para fazer uma crônica de jornal?.

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