Tradução: Vulthoom (C.A. Smith)

Ao observador distraído poderia parecer que Bob Haines e Paul Septimus Chanler tinham pouco em comum, a não ser o dilema de estarem abandonados sem recursos em um planeta estranho.

Haines, terceiro piloto assistente de um cruzador do éter, tinha sido acusado de insubordinação por seus superiores e sido deixado para trás em Ignarh, a metrópole comercial de Marte e porto de seu tráfego espacial. A acusação contra ele era somente um caso de rancor pessoal, mas até então não tivera sucesso em achar outro engajamento e o salário de um mês que lhe fora pago na despedida tinha sido devorado com uma espantosa rapidez pelos preços extorsivos do Hotel Telúrico.

Chanler, escritor profissional de ficção interplanetária, viajara a Marte para for­ti­ficar seu talento ima­ginativo com uma sólida base de observação e experiência. Seu dinheiro aca­bara nas primeiras semanas e suprimentos adicionais, esperados de seu editor, ainda não haviam chegado.

Os dois homens, a não ser por suas desventuras, tinham em comum somente uma curiosidade ili­mitada por todas as coisas marcianas. Sua sede pelo exótico e sua tendência a perambular por luga­res normalmente evitados pelos terráqueos lhes haviam aproximado apesar das óbvias diferenças de temperamento e os haviam feito amigos imediatos.

Tentando esquecer suas preocupações, haviam passado o dia anterior no labirinto estranha­mente amontoado e agrupado da Velha Ignarh, chamada pelos marcianos de Ignar-Vath, no lado ori­ental do grande Canal Yahan. Retornando ao entardecer, e seguindo a estrada de mármore roxo ao longo da torrente, eles já haviam quase chegado a ponte de quilômetro e meio que os levaria de volta à cidade moderna, Ignar-Luth, onde estavam os consulados terrestres, os escritórios das trans­por­ta­doras e os hotéis.

Era a hora marciana de adoração, quando os Aihais se juntam em seus templos sem teto a implo­rar o retorno do sol que se vai. Como o vibrar de pulsações metálicas e febris, o som de inu­meráveis e incessantes gongos penetrava o ar rarefeito. As ruas incrivelmente tortuosas estavam quase vazias e apenas algumas barcaças, com imensas velas romboidais pintadas de malva e escarlate, se arras­tavam daqui para lá nas sombrias águas verdes.

A luz diminuiu com visível rapidez por detrás das torres rombudas e das pirâmides angulosas de Ignar-Luth. O calafrio da noite próxima começou a invadir as sombras dos grandes relógios solares que seguiam o canal a intervalos regulares. Os clangores queixosos dos gongos morreram de uma vez em Ignar-Vath e restou um silêncio estranhamente sussurrante. Os edifícios da cidade ime­mo­rial pareciam enormes sob o céu de escura esmeralda que já estava pontilhado de estrelas geladas.

Uma mescla de odores exóticos irreconhecíveis soprava pelo crepúsculo. O perfume cheirava a mistérios alienígenas, excitando e perturbando os terráqueos, que ficaram silenciosos ao se apro­xi­ma­rem da ponde, sentindo a opressão de um sentimento acabrunhante que fechava de todos os lados na escuridão que se aprofundava. Mais agudamente do que durante o dia, eles perceberam as respirações contidas e os movimentos tortuosos e discretos de uma vida sempre inescrutável pelos filhos de outros planetas. A imensidade entre a Terra e Marte fora atravessada, mas quem poderia cruzar o abismo evolucionário entre o terráqueo e o marciano?

O povo era bastante amigável a seu modo, taciturnamente. Haviam tolerado a intromissão dos ter­rá­queos e permitido o comércio entre os mundos. Suas linguagens haviam sido decifradas e sua his­tória, estudada por sábios terrestres. Mas parecia que não poderia haver nenhum intercâmbio real de ideias. Sua civilização envelhecera complexamente diversa desde antes do afundamento da Lemú­ria; suas ciências, artes e religiões eram velhas de uma idade inconcebível e até mesmo o mais simples dos costumes era o fruto de forças e condições alienígenas.

Naquele momento, enfrentando a precariedade de sua situação, Haines e Chanler sentiram um verdadeiro terror do mundo desconhecido que os cercava com sua incomensurável antiguidade.

Apressaram o passo. O pavimento amplo que bordejava o canal parecia deserto e a ponte leve e sem gradil era propriamente guardada apenas pelas dez colossais estátuas de heróis marcianos que se erguiam em atitudes belicosas diante do começo do primeiro trecho suspenso.

Os terráqueos se assustaram um tanto quando uma figura viva, pouco menos gigantesca que as ima­gens de escultura, se destacou das sombras profundas e avançou até eles em poderosos saltos.

A figura, com quase três metros de altura, tinha quase um metro de altura a mais que a média dos Aihai, mas apresentava a conformação familiar de um peito massivo, protuberante e membros ossu­dos, com múltiplas articulações. A cabeça possuía orelhas protuberantes e narinas cavernosas que se alargavam e contraíam visivelmente na penumbra. Os olhos estavam perdidos em órbitas profun­das, totalmente invisíveis a não ser por minúsculas cintilações avermelhadas que pareciam queimar suspensas nos buracos de uma caveira. De acordo com os costumes nativos, este bizarro persona­gem estava totalmente nu, mas uma espécie de colar em torno do pescoço — um arame achatado feito de prata batida — indicava que era o servo de algum senhor nobre.

Haines e Chanler ficaram estupefatos por nunca terem visto antes um marciano de estatura tão pro­digiosa. A aparição desejava interceptá-los, isto era claro. Pausou diante deles sobre o pavimento de mármore maciço. Eles ficaram ainda mais maravilhados pela voz, estranhamente grave e reverbe­rante como a de uma enorme rã, com que ele começou a se dirigir a eles. Apesar do tom intermina­velmente gutural e da lentidão na pronúncia de certas vogais e consoantes, eles perceberam que as palavras pertenciam a uma língua humana.

— O meu senhor os convoca — bramiu o colosso. Seus apuros são conhecidos dele. Ele os ajudará generosamente, em troca de um certo serviço que lhe podem prestar. Venham comigo.

— Isto me parece categórico — murmurou Haines. Devemos ir? Provavelmente é algum caridoso príncipe Aihai que ficou sabendo de nossas circunstâncias prejudicadas. Qual será o jogo?

— Sugiro que sigamos o guia — disse Chanler, ansiosamente. Sua proposta soa como o primeiro capítulo de um mistério.
— Tudo bem — disse Haines ao imenso gigante. Leve-nos ao seu senhor.

Com saltos moderados para seguirem os passos dos terráqueos, o colosso os levou da ponte guar­dada pelos heróis em direção à escuridão roxa-esverdeada que inundara Ignar-Vath. Além do pavi­mento se abria uma viela que parecia uma caverna de boca alta entre mansões sem luz e armazéns cujos largos balcões e telhados salientes quase se encontravam no ar. A viela estava deserta e o Aihai se moveu como uma sombra crescida em meio às trevas e se deteve como um fantasma diante de uma porta profunda e alta. Parados sobre os calcanhares, Chanler e Haines perceberam o resvalar estridente de metais, produzido pela porta que se abria, como todas as portas marcianas, puxada para cima, à maneira de uma portinhola medieval. Seu guia foi delineado pela luz amare­lada que se derramava dos relevos em minerais radioativos que enfeitavam as paredes e o teto de uma antecâ­mara circular. Ele os precedeu, conforme o costume, e seguindo-o, perceberam que o lugar estava desocupado. A porta desceu por detrás deles sem nenhuma ação ou manipulação aparente.

Sobreveio a Chandler, contemplando a câmara sem janelas, aquele alarma indefinível que se sente às vezes em um espaço trancado. As circunstâncias não pareciam dar razão a qualquer percepção de perigo ou traição, mas ele foi instantaneamente preenchido por uma vontade irrefreável de fugir.

Haines, por sua vez, se perguntava com certa perplexidade por que a porta interna estava cerrada e por que o senhor da casa ainda não aparecera para receber-lhes. De alguma forma, a casa lhe cau­sava a impressão de ser desabitada. Havia algo vazio e desolado no silêncio que os cercava.

O Aihai, de pé no centro daquele cômodo simples e sem mobília, tinha volta sua face como se fosse se dirigir aos terráqueos. Seus olhos brilhavam inescrutavelmente em suas profundas órbitas, sua boca se abriu, mostrando duplas fileiras de dentes protuberantes. Mas nenhum som pareceu sair de seus lábios quando se mexeram e as notas que ele emitiu certamente pertenciam à escala dos ultrassons, além da audição humana, de que a voz marciana é capaz. Sem dúvida o mecanismo da porta tinha funcionado movido por entonações semelhantes, e então, como em resposta, todo o chão da câmara, esculpido em metal escuro e maciço, começou a descer devagar, como se caísse dentro de um imenso poço. Haines e Chanler se assustaram, viram as luzes amareladas recuarem sobre suas cabeças. Os dois, juntos do gigante, estavam descendo em direção a sombras e escuri­dão, por uma passagem larga e circular. Havia um incessante arranhar e estalar de metal, dando-lhes arrelia aos dentes por causa do tom insuportável.

Como uma distante constelação de estrelinhas amarelas, as luzes ficaram apagadas e pequenas sobre eles. Mas sua descida continuava e não podiam mais ver suas faces, ou a do Aihai, na escu­ridão ebúrnea por que passavam. Haines e Chanler foram acometidos por mil dúvidas e suspeitas e começaram a considerar se não tinham sido um tanto apressados em aceitar o convite do Aihai.

— Aonde está nos levando? — perguntou Haines bruscamente. O seu senhor vive no subterrâneo?

— Vamos ao meu senhor — respondeu o marciano com uma decisão algo críptica. Ele os espera.

A constelação se reduzira a uma estrela solitária, diminuíra e desaparecera na noite do infinito. Havia uma sensação de profundidade irremediável como se tivessem chegado ao próprio núcleo daquele mundo alienígena. A estranheza de sua situação encheu os terráqueos de uma inquietude crescente. Eles tinham se comprometido com um mistério sem pistas que começava a ter cheiro de ameaça e perigo. Nada se podia saber de seu guita. Nenhum recuo era possível. E estavam ambos desarmados.

Os estalos estridentes do metal ficaram mais lentos e diminuíram até um gemido sombrio. Os terrá­queos foram ofuscados pelo brilho rubro que irrompeu sobre eles através de um círculo de estreitos pilares que substituíra as paredes do poço. Um instante depois, enquanto desciam pela inundação de luz, o chão sob eles estacionou. Perceberam, então, que e tornara parte do chão de uma grande caverna iluminada por hemisférios cor de carmim inseridos no teto. A caverna era circular, com pas­sagens que se ramificavam em todas as direções, como os raios de uma roda a partir do eixo. Muitos marcianos, nenhum menos gigantesco que o guia, passavam apressadamente daqui para lá, como se movidos por objetivos enigmáticos. Os clangores estranhos de máquinas escondidas, estrondosos ou amortecidos, vibravam no ar, reverberavam no chão que tremia.

— Em que você acha que nos metemos? — murmurou Chanler. Devemos estar muitos quilômetros abaixo da superfície. Nunca ouvi falar de nada assim, a não ser em certos antigos mitos Aihai. Este lugar pode ser Ravormos, o mundo subterrâneo de Marte, onde Vulthoom, o deus maligno, dorme por mil anos entre seus adoradores.

O guia os ouvira.

— Vocês vieram a Ravormos — respondeu portentosamente. Vulthoom está desperto e não vol­tará a dormir por outros mil anos. Ele é quem os convocou e eu os levo agora à câmara de audiências.

3 thoughts on “Tradução: Vulthoom (C.A. Smith)

  1. Vulthoom – Clark Asthon Smith | Leituras Paralelas

  2. Parabéns pela tradução!
    Sei o quanto é difícil traduzir, pois também me enveredo por esses caminhos tortuosos traduzindo contos e livros pouco conhecidos ou ignorados na nossa língua inculta e bela.
    Já traduzi Metropolis, algumas coisas de Phillip K. Dick e atualmente estou concluindo a tradução de A Desagradável Profissão de Jonathan Hoag de Robert A. Heinlein.
    Bom trabalho, e continue assim! Lembre-se que sempre existirá alguém que ficará muito agradecido e será muito beneficiado com seu esforço!

  3. Vulthoom – Clark Ashton Smith « Exilado dos livros

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