O Baile do Cemitério

Os dois policiais vinham pela rua a pé, as pernas bamboleantes de cansaço, as vistas turvas de sono às três da manhã, torcendo para que nenhuma coisa acontecesse, pudessem chegar à delegacia, tomar um chá quente e ficar por uma hora ou duas com as pernas enroladas em um cobertor. Nada acontecia na cidade, não era preciso aquela preciosidade que o delegado ordenava: patrulhar pelas ruas!

— É como ser vigia de cemitério — protestou o Cabo Fabrício.

Nem bem o disse os dois ouviram um berro na direção do Morro da Formiga, último lugar da cidade na direção da terra das flores e das velas.

— Fabim, o que foi isso?

— Uma prova de que vida de polícia é uma merda.

E assim os dois infelizes polícias, no frio daquela madrugada de sábado de junho de 1962, se afastaram dos últimos quatrocentos metros que os separavam dos confortos da delegacia e subiram o Morro da Formiga para ver quem era o insolente que gritava àquela hora, correndo o risco de acordar até os pacatos habitantes da parte mais alta do morro.

— * —

A lua começava a subir de dentro do horizonte trazendo aquela luz fria e líquida que apaga o dia definitivamente. Do outro lado do céu o sol mergulhava entre ruivas, uma estranha mancha que encolhia em vez de se espalhar, enquanto brotavam estrelas do céu, nos buracos entre as nuvens.

Um cavalo chegava à cidade, vindo pela solitária estrada da serra, marchando com elegância e ressoando cansaço pelas narinas. Na esquina da praça o viajante desceu da montaria, amarrou o cabresto em uma viga de madeira ali posta para isso mesmo e deixou um pagamento com o dono da venda, para que tomasse conta do animal e lhe desse água.

— Volto depois do baile.

— Baile?

— O baile que tem hoje na cidade. Onde é?

— Amigo, não temos nenhum baile hoje, não que eu saiba.

— Não posso ter vindo de tão longe para voltar assim. Essa cidade tem que ter algum lugar onde se possa dançar e namorar numa noite de sábado. Em último caso tem pelo menos a zona.

— O delegado fechou, as putas estava tudo doente, tinha um monte de problema lá. Aliás, melhor nem falar nisso em voz alta. O novo delegado é um tirano, gosta de prender todo tipo de gente que invente de fazer o que ele não goste.

— Com a polícia eu me entendo. O que eu não entendo é como uma cidade dessas não tem um baile num sábado.

— Dá uma vorta por aí, então. Poder ter algum numa rua de canto, e eu não ’tô sabendo.

— * —

Jacinto Peres escutou o gemido da sanfona e se benzeu. “In nomine Patri, Filii et Spiriti Sancti, Amen”. O velho coveiro se lembrou dos bons tempos de moço e até teve vontade de ir atrás de alguma saia, mas o inverno tinha se deitado em seus ossos, arrancando qualquer vontade de deitar com moças ou vadias. De repente a cama quente lhe daria mais conforto que uma carne flácida que sua virilidade vacilante não contentaria. “Omnia tempus habent, et suis spatiis transeunt universa sub caelo.”

Desdobrou o cobertor e preparava-se para mergulhar nos braços macios da noite quando ouviu os estalos de botas de sola dura subindo pela rua quase vazia. Passos de polícia, ao que parecia. Foi à janela e espiou pela greta: não era. Pelo meio da rua calçada de pedras chatas subia um homem alto, vestindo um sobretudo cinza-rato e um chapéu amassado, calçado de botas pretas de salto de madeira e biqueira de metal. O desconhecido seguia o gemido da sanfona.

— * —

O grito se repetiu. Era de homem, certamente.

— Vamos mais depressinha, soldado, acho que temos que salvar uma alma.

— Ou pelo menos um par de bagos.

E assim os dois polícias esticaram os passos, já de cassetetes à mão, e subiram pela rua calçada de paralelepípedos gastos.

— * —

O estranho chegou à porta. A sanfona fugia pelas gretas, uma luz vacilante vazava pelos vãos, e um cheiro incinerado assomou da porta quando uma portinhola se abriu, resposta a uma batida.

— Quem vem?

O estranho deu seu nome, claro, mas não me cabe aqui romper o mistério. Nomes de gente forasteira são indiferentes: que adianta saber o nome se não se sabe o dono, você ser Pedro ou Matias tanto importa, o homem não é seus documentos, mas, sim, o apelido que ganhou na escola, o xingamento de seus desafetos e o nome bobo que ganhou da namorada. Esse nome forasteiro só importa ao governo e à Igreja, e nenhum dos dois estava ali dançando ao toque da sanfona.

— Posso entrar?

A porta se abriu. O estranho entrou, pendurando sobretudo e chapéu.

— * —

Os polícias chegaram na esquina e olharam em volta. O silêncio parecia ter medrado do cemitério até ali. Um gato passou pelo telhado de uma casa, arqueou as costas como se visse abantesma e foi miar monstruosamente atrás de um cio mais além. E só isso contornava a quietude congelada daquela esquina onde a noite parecia largada como um pacote.

Uma porta se abriu e uma figura saiu, tocada a pontapés, mal conseguindo arrastar atrás de si um sobretudo cor de rato e um amassado chapéu. O estranho caiu amontoado ao pé dos polícias, quase desacordado. Quem o atirou tratou de fechar a porta ao ver os polícias. No minuto seguinte o defenestrado já se rastejava para tentar subir sobre os pés. Por fim a criatura se sentou. Estava pálido como quem viu uma navalha Solingen, o que é pior que a morte ou bem parecido.

— Foi Vossa Senhoria que deste esse berro? — perguntou o soldado, tentando ser respeitoso e atentando contra toda a concordância pronominal.

O estranho puxou um fôlego comprido, levou a mão ao peito enquanto estendia a outra para puxar a ponta do dólmã do cabo.

— Como vocês permitem uma coisa dessas?

— Não sei se permitimos. Primeiro nos conte que foi, pode ser?

— Chamem um padre, chamem um bispo, chamem nosso senhor Jesus Cristo! — a voz do estranho saiu desinfetada como um braço para injeção, ou pelo menos com o mesmo cheiro.

— Vamos levar esse cachaceiro inconveniente para se explicar com o delegado! — sugeriu o Cabo.

— Por amor de Deus, faz isso não, Cabo Fabriço.

— Por que não?

O soldado cochichou nos ouvidos do cabo, que sorriu e depois entrunfou a cara e por fim gargalhou e se dirigiu ao estranho, entre xingamentos que não ficam bem numa história contada dessas.

— Vai-te daqui, criatura. Pega teu cavalo e some dessa cidade por hoje. Ou vai ter que se explicar com o delegado.

O estranho se enfiou de qualquer maneira dentro das mangas do sobretudo e depois enchapelou-se.

— Boa noite.

— Vai com Deus — disse o soldado.

— E que o diabo o carregue — completou o Cabo, depois que o estranho cambaleou além da esquina.

— * —

O baile tinha luzes fracas, só candeeiros e velas. A sanfona gemia num canto e os pares dançavam aos tropeções entre as mesas e cadeiras e o bar. O recém chegado chamou a atenção das damas, causou certa inveja dos rapazes que não tinham fazendas e nem alazões.

Eram duas e meia da manhã, no relógio atrasado do forasteiro, quando alguma briga num canto resultou em riscar de faca e estalar de tambores de revólver. O grito aflito e a turma do deixa-disso se misturaram num pisoteio e num alarido e logo havia dois valentes separados por um metro de chão e cada qual agarrado por mãos de amigos e aliados, os dois, provavelmente, rezando para nenhuma mão vacilasse.

— Eu já cansei de falar, Quinzim, eu não quero ’ocê de vorta depois que ’ocê se engraçou com a Délia. Larga de ser besta e não caça briga com o Otonho, que ’ocê num ganha nada co isso.

— Diná, você tem que me perdoá.

O dono da casa apareceu no meio, também receando as navalhas e as balas, e convenceu os brigões a se desmontarem:

— Somos todos amigos, por favor. Sem navalhadas e sem tiros em minha casa.

Enquanto falava, com sua voz lenta de dar sono, carregada de ladainha, os dois brigões foram dependendo menos da providencial ação da turma do deixa disso. Por fim, deixaram as armas no chão, de onde foram apanhadas pela própria Diná, que as entregou ao dono do lugar.

Satisfeito de tê-las à mão, o proprietário proferiu a salomônica decisão:

— Agora, por favor, os cavalheiros me tenham a bondade de levar esses dois idiotas lá para os fundos e dar-lhes uma boa coça, para aprenderem a armar confusão em minha casa?

Os dois, que já pareciam mais amigos do que irmãos, deram meia volta e correram para a porta de trás, que praticamente arrebentaram em dois chutes e ganharam a rua e a vida. A turba mal teve tempo de reagir e ir atrás, o corredor estreito atalhou a tentativa.

E nisso bateram à porta da frente. O porteiro anunciou que mais gente vinha.

— Agora que o baile fica bom, gente. Vamos fazer isso aqui ferver.

O forasteiro, que assistia a tudo entre goles cavernosos de cachaça, cuspiu-a como quem encontra barata na bebida quando a porta se abriu e entraram duas moças das mais bonitas que já vira. E soltou a língua:

— Agora, sim! Que antes isso aqui só tinha mulher feia e magrela. Tava parecendo o baile do cemitério.

Um silêncio gelado agarrou todas as gargantas, menos a do estranho, que não percebeu nada errado no seu gracejo seboso.

Mas então ele sentiu algo estranho na língua, meio dormente como quando se bebe veneno. Olhou em volta, através da penumbra que se dobrava sobre tudo, seguiu o rego de luz que conduzia seu olhar até a porta, para guiar os passos das duas beldades. E quando olhou de novo, talvez pelo contraste, ou pela bebida a pregar-lhe peças, cada cara parecia emaciada, cava, baça e fria. Teve nojo de beijos dados, não se devolvem fluidos. Os olhos marejaram, a boca amargou.

— Valha me Deus, de onde que sai tanta caveira?

Um murmúrio começou a se alastrar. “Isso já é demais. Quem esse gabola pensa que é?”

Mas aí, no momento mais medonho de duas dúzias de anos, os olhos do forasteiro viram coisas mais. As duas jovens belas eram outras coisas, ainda piores, talvez, e a única coisa mais horrível que isso era estarem entre a porta e suas pernas.

— Deus do céu!

— Ponham esse insolente para fora! — gritou o dono do baile. Ele tem que aprender a não falar assim da minha mulher e da minha filha.

E assim a porta se abriu, duas botas duras se encontraram com as suas nádegas e o estranho caiu de bruços diante de dois pés pretos de botas, empoeirados, mas firmes. Quis olhar para cima, veio-lhe o sobretudo para derrubá-lo mais uma vez, e uma porta se lhe fechou por trás, como uma tampa de caixão.

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