Autores que Não Leem Ensinam o que Não Sabem

Uma das consequências da falta do hábito da leitura entre nossos autores é a falta do domínio pleno da língua portuguesa, cada vez mais tida como disciplina optativa entre os que escrevem o futuro de nossa literatura. O sucesso de autores como Paulo Coelho e Raphael Draccon, que deixam transparecer em seu texto uma imensa ignorância da gramática, da estilística e da tradição de nossa língua serve como poderoso argumento em favor da superfluidade da cultura no idioma pátrio. De repente usar o vocabulário preciso se transformou em “arcaísmo”, usar todos os tempos verbais é “pedantismo”, concordância perfeita é “preciosismo”. Para os crimes mais graves, “alguém vai revisar depois”. O problema é que a cada geração esse “alguém revisor” é, também, menos culto, e a exigência do público, cada vez mais próxima do rés do chão.

Esses autores, que leram muito pouco os nossos clássicos e que acham que a mera correção da norma culta é um “ismo”, muitas vezes têm um bom domínio de uma ou duas línguas estrangeiras (em geral o inglês) as tomam como modelo estilístico. Isso quando não são apenas monoglotas que leem péssimas traduções e que tentam seguir conselhos traduzidos, movidos pelo fascínio de uma cultura estranha que idolatram sem conhecer.

Falta a essa gente a noção extraordinária de que o português e o inglês são línguas diferentes, embora participantes da mesma família indo-europeia. Não se pode aportuguesar normas gramaticais e estilísticas do inglês, assim como não se pode anglicizar as do português. Mas é isso o que normalmente se faz, e geralmente é isso que se ensina em todo site da internet onde haja “dicas de escrita”. Como dizia o Raul, Deus explica e o diabo fica “dando uns toques”. Autores realmente relevantes dão aulas e explicações que estão além da compreensão imediata dos apressados. Autores ignorantes ficam dando “dicas” e “toques” que são meras simplificações grosseiras de coisas que foram escritas para uma outra língua, e para a índole de outro povo.

Não é preciso nem dizer que as “dicas” e os “toques” alcançam um público maior. Se a maioria das pessoas ignora a maioria das coisas, mesmo as essenciais, é natural que a maioria das pessoas acatem aquilo que lhes ofende menos a ignorância. Nada é mais desagradável a um ignorante do que confrontar-se com essa dura realidade. Mas se lhe dizemos que de fato não há nada além do horizonte de seus conhecimentos, ou que aquilo que existe fora das fronteiras curtas de sua ignorância não vale a pena saber, então fazemos um amigo. Aquilo que o ignorante mais deseja é “saber” que não precisa saber. As “dicas” e os “toques” funcionam estupendamente para isso. O resto é “textão” e “contém voltinhas”, é prolixidade inútil, é falta de capacidade de síntese. A preguiça mental é o novo esporte nacional. Ler dói.

Darei um exemplo bem claro para que se documente como está equivocada esta atitude, e maior ainda é o equívoco dos que se ofenderem, porque terão parado na polêmica inicial, sem conseguirem entender a explicação posterior. Qui habet aures audiendi audiat.

Falemos da voz passiva, esta injustiçada.

Recentemente começaram a surgir nos grupos literários dicas segundo as quais os autores deveriam evitar a voz passiva como se fosse uma praga. Portanto guardem esse artigo para futura consulta, vocês ainda se ofenderão muito com isso.

Muitos autores que propagam esse conselho não sabem o que é voz passiva. Recentemente, um autor que escreve muito bem e que eu até admiro, resolveu “cagar regra” e passou uma “dica” (olha o diabo aí) para eliminar “ao máximo” o uso da voz passiva. A dica consistia em procurar no seu texto todas as ocorrências de “tinha” e “havia” e verificar o verbo a seguir. Segundo o autor, fazendo isso seria possível identificar e eliminar até 95% dos “casos” (é uma doença?) de voz passiva. Havia até uma recomendação de que se substituísse a estrutura verbal encontrada por uma simples, como, por exemplo, “eu havia feito” por “eu fiz”. Este conselho teve muitas curtidas, algumas devidas ao fato de tal autor ser talentoso, mas muitas em razão de um fato observável de que quanto mais ignorante for um conteúdo, mais aplausos ele terá, vide o Bolsonaro que nunca me deixará mentir.

Ocorre que seguir esta “dica” não eliminaria NENHUMA ocorrência de voz passiva sequer, mas induziria o infeliz autor a tentar podar de seu texto o pretérito mais-que-perfeito composto! Vejam bem, uma dica para eliminar uma voz verbal induz o autor a trocar um tempo verbal. Em situações normais o autor que propalasse esta “dica” seria tarred and feathered (já que tanto se ama usar anglicismos, usemos este que é engraçado). Porque não se concebe, em nenhuma literatura séria, que falte um conhecimento tão básico a um autor que pretende ser modelo da língua do futuro. Mas aqui não, nós somos o país onde as grosserias gramaticais de Paulo Coelho são chamadas de “simplicidade” e a falta de cultura literária de Raphael Draccon é tida como “abordagem acessível” ao público jovem. Então ninguém estranha que uma dica sobre voz verbal atinja um tempo verbal. Afinal é tudo “verbal”.

O próprio conselho de que se deve eliminar a voz passiva é uma bestagem (tenho de usar esta palavra mais coloquial para ênfase melhor). Claro que o uso excessivo dela não é recomendável, mas até mesmo o uso excessivo de água pode fazer mal à sua saúde. Não é porque alguns morrem afogados que eu devo me submeter a um regime de sede permanente. É essencialmente estúpida a ideia de se eliminar da escrita algo que é um entre muitos recursos da língua. Quem teve a brilhante ideia de dizer que devemos amputar da língua alguns de seus aspectos?

Em inglês, esse tipo de conselho faz algum sentido porque a voz passiva não soa natural. Nas demais línguas germânicas a distinção entre atividade e passividade é muito sutil, devido à migração da desinência do particípio para um prefixo e devido à tendência destas línguas a deslocar o verbo auxiliar para o fim da frase. Em inglês, devido à influência francesa e latina, adotou-se uma voz passiva bizarra. Eliminar esta voz passiva leva o inglês de volta para suas raízes germânicas. Da mesma forma há o conselho, em inglês, de se evitar os polissílabos, porque estes são, em sua quase totalidade, latinismos ou galicismos. Então, eliminar os polissílabos significa regermanizar o inglês. Em ambos os casos a dica faz sentido e está em sintonia com a história do inglês.

Em português, a voz passiva é um recurso gramatical herdado do latim e que ainda segue as estruturas típicas das línguas românicas. Ela não soa arcaica e nem postiça.

Claro que não se deve escrever um texto com excesso de voz passiva porque isto obscurece a ação e dificulta o entendimento da sequência narrativa, mas há muitas situações nas quais a voz passiva é o único meio possível para se narrar algo. Por exemplo: existem coisas que não podem agir, somente podem ser alvo de ação. Um recibo, por exemplo, só pode “ser emitido”, ele não pode emitir a si mesmo, e sempre forçar a colocação de um sujeito para emitir o recibo é errado, aí sim, porque, na maioria das vezes, para contornar a necessidade de um uso da passiva, você teria que introduzir um personagem, o que lhe custaria mais palavras a escrever, e ao leitor mais palavras e conceitos para absorver. Existe uma razão pela qual a voz passiva existe: ela é útil. Se ela fosse inútil, não existiria. Se ela tivesse se tornado inútil, teria já desaparecido como a mesóclise, que hoje só resta na boca de poetas antiquados e presidentes pedantes.

Infelizmente, esse tipo de conselho prospera porque, como dito acima, a ilusão rasa de conhecer oferece mais conforto do que a verdade. E é justamente entre os escritores que vicejam mais vigorosamente as ilusões, o tal efeito Dunning-Krueger, eles que são especialistas nelas. E nem falemos das diversas ignorâncias que nos limitam a todos, mas que a alguns impõem também uma incapacidade de perceber essas falhas.

Este texto provavelmente atrairá mais crítica do que quaisquer “dicas” e “toques” equivocados que pululam pela internet. Mentiras fáceis de engolir sempre serão mais populares. Não existe nada mais contraproducente no mundo do que dizer a verdade, ninguém quer isso. Minta de manhã até a noite todos os dias de sua vida e você terá mais amigos, será mais amado e terá uma próspera carreira profissional. Seja sincero em tudo e você será o incômodo, o chato, o amargo, o sem-educação.

Por isso eu não costumo ter pena daqueles que são enganados por maus conselhos. Muito antes de ouvirem esse mau conselho, a vítima rejeitou vários que eram bons. Rejeitou-os porque eram muito prolixos, porque não eram simpáticos, porque falavam de dificuldades em vez de prometer paraísos. A culpa, claro, é da verdade por não ser tão bela quanto a ilusão.

One thought on “Autores que Não Leem Ensinam o que Não Sabem

  1. Gosto muito de seus tex­tos, aprendo com eles e publico na minha página ou na UBE/​MS. Uma crí­tica ape­nas: seus comen­tá­rios polí­ti­cos que inter­ca­lam alguns tex­tos; penso que não se deve mis­tu­rar! Espero ser com­pre­en­dida!

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