Modificação Corporal: Sintoma de Nossa Falta de Liberdade

Tive um incômodo *insight* esta semana, um que mudou minha maneira de ver a cultura pop atual. Já faz algum tempo que os filósofos andam a dizer que nos tornamos produtos no contexto do capitalismo; que nossas emoções, desejos, planos e medos aumentam ou diminuem (às vezes até se criam) conforme estímulos dirigidos pela propaganda de massas, que, sozinha, prova a inviabilidade da democracia, pela sua capacidade de “manufaturar o consenso”, nas palavras de Noam Chomsky.[^2]

Mas não é todo dia que podemos tomar uma noção assim abstrata e dar-lhe uma aplicação imediata na vida real. Quando encontramos uma tal correspondência podemos, subitamente, sentir aquele tremor das mãos, aquele ferver do sangue que nos convence de que estamos diante de um imenso monolito negro.

Mulher ameríndia com seu bebê em um equipamento para deformação cranial.

O *insight* a que me refiro se refere à popularização de toda forma de modificação corporal ao longo do século XX. Até que chegamos à nossa cultura de hoje, em que já está ficando estranho um jovem não ter tatuagens, nem *piercings*, nem qualquer outra forma de intervenção obsessiva em sua aparência.

Cabe dizer, logo de começo, que tatuagens e *piercings*, embora um pouco mais evidentes, não são essencialmente diferentes de formas mais tradicionais de modificação da aparência. O ser humano, desde a mais remota antiguidade, sempre praticou alguma forma de “aperfeiçoamento” do seu corpo segundo um padrão antinatural. Raspar pelos, alisar cabelos, pintar unhas, delinear olhos, tatuar a pele, afiar os dentes, deformar pés ou cabeças, inserir objetos nos lábios ou no nariz; eventualmente até mesmo mutilar pequenos pedaços do corpo (na circuncisão, tanto masculina como a feminina). Tudo isso a humanidade sempre fez e não deve ser visto como antinatural, por mais que nos pareça doloroso, desnecessário ou absurdo.[^1]

O *insight* a que me refiro não procura explicar porque esses métodos de modificação corporal são hoje tão prevalentes, porque é provável que a modificação corporal sempre tenha existido e sido bastante popular. Em vez disso ele explica porque esses métodos **não se tornaram menos populares** e até cresceram em popularidade. Sigam-me os bons.

No passado, essas modificações corporais sempre foram ditadas pelas normais sociais rígidas das civilizações. Os homens romanos da época clássica, por exemplo, apenas cortavam o cabelo à escovinha e raspavam os pelos de seus corpos. Não o faziam somente por querer, mas porque esta era a norma social que um patrício deveria seguir. Somente escravos estrangeiros teriam longas cabeleiras, torsos peludos ou tatuagens. Mesmo o hábito de usar a barba só se popularizou por causa de imperadores que a usaram — e estes só o fizeram porque queriam exibir pelagem de cor rara, como Nero, que se apresentava como *Lucius Domicius Ænobarbus* (Lúcio Domício Barba-cor-de-vinho). Se um romano livre se apresentasse tatuado, peludo, cabeludo e sujo; tal estado seria considerado uma ofensa à sua família e aos seus antepassados. Muito provavelmente ele seria morto no ato, para expiar o seu pecado contra os *lares*, os deuses de sua família. Supondo que não houvesse tatuagens, mas apenas pelagem, cabelos e sujeira, ele poderia alegar algum tipo de privação temporária e solicitar um ritual de purificação — assim salvando-se.

Outras modificações corporais foram ditadas por razões sanitárias (presume-se que a circuncisão foi inventada pelos povos do deserto para prevenir doenças decorrentes da falta de higiene) ou por uma obsessão por mostrar-se “alinígena” aos olhos do povo (como as cabeças deformadas dos maias). Outras foram forçadas nos oprimidos por caprichos estéticos dos opressores, como os “pés de lotus” das antigas chinesas ou os “pescoços de girafa” das beldades de algumas tribos da Birmânia. As tatuagens tribais dos polinésios e os botoques dos ameríndios são rituais de iniciação à vida adulta, dos quais os indivíduos não podiam escapar devido à pressão do grupo, assim como os calouros das faculdades dificilmente conseguem escapar da sanha imbecil dos trotes.

O que explica, então, que essas práticas dolorosas, frequentemente perigosas para a saúde (e aqui eu me refiro mais a certos tratamentos capilares do que a tatuagens!) e nem sempre resultantes em mais “beleza” (ainda que esse conceito seja tão relativo) continuem populares em uma cultura como a nossa, ocidental e moderna, tão liberta de opressões e tão desconstruída?

Aqui entra, com areia e sem vaselina, o meu *insight*.

Nós não vivemos em uma cultura liberta de opressões. Apenas vivemos em uma cultura *diferente* das culturas do passado. Todos os fatores que obrigavam os nativos da polinésia a se tatuarem pelo corpo todo ainda estão presentes entre nós. Ainda existem rituais de passagem que obrigam a isso e até a coisas piores. O que mudou é unicamente que a nossa cultura deixou de se monolítica, mas caracteriza-se por conter em si diversas “tribos” (oh, caramba, como esse termo é inadequado!), o que nos dá a ilusão de que podemos “optar” por uma outra conforme queiramos. Algumas tribos realmente obrigam que seus membros se tatuem, como certas gangues criminosas (procure saber da “Mara Salvatrucha”), outras querem que eles tenham cabelos grandes (metaleiros têm de ser carecas ou cabeludos, raros têm cabelo curto) e outras pedem que façam cinquenta tarefas e se matem no fim.

A opressão está em todo lugar, multiforme. Nascemos dentro de algum subgrupo e temos acesso a um determinado conjunto de “obrigações” e “interditos”, que desde cedo nos são impostos como o certo, o belo e o moral. Qualquer desvio dos padrões do grupo onde nascemos gera uma tensão que sempre traz algum tipo de custo emocional.

Para todos os demais que não estão inseridos em nenhum grupo suficientemente definido, que se julgam membros do amplo e confortável “mainstream”, vem-nos a propaganda e a moda para nos induzir a comportamentos.

Também o “mainstream” é uma tribo, também ele possui seu conjunto próprio de opressões veladas. No passado o “consenso” da sociedade exigia que as “pessoas de bem” tivessem corpos limpos e puros, cabelos bem cuidados, roupas discretas. Era a época do capitalismo industrial baseado na produção em massa. Cinquenta milhões de calças cinzas tinham de ser vendidas a alguém, e nenhuma encontraria comprador se a moda dissesse que era errado ter a mesma cor de calça que outra pessoa. Entendeu o desenho?

Esse modelo de produção começou a dar sinais de esgotamento na metade do século XX. Seu último grande esforço foi o Plano Marshall, com sua imensa reconstrução da Europa como o mais careta dos continentes. Logo a seguir a tecnologia começou a permitir a produção abaixo custo de quantidades menores. Então passou a ser possível ganhar dinheiro vendendo a diferença — e cobrando um pouco mais por isso, claro.

Como isso se relaciona com a modificação corporal? Simultaneamente à nova aceitação das cores aberrantes nas roupas, passou-se a aceitar também os estilos capilares aberrantes. Massifica-se a indústria de produtos de beleza, para que todo cabelo “rebelde” possa ser “domado” e todo cabelo “sem volume” possa ser “moldado”. Nenhum cabelo está certo. Se é crespo, faz-se escova. Se é liso, faz-se permanente. Se é preto, pinta-se de louro. Se é louro, pinta-se de preto. Simplesmente ninguém está certo, todos precisam modificar-se de alguma maneira, comprando algum produto.

As joalherias, claro, adorariam a ideia de que as pessoas usassem mais do que somente brincos nas orelhas, um em cada. Por que não incutir no povo a ideia de argolas no nariz, múltiplos brincos na mesma orelha, perfurar os mamilos para passar anéis, atravessar a língua com um prego qualquer…? Cada um desses objetos tem um preço e dá um lucro. E os que forem ricos não quererão usar porcarias: comprarão de prata e ouro, talvez com pedras. De que maneira levar isso ao “mainstream”? Entra em cena o rock rebelde, os *punks* de Malcolm McLaren, os Sex Pistols, que começaram com alfinetes de segurança nas orelhas, para semear a ideia. Dez anos depois surgiram as primeiras orelhas com múltiplos brincos. Vinte anos depois argolas e anéis por toda parte já eram visão comum.

E ninguém foi obrigado a isso, foi?

A influência da propaganda se fez de maneira sutil. Subitamente, num curto intervalo de tempo, todos os principais jogadores de futebol do mundo começarem a tatuar-se nos braços, nas regiões não cobertas pelos uniformes, a fim de fazerem propaganda de suas convicções? Logo havia programas sobre tatuadores na tevê paga, e transformaram as oficinas de tatuagem em ambientes chiques. A tatuagem seguiu o processo do *piercing* e dos tratamentos de cabelo: começou como algo “natural” de algum povo, depois uma coisa rebeldemente descontraída, então virou identidade de um grupo e logo chegou ao mainstream.

Nossa cultura continua a ser, em quase tudo, conformada por pressões que são exercidas sobre nós desde que nascemos, e não percebemos. Nossos preconceitos são construídos em nós gradualmente, e também nossas identidades de grupo. E os que são bem-sucedidos em desconstruir-se ficam isolados, peixes sem cardume, fragilizados diante da maioria inclemente que sempre tem tochas e forcados para perseguir o “monstro” quando ele aparecer. Há cinquenta anos o “monstro” era um motoqueiro tatuado que ouvia rock. Descobrir quais os monstros de hoje eu deixo como um exercício para o leitor. Um exercício com muitas respostas verdadeiras, pois nossa cultura deixou de ser monolítica e é provável que cada região tenha seu “monstro” característico.

[^1]: Nunca é demais repetir porque apenas uns oito por cento dos brasileiros conseguem interpretar textos complexos: *modificação corporal* aqui inclui tudo que interfira na aparência natural de uma pessoa. Desde simplesmente pentear os cabelos até amputar uma perna por achar bonito andar de muleta. Defini assim de maneira ampla porque eu não quero, de maneira alguma, dar a entender que esse texto se refere somente a uma forma ou outra. Pode deixar essa pedra aí no chão, garoto.
[^2]: Ainda não tem tradução em português, mas é uma obra essencial: [Manufacturing Consent](https://pt.wikipedia.org/wiki/Manufacturing_Consent).

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