Ler a Vida, Escrever a Vida

Não podemos ter uma visão elitista da arte porque vivemos em uma sociedade determinada a destruir a arte, coração do povo e luz do futuro. Somente a arte pode nos salvar, mas antes precisamos salvá-la.

O Brasil que eu conheci está morrendo e não é uma morte natural: é um assassinato. A morte do Brasil moreno e mestiço faz parte de um plano para esvaziar esse território, transformar seu povo em mera “força de trabalho” a serviço dos que virão remover a riqueza e deixar-nos com o buraco.

Nauru: um pequeno país insular da Melanésia cujo território foi destruído pela mineração de fosfato, deixando as terras imprestáveis para a agricultura. Hoje a população sobrevive da ajuda internacional.

A força de um país está em sua identidade, que se baseia em uma série de coisas — como sua arte, sua religião, suas superstições, seus hábitos etc. Toda vez que um elemento da cultura nacional fica sob ataque, todos os outros elementos também enfrentam oposição. Quando uma parte da cultura de um país é subtraída, o todo fica menos coeso e abre-se um espaço por onde não entra somente a cultura estrangeira, ocupando o vazio, mas, também, a subjugação econômica.

Você pode achar que digo besteira, mas a supressão da cultura impede a discussão dos problemas nacionais, o país passa a se enxergar de fora para dentro, através da interpretação estrangeira. Hollywood não teria feito um filme como “Tropa de Elite”, por exemplo, e nenhum autor britânico teria escrito “Cidade de Deus”.

A cultura nacional é o nosso espelho. Não pelo seu conteúdo, pois o valor do espelho não está no que reflete, mas na própria materialidade de sua existência, que é o que lhe permite refletir. Assim, por mais importante que seja a defesa do “genuinamente nacional” (seja lá o que signifique o termo), a defesa da existência do “nacional” é mais importante. Enquanto existir o “nacional”, ele pode ser “genuíno” ou não. Quando deixa de existir, não há mais possibilidade de se lutar por autenticidade alguma. Nossa opinião sobre a construção do personagem Blanka, no videogame Street Fighter, não faz a menor diferença para o japonês ou para os consumidores globalizados de cultura. Se queremos ser vistos de uma forma fiel, em vez de pasteurizada, precisamos fazer nós mesmos o nosso conteúdo. Autenticidade não é um ideal que nos ditam, o ditado é sempre fictício. Autenticidade é o que vemos no espelho quando nos olhamos nele.

Alguns dirão que precisamos ver um Brasil tradicional, outros que a “brasilidade” é uma eterna construção e que o Brasil de ontem já não está na nossa cara, por isso não o vemos quando olhamos no espelho. O que não podemos fazer é jogar fora o espelho e tentar reconhecer na cara dos outros aquilo que imaginamos que somos.

Mas o que cada um de nós pode fazer, enquanto indivíduo, para que o espelho não se quebre, para que cada um de nós tenha, ainda, o direito de se olhar nele, o que quer que enxergue ao fazê-lo? Um bom começo seria se déssemos espaço ao nosso. Vá ver aquele filme nacional, compre um disco de uma banda local, leia livros de autores brasileiros, valorize nossos destinos comuns.

Chega de abanar o rabinho de tanta felicidade por ver um personagem brasileiro em um filme gringo, por saber que J. K. Rowling localizou uma “escola de magia” em nosso país, que existem japoneses tocando samba. Tudo isso pode até ter sua importância, mas são coisas pequenas diante do que nós mesmos podemos fazer, e temos feito.

Não pense se é impossível. Vá e faça.

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