Um Faroeste Farofeiro

Francamente, eu poderia escrever uma resposta inteira só a respeito de letras ruins da Legião Urbana, um grupo que transformou a sua maior fraqueza (a lírica) na suposta marca maior de sua qualidade (Renato Russo, “o poeta do rock”). Poderei, se algum dia me pedirem, por hoje eu me limito a Faroeste Caboclo, o “hino” de uma geração que não sabia muito bem o que seria um hino.

Eu poderia começar falando das rimas pobres, das estruturas sintáticas forçadas a marteladas e das construções que não soam naturais, mas isso seria técnico demais. Meu objetivo aqui é mais simples: explicar como nada funciona, nada faz sentido e nada é gratificante nesta letra absurda que só consegue agradar a quem é distraído. Se você analisa a letra, vê que ela não liga lé com cré e se contradiz o tempo todo. Logo no começo a letra deixa claro que João de Santo Cristo nunca foi flor que se devesse cheirar:

Deixou pra trás todo o marasmo da fazenda
Só pra sentir no seu sangue o ódio que Jesus lhe deu
Quando criança só pensava em ser bandido
Ainda mais quando com um tiro de soldado o pai morreu
Era o terror da sertania onde morava
E na escola até o professor com ele aprendeu
Ia pra igreja só pra roubar o dinheiro
Que as velhinhas colocavam na caixinha do altar
Sentia mesmo que era mesmo diferente
Sentia que aquilo ali não era o seu lugar.

Com esse tipo de comportamento e ainda mais por ser um predador sexual precoce, João de Santo Cristo foi parar no único lugar adequado para um peste como esse:

Comia todas as menininhas da cidade
De tanto brincar de médico, aos doze era professor
Aos quinze, foi mandado pro o reformatório
Onde aumentou seu ódio diante de tanto terror.

Você até pode discutir se o reformatório teria sucesso em reformá-lo ou se a melhor coisa a fazer com um psicopata juvenil é mandá-lo para lá, mas não pode negar que, no contexto da canção, João de Santo Cristo teve exatamente o que mereceu. Mas o letrista parece achar que João era um excelente rapaz, uma vítima inocente da sociedade:

Não entendia como a vida funcionava 
Discriminação por causa da sua classe e sua cor.

Não, sua besta! A discriminação não era nem racial e nem de classe — por mais que estas também existam! Pelo próprio contexto da letra, é mais provável que pessoas evitavam João de Santo Cristo porque ele era um predador sexual juvenil, cheio de ódio no coração, que sonhava em ser bandido, que era filho de um homem (possivelmente bandido) que tinha sido morto pela polícia, que já havia cometido violência contra o professor na escola e que tinha um histórico de furtos contra a igreja local. Com essa reputação, João de Santo Cristo poderia ser louro como um islandês e ainda seria visto com horror. Com essa fama, por mais que fosse de classe alta, as pessoas teriam medo dele.

Mas a vida dele tem uma reviravolta necessária quando ele, por algum motivo, abandona sua cidadezinha e vai para Salvador. Quando João de Santo Cristo chega a Salvador, ele não tinha a menor ideia de onde ir. Foi parar em Brasília por puro acaso:

E encontrou um boiadeiro  com quem foi falar
E o boiadeiro tinha uma passagem e ia perder a viagem
Mas João foi lhe salvar”.

Ou seja: um sujeito que ia perder o ônibus lhe vendeu a passagem e assim o nosso herói vai para Brasília em vez de qualquer outro lugar. Tome nota desta informação.

Para um sujeito que era cheio de ódio no coração e que só pensava em ser bandido, ver as luzes de Natal em Brasília teve o curioso efeito de convertê-lo em um jovem trabalhador:

Meu Deus, mas que cidade linda
No Ano Novo eu começo a trabalhar
Cortar madeira, aprendiz de carpinteiro
Ganhava cem mil por mês em Taguatinga.

Coisa mais estranha um rapaz com o histórico de João de Santo Cristo procurar e achar trabalho tão facilmente, ainda mais porque ele não tinha qualquer formação anterior. Aparentemente, em Taguatinga, tudo que você precisa para conseguir uma vaga de aprendiz é descer de um ônibus vindo de Salvador com uma péssima reputação nas costas.

Não somente João se converteu em “rapaz trabalhador” (que a letra faz questão de enfatizar) como deixa de “comer as menininhas” e passa a procurar as “primas”:

Na sexta-feira ia pra zona da cidade
Gastar todo o seu dinheiro de rapaz trabalhador.

Aparentemente, João de Santo Cristo não entendia muito bem como funciona o dinheiro, pois

Até a  morte trabalhava
Mas o dinheiro não dava pra ele se alimentar.

Qualquer pessoa com inteligência normal concluiria que se deixasse de gastar “todo o seu dinheiro” na “zona da cidade” sobraria mais para a alimentação e outras necessidades. Não o João — ou pelo menos não o letrista “travado” que escreveu essa canção.

Frequentando um lugar tão baixo moralmente, é natural que ali João de Santo Cristo só encontrasse boas referências, como o seu primo bastardo peruano que vivia na Bolívia (gente, qual a chance de tal parentesco para um sujeito pobre vindo de um cu-de-judas do interior da Bahia?). Graças a “Pablo” o João desiste de sua conversão ao trabalho duro e resolve virar traficante de drogas:

Elaborou mais uma vez seu plano santo
E sem ser crucificado, a plantação foi começar
Logo logo os maluco da cidade souberam da novidade
"Tem bagulho bom ai!"

Como João não era nenhum santo, “ficou rico e acabou com todos os traficantes dali”. Ou seja: aqui ele comete os seus primeiros assassinatos em uma disputa por pontos de venda de drogas.

Então o letrista se esquece de que João adolescente já roubava a caixinha do altar e resolve transformá-lo em um bon sauvage corrompido pela imoralidade da vida urbana:

Mas de repente sob uma má influência 
dos boyzinhos da cidade começou a roubar.

Como assim, “começou a roubar”? Ele já não roubava o dinheiro que as velhinhas colocavam na caixinha do altar? E ele não estava, afinal, vendendo drogas para esses boyzinhos, que tinham de sustentar seu vício? Quem é a má influência de quem aqui?

Aparentemente, vender drogas não era problema, mas roubar era:

Já no primeiro roubo  ele dançou
E pro inferno ele foi pela primeira vez.

Como assim? “Pela primeira vez?” E o reformatório onde foi trancafiado na adolescência? Lá era o paraíso?

O letrista tem outro ataque de amnésia e esquece as atrocidades do João menino:

Agora o Santo Cristo era bandido
Destemido e temido no Distrito Federal
Não tinha nenhum medo de polícia
Capitão ou traficante, playboy ou general.

Você até se esquece de que ele não tinha medo desde criança, que sonhava em ser bandido, que tinha o coração cheio de ódio e que desde a adolescência ele comia as menininhas da cidade. Agora é que ele era bandido. Antes ele era o que? Apenas um jovem rebelde?

E o letrista tem outro ataque de amnésia logo em seguida:

Foi quando  conheceu uma menina
E de todos os seus pecados ele se arrependeu.

Como assim um predador sexual precoce com um histórico de frequentar o putel da cidade vai subitamente se apaixonar por uma moça aleatória e sofrer uma conversão moral mais brusca que a do facínora que finge aceitar Jesus?

Mas isso não é o mais difícil, não! “Ele dizia que queria se casar / E carpinteiro ele voltou a ser.” Se ele era um bandido destemido e temido no Distrito Federal, como ele conseguiu repentinamente voltar a ser um simples carpinteiro? Os outros bandidos não foram à forra? A polícia não o foi prender? Quem daria serviço de carpinteiro a um bandido notório? E se ele fizesse os móveis tortos, você teria coragem de reclamar?

A visita do senhor de alta classe é outro momento completamente sem sentido. Como alguém envolvido em conspirações militares procuraria um bandido conhecido e sem nenhuma formação adequada para botar bomba em banca de jornal ou em colégio de criança? Ainda mais depois que esse bandido supostamente se regenerou! Mas o mais incrível é João de Santo Cristo — que já roubou, estuprou, traficou e matou — dá uma de santo na hora de recusar, em vez de simplesmente dizer “não, obrigado”:

Não boto bomba em banca de jornal
Nem em colégio de criança isso eu não faço não
E não protejo general de dez estrelas
Que fica atrás da mesa com o cu na mão.

Claro que ficar com o “cu” na mão é impossível, isso só foi escrito para manter o ritmo, o que é marca registrada de composição tosca.

Depois de humilhar desnecessariamente o senhor de alta classe e de se gabar de ser um peixes com ascendente em escorpião, Santo Cristo resolveu se acovardar. Com medo da ameaça do homem,

Se embebedou e no meio da  bebedeira
Descobriu que tinha outro trabalhando em seu lugar.

Aí temos o confronto inicial de João de Santo Cristo com o traficante Jeremias, que o João define em termos assim:

Jeremias, maconheiro  sem-vergonha
Organizou a Rockonha e fez todo mundo dançar
Desvirginava mocinhas inocentes
E dizia que era crente mas não sabia rezar.

Não sabemos se João também usava maconha, mas ele também ia a festas de rock (como a “rockonha”) para traficar (e certamente dançar). João também tinha sua cota de desvirginar mocinhas inocentes (eu acho difícil crer que ele subitamente parou, só por Maria Lúcia, já que, apesar de Maria Lúcia, ele abandonara o emprego e voltara a ser traficante). Em suma, João e Jeremias são moralmente equivalentes, mas o letrista quer que consideremos um deles como nosso herói e o outro como um bandido do mal.

Se a estrofe seguinte não fosse escrita por alguém nascido em Brasília eu diria que ela prova que o letrista escrevia sobre um lugar que não conhecia:

E Santo Cristo há muito não ia pra casa
E a saudade começou a apertar
Eu vou me embora, eu vou ver Maria Lúcia
Já 'tá em tempo de a gente se casar.”

Como assim, “há muito não ia para casa”? O Distrito Federal não é tão grande a ponto de ser impossível os dois se verem quando quisessem. Se ele não visitou Maria Lúcia foi porque não quis, porque estava ocupado traficando (e talvez desvirginando mocinhas inocentes). Subitamente ele se lembra que ficou “muito tempo” sem ver o suposto amor de sua vida e resolve procurá-la para se casar — o que me soa a um comportamento muito ameaçador. Imagina um traficante que você não vê há meses ou anos aparecer de repente querendo se casar com você, como se a relação tivesse sido interrompida ontem?

João tem uma tremenda dor de corno quando descobre que

Com Maria Lúcia  Jeremias se casou
E um filho nela ele fez.

Basicamente: como João tinha sumido sem dar notícias, apareceu um cara (coincidentemente o Jeremias) que flertou com Maria Lúcia, pediu-a em casamento, casou-se com ela e a engravidou. Dificilmente essa sequencia de eventos teria acontecido em menos de um ano.

A reação seguinte de João é a de uma “drama queen”:

Santo Cristo era só  ódio por dentro 
E então o Jeremias pra um duelo ele chamou.

O espantoso é que Jeremias aceitou! Mas o caráter do “bonzinho” João se revela quando ele se propõe a matar também Maria Lúcia, cujo único pecado (além de ter um tremendo “dedo podre” para escolher homem) foi ter decidido seguir com a vida depois que João ficou meses ou anos sumido.

A sequência de absurdos continua:

E o Santo Cristo não sabia o que fazer
Quando viu o repórter da televisão
Que deu notícia do duelo na TV
Dizendo a hora e o local e a razão.

Como que uma rixa entre dois traficantes pé-de-chulé foi parar no noticiário da tevê? Mas a notícia dar no telejornal não é tão absurda quanto o que vemos nas estrofes seguintes:

  1. A polícia não apareceu para averiguar a presença confirmada em dia, horário e local, de dois dos maiores traficantes de drogas do distrito federal, sendo que um deles estava jurado de morte pela própria polícia.
  2. Teve um bando de malucos que foi assistir o duelo. Isso não é tão absurdo porque gente desocupada assiste até parto de rato no esgoto.
  3. O homem que atirava pelas costas poderia ser facilmente um polícia, cumprindo a ameaça do homem de alta classe.
  4. Haviam instalado bandeirinhas no local, como se fosse uma quermesse.
  5. O povo aplaudiu, como se fosse um espetáculo circense.
  6. Havia até sorveteiro.
  7. E a televisão filmando.
  8. Mas não havia polícia.
  9. Depois que o sol cegou seus olhos ele reconheceu Maria Lúcia. Era ela mesma?
  10. A arma que ela trouxe, aparentemente, era a mesma arma que o primo Pablo dera a João (como ela a conseguiu?) porque só havia uma Winchester-22 em todo o D. F.
  11. Não, o homem que atirava pelas costas não era um P-2, era o Jeremias mesmo. Ou seja, o senhor de alta classe não cumpriu sua ameaça e João abandonara sua vida regenerada por puro cagaço.

João volta a se sentir superior a Jeremias, apesar de ambos cometerem os mesmos tipos de crimes:

Jeremias, eu sou homem, coisa que você não é.

Mas olha que fineza a estrofe seguinte:

E Santo Cristo com a Winchester-22
Deu cinco tiros no bandido traidor
Maria Lúcia se arrependeu depois
E morreu junto com João, seu protetor.

Como é que João, já tendo tomado um tiro nas costas, conseguiu fazer discurso, chamar Jeremias e ainda lhe dar cinco tiros sem que o Jeremias lhe desse o de misericórdia. E como foi que Maria Lúcia morreu? Ela se suicidou, deixando órfão de pai e mãe o seu filho? Ou estava grávida? Ou será que João também a matou, como prometera? Simplesmente dizer que Maria Lúcia “morreu” nada explica. Mas, principalmente, ela se arrependeu do que? Que crime cometeu a Maria Lúcia Dedo-Podre Jeremias? E de que maneira João “protegeu” Maria Lúcia?

A única coisa que faz sentido na letra é o povo achar que João de Santo Cristo era santo porque sabia morrer. O povo brasileiro é perverso e chama de santo quem faz todo tipo de portento, mas acha que quem comete atos semelhantes aos de Jesus é um bandido — vide caso Júlio Lancelotti.

Ah, sim, o caso todo passou na televisão. Porque, afinal, não havia censura prévia na televisão brasileira no começo dos anos 1980, quando essa canção foi composta.

Mas a cereja do bolo é a estrofe final, que joga no lixo toda a história de vida de João de Santo Cristo, até aqui narrada em idas e vindas e contradições:

E João não conseguiu o que queria
Quando veio pra Brasília, com o diabo ter
Ele queria era falar pro presidente
Pra ajudar toda essa gente que só faz sofrer.

Não! João de Santo Cristo fugiu de sua cidade porque todo mundo estava com medo dele por causa de seu histórico pessoal e familiar, possivelmente fugiu das ameaças do pai de alguma das menininhas que ele comeu. Ele viera de Salvador a Brasília por puro acaso, comprando uma passagem de um viajante aleatório e o que pensou ao chegar não foi em procurar o presidente para uma conversa, mas arranjar um emprego.

Em suma: esta letra é completamente sem pé e nem cabeça e ocupa cabulosos oito minutos da vida de quem não desvie dela.

Mas Renato Russo era o poeta do rock e essa minha crítica, claro, é porque eu sou um ressentido e não consigo fazer melhor.

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