O Regionalismo Terá Sido Reduzido a uma Estética de Exotismo?

Estou retornando ao Medium, depois de muito tempo, porque aqui me encontrei com uma polêmica muito importante, que merece ser levada adiante. É algo sobre o que já escrevi no passado, mas que sempre vale a pena repisar, porque o futuro ainda está em aberto e se trata, neste momento, de uma luta pela alma do Brasil.


Refiro-me ao movimento intitulado “cyberagreste” (sic), criado a partir de uma série de ilustrações feitas por um gaúcho, Vítor Wiedergrün, e que resultou em obras escritas por autores do sudeste, do sul e do próprio nordeste, reimaginando um Nordeste mitológico transferido para um mundo cyberpunk do futuro, devidamente adicionado de todos os elementos identitários tornados obrigatórios para a construção publicitária da obra.

O movimento parece que será bem recebido nos meios literários, e já podemos encontrar citações positivas dele na internet, como os ensaios Amazofuturismo e Cyberagreste: Por uma Nova Ficção Científica Brasileira, de Lídia Zuin, e O Cyberagreste de Vítor Wiedergrün, de Eduardo Furbino, e os tuítes da thread intitulada Escrevendo o Cyberagreste, de Laisa Couto.

Já alguns autores propriamente nordestinos perceberam uma trampa envolvida no movimento, como Alan de Sá, que escreveu o importante ensaio Estão Inventando o Nordeste de Novo, e Alec Silva, que tem criticado muito o tema em sua comunidade do Facebook, ironicamente intitulada “A Literatura Nacional Tem que Acabar”

Tanto o movimento de apoio quanto o de crítica ainda são incipientes, então ainda há muito espaço para se discutir o tema antes que ele definitivamente embique para equívocos e discussões vazias. Pretendo deixar aqui a minha contribuição.


A literatura brasileira sofre, desde 1965, um processo longo de descaracterização e fragmentação, motivado por uma política deliberada pela ditadura e nunca contestada na prática pelos governos democráticos desde 1985. Esse processo foi pensado com o objetivo de negar espaço aos produtores nacionais de conteúdo, para que não adquirissem estatura cultural e não pudessem, a partir desta, insurgir-se como críticos do projeto antinacional encarnado pela ditadura. Esse processo teve quatro frentes:

  1. Facilitação da entrada de conteúdo estrangeiro traduzido, inundando o mercado editorial com os tais best-sellers, que passaram a competir com o produto nacional.
  2. Sufocamento do mercado editorial, especialmente das editoras de pequeno porte, através da facilitação das fusões e aquisições entre as grandes empresas do ramo — de que resultou algumas empresas deterem grande poder no mercado, obrigando as pequenas editoras a trabalharem com margens menores, mas, principalmente, diminuindo sua possibilidade de crescimento ao emparedá-las em nichos de mercado.
  3. Entrada de empresas estrangeiras no setor editorial, sem qualquer restrição, com o que as prateleiras das livrarias ficaram inundadas de títulos publicados por empresas como Leya, Santillana, Planeta, De Agostini, Panini e outras. Essas empresas, por sua vez, preferiram, sempre, republicar no Brasil as mesmas obras de que já tinham os direitos em outros países, aumentando suas margens de lucro e diminuindo seu risco — pois os best-sellers já passaram no teste do gosto do público quando publicados originalmente.
  4. Simbiose entre o cinema estrangeiro (cuja entrada no Brasil não sofre quaisquer restrições) e o mercado editorial, publicando as “novelizações” de roteiros ou os spin-offs que atendem ao gosto do público. O sucesso de um filme, que sempre atinge mais pessoas, puxa as vendas das obras que são lançadas em sua esteira — e estas competem com a literatura propriamente dita, especialmente a literatura original, isto é, aquela que não está associada a produtos audiovisuais.

Resultante desse processo ocorreu uma fragmentação do mercado cultural nacional, algo análoga ao que ocorria no período colonial. Cada uma das regiões do país consome produtos audiovisuais (música, cinema, televisão) e editoriais (best-sellers) diretamente de sua fonte estrangeira (na ampla maioria dos casos, os EEUU), mas não consome produtos audiovisuais e editoriais de outras regiões do Brasil, ou não os consome com a mesma profundidade e frequência.

Os leitores do sudeste não leem os autores do nordeste. Os do sul não leem os do centro-oeste. Os do norte não leem os do sul. Isso se estende aos demais produtos culturais: depois de uma breve fase em que a música pop originária da Bahia, de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul penetrava no mercado nacional, vivemos hoje uma hegemonia do eixo Rio-São Paulo. 

O único elemento nacional unificador costumava ser a televisão aberta, mas esta já deixou de sê-lo há bastante tempo, com a infecção da maioria dos canais por programação paga por igrejas evangélicas (que apelam ao seu próprio nicho e subcultura) e outros conteúdos promocionais (telejogos, televendas etc.). Fatores culturais (a progressiva conversão política e religiosa do país) também cortaram o acesso dos canais mais vistos (Globo e SBT) ao imaginário popular, sem que o novo concorrente (Record) conseguisse ter impacto equivalente. Por fim, a televisão fechada roubou a maior parte da audiência da televisão aberta e agora a internet agrava isso.

Consolida-se, portanto, esta situação em que cada região enxerga com clareza e instantaneamente os EEUU, mas somente enxerga o resto do país de uma forma lenta ou embaçada. Esse é o cenário em que o “cyberagreste” surgirá.


Na prática, isto quer dizer que a visão do Brasil no imaginário dos produtores de conteúdo cultural, exceto os mais intelectualizados e com vivência de mundo, é distorcida e desatualizada, além de muito filtrada (ou seja, indireta). Cada produtor de cultura enxerga e compreende a sua região imediata, mas enxerga mal as outras, quando as enxerga, e não as compreende bem, quando sequer possui alguma compreensão delas.

No filme Bye Bye Brasil, de 1979, Cacá Diegues nos mostra esse conflito entre um país novo que surgia, por obra e graça da televisão, e um país antigo que ficava atirado à margem da estrada. A entrada da televisão e da modernidade descaracterizou as regionalidades do Brasil (que eram, também, em grande parte idealizadas pela literatura, pelo cinema, pela música e pelo imaginário popular, é claro), mas não as removeu da percepção dos habitantes de outras regiões. Assim, quando as diversas regiões somem da televisão, a sua imagem não é atualizada na percepção dos que vivem em outros lugares e perpetua-se a imagem anterior.

Ocorre que essas imagens regionais do Brasil foram construídas pelo Estado Novo, há mais de setenta anos. Basearam-se em elementos preexistentes, claro. Continuaram a ser utilizadas posteriormente, por pelo menos um tempo, claro. Essencialmente, porém, o Brasil regional que a maior parte dos brasileiros conhece é o país imaginado pelo samba-exaltação, pela utopia do “cadinho de raças” e do “país do futuro”. Todas essas utopias foram pensadas antes de 1965 e já estavam em processo de questionamento quando veio a ditadura para, entre outras coisas, impedir esse amadurecimento.

Esse bruto corte do processo de amadurecimento da identidade nacional perpetuou estereótipos regionais que ainda podem ser vistos na televisão, na música e, principalmente, no humor, que é a arte que utiliza os arquétipos mais profundos de uma cultura e que, por conseguinte, manipula os elementos mais resistentes desta. Entre esses estereótipos, não suficientemente atualizados pela invisibilização das regionalidades causada pela colonização cultural do país pelos EEUU, temos:

  1. O mineiro de botas, desdentado e falando um dialeto caricato;
  2. O pantaneiro vaqueiro violeiro de chapéu grande;
  3. O gaúcho de bombachas e bigodões;
  4. O povo da Amazônia limitado a índios e ribeirinhos;
  5. O nordestino cangaceiro ou retirante da seca;

Algumas imagens regionais foram atualizadas, notadamente as do eixo Rio-São Paulo, por efeito da televisão. O Rio de Janeiro substituiu a figura do malandro malemolente pela do favelado funkeiro. São Paulo substituiu a figura do caipira violeiro pela do urbanóide estressado.

“Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, um “resumão” das identidades regionais brasileiras, ainda é a referência de cultura brasileira a que recorrem, sem perceber, muitos jovens de hoje.

Quando um autor brasileiro tenta imaginar o Brasil como cenário de sua obra, existe uma grande tendência inercial para que ele o faça conforme essa imagem tradicional e desatualizada. Isso não é porque o autor tenha má intenção ou queira caricaturar outras regiões — ele o faz porque sinceramente crê que a sua concepção reflete, de alguma forma, “valores culturais” da região que ele reimagina.

Podemos dizer, aqui, que o Brasil ficou reduzido a um elemento exótico, a que os produtores de conteúdo recorrem para dar uma cor local em suas obras, quando acham que isso as valorizará esteticamente.

O exotismo (ou seja, “a visão de quem está de fora”) é uma forma de apropriação cultural à revelia dos elementos culturais apropriados. Ele pode ser respeitoso, como a ópera Carmem, escrita pelo francês Georges Bizet, é respeitosa em relação à Espanha, ou pode ser rasa, caricatural e racista, como a ópera Madame Butterfly, de Giacomo Puccini, em relação ao Japão. 

A relação do autor com o cenário exótico a que recorre depende, portanto, de seu respeito e de seu entendimento desse cenário. Ela pode resultar em uma obra que será aceita ou rejeitada pelo povo “homenageado”. A relação dos espanhóis com a ópera de Bizet é muito diferente da relação dos japoneses com a ópera de Puccini.

Talvez Vítor Wiedergründ se sinta perplexo, talvez até ofendido, quando souber que há nordestinos que detestaram sua concepção do futurismo nordestino do “cyberagreste”. Em algum momento ele talvez se pergunte qual a vantagem de querer valorizar a “cultura nacional” se o brasileiro é tão “ingrato” com quem o tenta. Pode ser até que ele resolva não mais tentar: “Vou escrever e desenhar coisas estrangeiras, então.”

Essa seria, porém, uma atitude típica de quem encara o elemento regional como um adereço exótico. Se o elemento regional fosse mais que isso, seria parte integrante da identidade do criador, não algo de que ele pudesse facilmente se desfazer.

O exótico necessariamente pertence ao “outro” e a uma disposição para abandoná-lo — se não for bem recebido — é uma indicação clara de que não houve nem mesmo uma identificação de nível básico, apenas uma incorporação estética.

Alguns desses autores que escreveram “cyberagreste” também ficarão ofendidos, alguns até vão pegar os seus bonitos diplomas e os seus muitos outros livros publicados e vão tentar esfregá-los no meu nariz (e nos dos nordestinos que ficarem insatisfeitos). 

A menos que tenham um súbito acesso de humildade e se perguntem se não houve, realmente, um equívoco.


Não é porque eu pretendo homenagear alguém que esta pessoa tem de se sentir homenageada. Se a minha homenagem é unilateral, baseada no meu desejo de a fazer e na minha concepção de como ela deve ser feita, então o meu trabalho não homenageia a quem eu quero valorizar, mas somente às minhas boas intenções. É como a esmola que o cristão dá ao mendigo pensando em comprar uma passagem para o céu em vez de aliviar a fome do necessitado. 

Estas homenagens unilaterais presumem que o homenageado está em um estado de mendicância metafórica e, portanto, não tem o direito de escolher como quer ser visto e como será homenageado.

Enquanto mineiro, “da borda do queijo” (a Zona da Mata), eu não me sinto nada homenageado pela Filomena, da Gorete Milagres, nem pelo Nérso da Capitinga, do Pedro Bismarck. O fato de terem sido perpetrados por mineiros não dá a esses personagens nenhuma dignidade adicional porque foram concebidos e reimaginados para atender às expectativas de um público que não conhece Minas Gerais em primeira mão e que ainda vê o estado de uma maneira pejorativa e idealizada. Na verdade é bastante comum que essas caricaturas recorram a atores ou autores da própria região, o que é uma forma adicional de se violentar a identidade cultural de um povo.

Essa experiência de frustração que tive (e muitos conhecidos meus têm) ao se verem assim representados na televisão, me ajuda a compreender perfeitamente como os nordestinos podem se sentir diante de uma estética e movimento criados por gente que ainda vê em sua região um conjunto de referências políticas, sociais e culturais que pertence aos decênios entre 1930–1960.

Utilizando uma referência cultural norte-americana, que, provavelmente, será melhor entendida por certos leitores meus do que qualquer outra que eu faça recorrendo à nossa cultura, a criação de um movimento ou de uma estética por gente de fora, sem cuidado com uma representação fiel do representado, é bastante parecida com isto aqui:

O Blackface era um gênero teatral americano em que atores brancos se pintavam de preto e interpretavam quadros em que eram ridicularizados todos os aspectos da identidade negra, de seu sotaque às suas crenças, passando pelas suas carências e pela sua opressão. Hoje universalmente visto como uma coisa abominável, ele chegou a ser considerado um elemento importantíssimo da cultura pop americana.

Revoltar-se com a reclamação dos que não se sentem homenageados é uma atitude que reflete falta de humildade, como se você se arrogasse mais entendimento da cultura do outro do que ele próprio. Uma atitude que só piora se você usar um diploma para acenar contra a percepção do outro de sua própria identidade.

O nordestino tem o direito de se incomodar com a persistência da representação de sua cultura como a de um povo eternamente morto de fome e envolvido em violência e banditismo, assim como o mineiro tem o direito de se incomodar com a representação da sua como uma gente feia e desdentada que usa botinas e fala errado.


Quando tentamos apropriar a cultura do outro a partir de nossa ótica, o primeiro público a que realmente atingimos somos nós mesmos. Se eventualmente atingimos outros públicos, mas não atingimos ao público que quisemos apropriar, o que acabamos por fazer é algo monstruoso: roubar de um povo a agência e a eficácia em construir e reimaginar sua própria identidade cultural. 

Nesse ponto, o movimento do “cyberagreste”, da maneira como é apresentado, independente das intenções boas de quem o concebeu, corre o risco de sobrepor ao Nordeste real uma visão ultrapassada e caricata, que criará dificuldades para que os autores da região cheguem a públicos de outras partes com obras suas, nas quais a identidade regional é representada de forma mais fiel.

Ou seja: quando triunfa a imagem exótica do Nordeste, o nordestino se vê escanteado e pode ser obrigado a aderir a essa representação absurda de si mesmo para poder atingir a públicos externos. Na prática, o movimento “cyberagreste” se arrisca a abortar no nascedouro uma reimaginação do nordeste feita pelos próprios nordestinos e que contempla a evolução social, cultural, política e econômica da região desde a época em que Luiz Gonzaga, para atingir ao público do sudeste, precisou se fantasiar de cangaceiro.

Esta não é a imagem de Luiz Gonzaga que você conhece. Por que será?

O objetivo deste texto não é desestimular as pessoas que querem reimaginar literariamente o país. É muito positivo que exista esta intenção e ela deve ser cultivada, mas ela não pode ser cultivada unilateralmente. Não podemos tratar as identidades regionais do Brasil como carentes de atenção e, portanto, obrigadas a aceitar a esmola que nos propomos a dar em forma de referência em nossas obras.

Gostaria que os autores que sentem falta de mais brasilidade em nossa literatura tentassem se aproximar dos autores que praticam essa brasilidade e que se localizam nos espaços regionais. Ou que, alternativamente, adquiram vivência desses espaços para escreverem sobre eles, como João Guimarães Rosa fez, convivendo com vaqueiros do norte de Minas Gerais por um longo tempo a fim de adquirir elementos para a escrita de suas histórias.

Sem essa relação interativa com as culturais regionais, o que se produzirá não terá uma brasilidade real, mas uma estética superficial apenas. Mais que isso, sem essa relação interativa não haverá espaço para resgatar do interior e das diversas regiões os autores que ali militam e que propriamente possuem a prerrogativa do “lugar de fala” sobre elas.

Entendo que os nordestinos não queiram ser ensinados a ser nordestinos por um gaúcho e uma mineira, porque não preciso e não quero e não aceito que um paulista ou um cearense venham me ensinar a ser mineiro.

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