E de "Elefante"

Tudo indica planos antigos do João Santos, dando por fim num safári combinado com discrição a poucos dias da confirmação da partida. Tudo no cartão, dividido para não ficar muito no orçado — mas como muito funcionário público da alta roda, não havia motivo para o cuidado: havia fundos para isso ou mais, mas João quis diluído, convinha assim.

Partiu no sábado, voo da South African, todo pronto para uma folga curta. Só comprou o conjunto típico numa loja lá. Durban foi o início, dormiu num quarto barato, alugado no Booking.com. Manhãzinha acordou ainda fora do fuso horário, lavou o rosto, pôs a roupa para safári. Ligaram avisando do atraso do ônibus alugado. João foi ao saguão para aguardar. Não sabia Afrikaans para dar conta do Sondag, por isso ficou com o Financial Mail, um tanto chato para os não ligados ao mundo das finanças.

Um furgão azul parou à porta, buzinando. João largou o jornal, pronto para sair. Outros vindos para o safári o ultrapassaram com passos largos: ficou com um dos últimos bancos, mas isso não tinha importância.

Foram duas horas sob o sol. Saíram para os subúrbios, por novos caminhos asfaltados, cintilando tal qual molhados num dia chuvoso. A savana os saudou com um ar mais úmido, os arbustos faziam sombra para poucos bichos, plantas floradas balouçavam com uma brisa mansa. Uma placa marcava o limiar do município, mas o guia confirmou isso numa voz acostumada.

O grupo abandonou o furgão junto a um bangalô. O calor do dia ficava mais duro com o passar da manhã. Haviam posto um brunch para o grupo, logo comido para aplacar o incômodo da barriga vazia. Com as armas às mãos, formaram dois grupos, cada com um guia mais tarimbado. Quatro ou cinco só.

— Vamos por aqui — indicou o guia do grupo. João foi atrás, com os outros.

Logo tinham dobrado a crista do morro mais próximo, sozinhos na savana, ouvindo só os sons originais do mundo. Saíram girafas duma moita difícil junto ao rio. Um dos turistas alçou a arma, outro a parou.

— Calma, cara! O bom ainda não vimos…

Andaram mais um pouco, cruzando o rio raso para dar no pântano. Ali, o guia tinha dito… Indicando na sombra o lugar para a tocaia, ficou com o grupo, calado, com uma cara opaca como uma ruína do passado.

Ouviram, por volta das duas horas, o ruído rouco dos bichos. Vinham tomar a água barrosa do paul, único lugar úmido da província.

Por fim sugiram do mato, com pouco ruído para tanto tamanho. Vinham com ar dúbio, sabiam alguma coisa. O maior do bando adiantou o corpanzil, a tromba longa subiu para aspirar o aroma do inimigo oculto.

Ainda aguardavam para dar o disparo anunciado, conquista tão aguardada, paga, faturada. João não notava, mas o corpo batido do cansaço o fazia dormitar — numa modorra assim ouviu na alma, lá no fundo, o som como uma trompa na batalha. Prolongado, uma hora agudo, logo baixo, num ritmo contado a passos monstruosos. Uma visão surgiu, uma sombra agigantada, plácida, vagoroso.

Sob a sombra daquilo, dançaram para João figuras com formas vistas, bonitas, mágicas. Viu crias novas no mundo, brincando na lama, agitados. A trompa continuava a soar. Idosos animais andavam com passos vacilando, procuravam o lugar das fábulas, para lá vão aguardar o fim. Comungou da calma pacífica dos animais. Viu o bando arriscar a vida, buscando a água única, do rio obrigatório. João Santos sorriu alaranjado, oprimido com a culpa dos colonos.

Maravilhosos animais com longas trombas, vinham atrás da água, pastavam na savana, morriam pacíficos. O marfim como arma, rombuda, ridícula para os humanos avaros.

Com rabos curtos, tronco volumoso, patas massivas, couro grosso: assim a maior das criaturas da África ficava fora do cardápio dos carnívoros locais. Os únicos inimigos naturais, os humanos humanos, assassinos frios da vida por motivos tolos. Matam-nos só por cobiça do marfim. Acabará nossa ganância ou acabamos com a vida no mundo todo?

João acordou com uma dor no coração. Não suportou aquilo mais.

— Não! Não! — Gritou com toda força da garganta.

— `Tá louco!? — Gritou um outro — Vai afastar os bichos, ou nos dar azar!

— Não vou matar nada! Não vamos matar nada!

— Raios! — Gritou o guia — Vai calar a boca ou o amarramos!

João saltou uma moita, buscando abrigo atrás das rochas.

— Vai atirar? — Indagou o guia, ironizando.

— Posso atirar, não vou matar bicho algum.

Um caçador atirou. A bala zuniu a poucos passos, arrancando uma lasca do chão.

— Ruim pontaria! — Gritou joão.

Os animais agitaram suas trombas. Por ora sumiam no abrigo do matagal. Mas a água os forçaria a voltar.

— Ficou louco, cara?

— Não. Louco não. Isso não. Loucos somos por matar animais assim, por nada.

Um caçador surgiu, fuzil à mão, apontou para o matagal, ali surgia uma forma difusa, fora das folhas. Atirou, algo balançou nas plantas, um ruído tristonho, prolongado, assustador. O caçador riu, um riso mau, vazio.

João não duvidou. Atirou. A bala furou o caçador no tronco. O riso frio apagado, os olhos baços sumiram sob a franja.

— Louco! Matou-o! — Gritou João, gritou o guia.

O grupo ajuntou à roda do morto, João não podia acalmar mais a alma inflamada com tanta culpa. Fugiu para a savana, sumiu nos capinzais altos, chorando a arrastar uma arma assassina.

Próximo à mata, viu ali o animal abatido, ainda suspirando. Sangrava. Tinha lágrimas nos olhos.

Abraçou-o.

— Oh não! Oh não!

Outro tiro soou. Passou nas costas do João, mas não foi notado. João subira outro plano, ali não havia dor, não havia nada. O mundo todo transtornado numa savana infinita, mas não havia risco das balas ou das facas dos humanos. Pastavam os animais do passado, do futuro, os dos dias atuais, nunca mais. Aos poucos apagava a luz, João chorava ainda abraçado ao animal. Os olhos dos dois, agora úmidos, unidos num olhar só, aguardavam.

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