A Invisibilidade do Brasil e Seus Mitos

A recente estreia da série “Cidades Invisíveis” na Netflix movimentou as redes sociais na primeira semana de fevereiro de 2021 com uma série de polêmicas sobre a escolha dos atores e elementos da trama que parecem inconsistentes com os mitos folclóricos brasileiros em que os personagens foram baseados. Acredito, no entanto, que o momento exige uma reflexão bastante madura sobre o caso, para que a brasilidade não perca uma oportunidade interessante para recuperar espaço na cultura “pop”, onde esteve, por tanto tempo, impedida de entrar devido à massacrante influência da cultura de massas importada.

Quando falamos do folclore brasileiro, é impossível esquecer quatro autores fundamentais do folclorismo nacional: Cornélio Pires, Sílvio Romero, Luís da Câmara Cascudo e João Simões Lopes Neto. Cada um a seu modo, registraram os mitos e lendas do Brasil, dando-lhes forma literária respeitosa. Cascudo, principalmente, foi o autor de um Dicionário do Folclore Brasileiro que é uma obra essencial para quem deseja estudar o tema. Infelizmente, a primeira referência que a maioria tem em relação ao nosso folclore é um autor que não tinha nenhum respeito pelo povo brasileiro e sua cultura tradicional: Monteiro Lobato.

A obra de Monteiro Lobato é uma verdadeira cruzada contra a brasilidade disfarçada de nacionalismo. O autor até mesmo deve a sua fama a textos em que qualificou o homem do campo, o caipira, de parasita, comparando-o a criaturas como o bicho-de-pé e o cogumelo orelha-de-pau. No primeiro caso, por atrapalhar o Brasil a andar e no segundo, por destruir o país para se alimentar de seu apodrecimento. Chegou a chamar o caipira de “fazedor de desertos” e seu projeto modernizador “nacionalista” se baseava a tecer loas ao “italiano”. O estranho nacionalismo da direita brasileira, o nacionalismo que propõe um futuro melhor para o país, mediante a substituição do povo.

Embora Lobato tenha feito amplo uso de personagens folclóricos (especificamente retirados do folclore da região sudeste, ainda que também ocorram em outras regiões), fê-lo de maneira caricata e infantilizada. Nisso propriamente não há nenhum mal, uma vez que estas obras foram escritas para crianças — o problema foi que estas obras se tornaram uma espécie de referência de nosso folclore, a ponto de muitas vezes, ao pesquisarmos sobre esses seres, as primeiras imagens que a ferramenta de busca retorna são ilustrações de livros de Lobato. Com isso, o folclore brasileiro se tornou refém da maneira como Lobato o imaginou, apesar de ser muito mais amplo e profundo do que isso.

Iara, Negrinho do Pastoreio, Boitatá, Cuca, Curupira, Saci, Boto Cor-de-Rosa, Lobisomem, Mula-Sem-Cabeça. Todos infantilizados e baseados na imagística lobatiana (mesmo os que não são citados pelo autor). O apagamento da origem indígena da Iara e do Curupira, aliado ao embranquecimento do “Negrinho”, bem como a imagem do Lobisomem europeu e de uma Cuca inspirada na personagem do Sítio do Picapau Amarelo: retrato do sequestro do folclore brasileiro pela influência de Lobato.

A longo prazo, a sombra de Lobato fez com muita gente visse o folclore — e especialmente os seres místicos nele presentes — de uma maneira desrespeitosa, como se fossem apenas “coisa de criança”. De certa forma, Lobato teria ficado feliz com esse resultado, porque ele pensava que as nossas tradições eram uma mera idiotice:

— Essas histórias folclóricas são bastante bobas — disse ela. — Por isso é que não sou “democrática!” Acho o povo muito idiota

[…]

— Eu também acho muito ingênua essa história de rei e princesa e botas encantadas — disse Narizinho. — Depois que li o Peter Pan, fiquei exigente. Estou de acordo com Emília.

— Pois eu gostei da história — disse Pedrinho — porque me dá ideia da mentalidade do nosso povo. A gente deve conhecer essas histórias como um estudo da mentalidade do povo.

Afinal, a marca de nosso povo não era a criatividade, mas a ignorância:

— Sim — disse dona Benta. — Nós não podemos exigir do povo o apuro artístico dos grandes escritores. O povo… Que é o povo? São essas pobres tias velhas, como Nastácia, sem cultura nenhuma, que nem ler sabem e que outra coisa não fazem senão ouvir as histórias de outras criaturas igualmente ignorantes, e passá-las para outros ouvidos, mais adulteradas ainda.

Ou que nosso folclore não poderia render histórias tão boas quanto as escritas pelos autores estrangeiros que Lobato ganhava dinheiro para traduzir:

— Mudanças que as deixam sem pé nem cabeça — insistiu Emília. — Essa do Sargento Verde, por exemplo. É tão idiota que um sábio que quiser estudá-la acabará também idiota. Eu, francamente, passo essas tais histórias populares. Gosto mais é das de Andersen, das do autor do Peter Pan e das do tal Carroll, que escreveu Alice no Pais das Maravilhas. Sendo coisas do povo, eu passo…

Outro exemplo:

É o que eu digo — ajuntou Emília. — O povo, coitado, não tem delicadeza, não tem finuras, não tem arteÉ grosseiro, tosco em tudo que faz. Este livro vai ser só das histórias populares do Brasil, mas depois havemos de fazer um só de histórias compostas por artistas, das lindas, cheias de poesia e mimos — como aquela do Príncipe Feliz, do tal Oscar Wilde, que dona Benta nos leu. Aquilo sim. Até deixa a gente leve, leve, de tanta finura de beleza!

Para esse grande “nacionalista”, o povo não tem imaginação, tem apenas pobreza:

— Bom — disse Emília. — Esta já está mais bem arranjadinha. Mas eu noto uma coisa: as histórias populares parecem que são uma só, contada de mil maneiras diferentes. Falam tanto na tal imaginação do povo e eu não vejo nada disso. Vejo apenas uma grande pobreza.

Quando isolamos estas citações de Histórias de Tia Nastácia, fica parecendo que, para Lobato, destruir o imaginário popular brasileiro e substituí-lo pelas obras estrangeiras (traduzidas por ele, claro) seria mais uma forma de “progresso”, uma higienização cultural do país. Talvez por causa disso é que se faça tão pouco para preservar os mitos e lendas de nosso folclore. Por causa desse descaso, o sarrafo fica baixo para quem queira trabalhar os temas na cultura pop. Isto permite que certos trabalhos de má qualidade pareçam melhores que são.

Ainda por causa desse abandono, temos que ter cuidado ao criticar quem faz alguma coisa no tema, mesmo que faça mal. Uma reação negativa pode afugentar futuros investimentos na área. De modos e maneiras que o simples fato de surgir um produto cultural baseado em nosso folclore e que foge à influência infantilizadora de Monteiro Lobato é uma coisa a se comemorar — por mais que a qualidade da obra vacile.

Acredito que o surgimento de uma série sobre os personagens de nosso folclore seja muito importante para nós, enquanto nação que busca sua identidade. O interesse popular por esta série — mesmo que ela seja ruim — pode ser o começo de um ciclo de trabalhos melhores. Não há desserviço em se trazer visibilidade, porque visibilidade traz debate e debate realimenta a visibilidade.

Mesmo a má qualidade pode não ser um problema sério. Sabemos muito bem que os grandes temas da literatura foram criados a partir de obras originais que nem sempre foram das melhores. O mito do vampiro, por exemplo, não tem em Drácula, de Bram Stoker, um precursor irretocável. Em geral, a qualidade é fruto da maturidade da forma artística ou do tema. Os precursores são, muitas vezes, lembrados apenas por serem precursores. Gonçalves de Magalhães está aí para nos provar exatamente isso.

Sim, a série tem problemas, muitos deles relacionados ao maior problema de nossa produção cultural, que é o filtro do Eixo Rio-São Paulo, e à atitude brasileira predominante nos dias de hoje, que nos leva a encarar como exóticos os elementos de nossa própria tradição. No cômputo geral, porém, eu acho que a série é mais positiva que negativa. Devemos aproveitar a oportunidade para fazer mais coisas sobre o tema, consolidá-lo em nosso imaginário — e no imaginário internacional, se a série for bem-sucedida.

Quanto ao boato de que Draccon está envolvido, se for verdade isto explicará metade dos defeitos da série, mas não explicará nenhuma de suas qualidades…

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