Palmas para o “Isentão”

Entre os grandes flagelos do debate político na atualidade, o “isentão” é um dos mais desagradáveis pelas sua capacidade de abortar o confronto legítimo de ideias, o que, a longo prazo, impede a defesa honesta de posições. Diante do “isentão”, esse sofista moderno, que habita o muro como quem se instala em um castelo, todas os opiniões são idênticas em irrelevância. Se queremos recuperar um pouco de nossa civilidade, precisamos desterrar os “isentões” de volta ao limbo, em vez de os idolatrarmos como os modelos filosoficamente superiores de virtude.

O termo “isentão” surgiu como uma ironia, mas todo o sarcasmo embutido na palavra não bastou para impedir que a atitude ganhasse respeito gradualmente, até hoje o “isentão” se sentir à vontade para cobrar isenção de todo mundo que não se comporte como ele.

A raiz do comportamento “isentão” está em um dos pilares do pós-modernismo, o relativismo. Para os pós-modernos, não há posições inerentemente boas ou más, todas elas são “opiniões” e devem receber a mesma atenção. O passo seguinte é concluir que não há posições válidas ou inválidas, mas que todas dependem da perspectiva do emissor e do receptor.

Nada disso é dito abertamente porque os “isentões” sabem que a mente racional regurgitaria uma ideia que demite a própria racionalidade como um parâmetro. Então, o evangelismo dos relativistas não se concentra em atacar o conceito de verdade, mas as suas manifestações. Não podendo ou não ousando dizer às pessoas que a verdade não existe, buscam conduzi-las à mesma conclusão através de questionamentos indiretos. Daí temos a falsa isonomia, que consiste em buscar um equivalente oposto a tudo de bom ou mau de que se tenha conhecimento a fim de criar a impressão de isonomia. A atitude “isentona” me parece ser um dos meios úteis a essa finalidade.

Acredito que para o debate continuar, precisamos, primeiro, definir quem é essa figura de nosso bestiário político, o “isentão”. Não me refiro aqui a pessoas que procuram ser neutras, mas a quem evita se comprometer. Ser neutro é uma coisa, ser escorregadio é outra. Diante de posições polarizadas, o “isentão” não busca o terreno comum ao centro, ele busca demonstrar que ambos os lados estão errados. Faz isso de duas maneiras: tentando identificar pontos negativos na proposição prevalente e, ao mesmo tempo, ressaltando supostos pontos positivos da posição prejudicada. O efeito disso não é atrair os lados beligerantes para um objetivo comum, é silenciar o debate sem que se chegue a uma solução do impasse, permitindo, então, que uma nova versão impere, agora em uma arena esvaziada.

Na prática, o que o “isentão” quer não é a isenção, mas a neutralidade.

Quando o termo “isentão” começou a ser utilizado, há uns poucos anos, ele buscava ridicularizar os que se punham “em cima do muro” em debates polarizados. O argumento em defesa dessa atitude seria que os “extremismos” conduziriam a um conflito e que seria necessário chegar a um terreno comum. Não resta a menor dúvida de que esse argumento original é correto, o problema é que ele não se aplica aos “isentões”, como vimos acima.

Primeiro porque a característica do “terreno comum” é ser um ponto pacífico entre terrenos confrontantes e devidamente individualizados. Para se chegar a um acordo civilizado entre opiniões polarizadas, não é preciso que ninguém abra mão de seus “extremismos” ideológicos, mas que ambos os lados concordem em uma tática em prol de objetivos comuns. Mas não é assim que o “isentão” opera: em nome de um mundo que não esteja polarizado entre o preto e o branco, ele almeja um mundo cinza.

O segundo ponto problemático é que os “isentões” não buscam a neutralidade real, mas a hegemonia do debate através do silenciamento dos extremos. Acredito que a proposição de uma “terceira via” para superar as anteriores é essencialmente fascista, pois nega a pluralidade. A atitude a que estou chamando de “isentona” pode parecer filosófica e bonitinha, mas é uma cunha para se derrubar a inteligência democrática e semear o pensamento único. Veja bem que esta verdade não precisa que os “isentões” sejam feios, sujos e malvados — ela também vigora com gente bonita, limpinha e com toda aparência de bem-intencionada.

E nem sempre o “isentão” percebe que está destruindo a verdade. Muitas vezes ele sinceramente crê que sempre será possível encontrar um meio-termo, mesmo quando este obviamente não existe. Um exemplo desta situação seria a busca “isentona” de um meio-termo entre uma posição genocida e uma posição humanista. Enquanto o genocida pretende exterminar “todos os membros do grupo X”, o humanista não aceita que ninguém seja morto por pertencer a um grupo qualquer. Um exemplo de meio termo “isentão” nesse caso seria propor um extermínio “limitado” dos membros do grupo X, com o que o genocida pode concordar, por ser uma meta mais modesta. Mas o humanista não pode concordar com isto porque ainda envolve matar pessoas inocentes. Aqui encontramos o grande problema da busca da isenção pelo amor da própria isenção: ela pode nos levar a concluir que aqueles que não querem tolerar o intolerável é que são radicais, enquanto os que aceitam praticar um mal menor são flexíveis!

Existem três consequências muito problemáticas desse pensamento “isentão”: 1) deslegitimação do que é justo, 2) atenuamento da injustiça e 3) cinismo generalizado.

A deslegitimação do justo ocorre quando pessoas que defendem metas corretas e positivas são questionadas por causa de suas imperfeições. Como o “isentão” se julga moralmente superior e crê que não é ideologizado, ele vê com certo ranço o brilho dos que se erguem com bandeiras significativas. Apontar os pés de barro dos ídolos é uma maneira através da qual se “demonstra” à opinião pública a “hipocrisia” dos que parecem virtuosos. Dos heróis, exige-se nada menos que a santidade, mas, mesmo assim, ainda será sempre possível convencer ao povo da existência de pecados imaginários.

Por uma questão ideológica, o relativista não consegue crer que as pessoas possam ser sinceras. As vicissitudes da condição humana aparecem aqui como um questionamento da validade moral da adesão do indivíduo a um conceito abstrato. A impossibilidade ou a dificuldade de se aproximar do ideal significa que o adepto nunca estará à altura de suas ideias. O fato de que esse tipo de argumento seja falacioso (argumentum ad hominem) não assusta aos relativistas porque, como sabemos, eles já partem do princípio de que a lógica é apenas uma convenção, a racionalidade não existe e todos os parâmetros estão à mesa para serem redefinidos. Há até os que acreditam que a racionalidade é uma espécie de “prisão intelectual” que impede a mente de alçar voo livremente.

O atenuamento da injustiça ocorre de várias maneiras, sempre sutis, mas as três mais curiosas são a humanização, a relativização holística e a inversão da prioridade.

“Humanização” aqui se refere a utilizar aspectos da vida pessoal de um emissor como argumento em favor de suas ideias. Qualquer argumentação em favor do “lugar de fala” precisa estar atenta para não cometer esse erro — por mais que seja válido e importante ouvir aqueles que normalmente não são ouvidos. O problema ético aqui é que a moral “ilibada” ou a “sinceridade” dos princípios de uma pessoa têm tanto valor quando suas máculas morais e sua insinceridade. Podem servir para avaliarmos a biografia do indivíduo, mas não suas ideias. A “humanização” a que me refiro não é a humanização do indivíduo sabidamente detestável (como Hitler), embora isso também ocorra, refiro-me a encarnar uma ideia em uma pessoa, para que respeitemos a ideia em função da biografia de quem a defende.

“Relativização holística” quer dizer a negação do princípio da controvérsia. Não se trata de dizer que uma ideia ruim não é tão ruim assim ou que uma ideia boa não é tão boa. O tipo de relativização “isentona” a que me refiro consiste em dizer que não há polaridade de ideias, que ambas as ideias são partes complementares de uma mesma peça. Um exemplo dessa argumentação é a “teoria da ferradura”, segundo a qual “os extremos se tocam”. Quando a frase foi proferida, sua intenção pode ter sido boa, pode ter sido a de alertar contra os perigos do extremismo, mas hoje, tanto tempo depois, este conceito é empregado para negar a própria existência de oposição entre princípios que são naturalmente opostos. Para o “isentão”, tanto faz se você defende os direitos humanos (social-democracia) ou se defende o extermínio seletivo de seres humanos (nacional-socialismo), caso você defenda ardorosamente melhores salários, jornadas de trabalho mais humanas, educação gratuita e saúde universal você pode se tornar exatamente “um Hitler” sem precisar construir nenhum campo de concentração. A saída “isentona” para os “perigos” desse extremismo é uma espécie de apatia moral, como se o “isentão” se colocasse fora da sociedade, como mero espectador de sua derrocada.

“Inversão da prioridade” significa considerar a “isenção” como um posicionamento, em vez de uma atitude. Embora o “isentão” se apresente como um true neutral; ao definir a neutralidade como um fim, em vez de um princípio, o “isentão” está disposto a descartar evidências que exigiriam uma tomada de posição. Para o “isentão”, qualquer elemento que dê razão a um dos extremos se revela como uma ameaça, porque significa que sua isenção é insustentável. Assim, para justificar sua continuada neutralidade diante de um conflito que persiste, o “isentão” passa a atacar a informação, agindo, agora, como um legítimo obscurantista. Em casos extremos, o “isentão” pode chegar a fabricar evidências para deslegitimar ou fortalecer os lados opostos, de forma a manter o “equilíbrio”, para que ele possa continuar a enxergar uma isonomia.

Por exemplo: uma isonomia entre um professor universitário com um discurso político bastante tradicional e um político “controverso” com um discurso confrontativo baseado no ódio e no voluntarismo. Para o “isentão”, ambos são “extremistas” de alguma forma. Outro exemplo é a busca do compromisso entre os que propõem a destruição da natureza em nome do lucro e aqueles que acreditam que é preciso parar a destruição para tentar assegurar a sobrevivência da própria humanidade. Os primeiros podem aceitar uma redução da devastação, e serão chamados de razoáveis, ainda que seus atos conduzam ao apocalipse, enquanto os segundos serão chamados de radicais, apesar de buscarem a salvação do mundo.

Um quarto mal desse sistema de coisas é aumentar a credibilidade do jornalismo marrom, porque esse tipo de imprensa não hesita em tomar partido claro por um lado, o majoritário. Como a imprensa sensacionalista não busca o equilíbrio, ela passa mais credibilidade. De certa forma, ela tem mais credibilidade. As fake news são mais críveis exatamente porque não nos pedem desculpas nem têm medo de assumir uma versão.

Alguns desses “isentões” se refugiam na covardia política de adotar e pregar o voto nulo, vendo na sua mera abstenção uma virtude, um poder. Outros preferem agir como divas quando as luzes estão focadas sobre eles, “chupando e assoprando” para demonstrarem que não se comprometeram realmente, nem quando a realidade exigia um posicionamento. Exemplo claro disso foi o Mano Brown “apoiando” a candidatura de Haddad e falando mal do PT em público, municiando o adversário. Nada é mais paradigmático do “isentão” que se acha a última bolacha do pacote do que essa atitude. Em vez de humildemente emprestar sua bandeira a uma luta alheia, o “isentão” aproveita o momento de necessidade do seu adversário para se pavonear como moralmente superior. Afinal, o melhor momento para se discutir a legitimidade da cadeia de comando é exatamente quando o oficial em comando está organizando a defesa contra o ataque inimigo. Não há momento melhor, a não ser, talvez, organizando justiçamentos de dissidentes dentro dos presídios da ditadura. Aí então é o máximo da biografia.

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