Quanto Você Quer Pagar?

Quanto você pagou pelo seu dia de hoje? Nada? Tem certeza? Provavelmente você está enganado, tanto quanto eu estive durante décadas perdidas de minha vida. Cada dia que você vive está pago, e muito bem pago, com uma moeda cujo valor subjetivo é maior que o do dólar e o do iene: a liberdade. É com liberdade que você paga por lhe terem deixado vivo mais um dia. Com ela você comprou, indiretamente, o pão e o café que o prepararam para outra jornada. Esta, […]

A Viagem Para Samarcanda

O comerciante Ali ben-Amin al-Assad el-Hajj tinha uma vida regalada em Basra. Herdeiro de longa tradição de mercadores do Golfo Pérsico, de família aparentada à de uma das viúvas de Maomé, desfrutava de fortuna e de prestígio. Mas nunca cuidou de educar seus filhos nos preceitos do Islã ou nas artes humanas. De sorte que seu único filho homem, Ahmed, ao herdar do pai o amplo bazar defronte o porto, foi alvo de um duro comentário do mulá Omar Ibrahim al-Qassam: “é um depravado, filho […]

Quando Provei de Tua Boca

Quando provei de tua boca, o que caiu foi claro como calmo ar sob o sol numa manhã tonta espremida entre um sonho e outro. Espargi palavras sem sentido, algumas atingiram teu ouvido. Contive-me, contudo, considerando minha covardia. Mudo, sonhava tua nudez. Quando eu senti tua presença, o perfume perto, o hálito denso, o toque tépido de dedos dóceis, a falsa frieza de uma carne aflita; o que pensei foi puro, foi místico e pousou como um pensamento antigo. Folhas secas farfalhando no silêncio, a […]

Sentidos

O que fizemos foi muito belo, mas foi uma loucura sem sentido. O sonho é uma peçonha aparecida apesar do que somos nas manhãs. Estávamos lá entre coqueiros e sol, bonitos e molhados de mar, e até a porca que passou na praia mereceu entrar em um poema. — Mas como foi sem sentido, se sentimos tanto não ter sido eterno? Aquela noite ganhou cores, aqueles dias ficaram sólidos na alma e ainda hoje o teu perfume purifica-me. O que eu sei de sentidos é […]

O Fascínio do Latim

Os homens de lodo e de sono aguardam o fim da última vela repetindo com vozes defuntas suas preces de cor sem sentido. O fascínio do latim está perdido e a força do fantástico apagou-se, nenhum Aquiles romperá o nada para lutar contra palavras ocas. A Torre de Marfim sofreu o golpe, os que nela vivem se espantam, mas as plantas crescem sem Platão e os pássaros não ouvem Nietzsche. De dentro do esterco nasce a rosa, de dentro dos ruídos, porém, nada. Nada nas […]

A Montanha

De qualquer ponto da cidade se pode ver a Montanha com sua ampla face de granito, uma larga presença a esconder o horizonte. Seu cume coberto de ralas árvores e rochas menores não é tão imponente, a não ser por estar tão alto. Subindo imponente como uma muralha, firmeza de séculos, sem flores nem poemas, é mais que um acidente geográfico, tornou-se parte da personalidade de Santa Cruz do Monte. Ao pé da montanha cresceu a cidade, contemplando o granito e se agarrando à lama […]

Queridos Filhos da Pátria Amada

Vão dizer que sou viúva da Ditadura só por eu dizer isso, mas a verdade é que tenho saudades dos antigos desfiles do Sete de Setembro, dos desfiles que havia quando eu era moleque de escola lá em Cataguases. Eram os tempos da Ditadura, sim, e muita gente sofria, mas eu era criança e não tinha que saber disso. O que me importa nessa saudade é que, naquela época, o Sete de Setembro era algo bonito de se ver, e não esse espetáculo desorganizado e […]

O Amor Partido

O amor partido deixa dentro da saudade a marca de saudades mais profundas e anteriores. Saudades que não são vontades. As saudades que lhe tenho, ex-amor, não querem tê-la mais; querem algo que não se sabe. Quando a vejo agora, não sinto nada. Porém quando a vejo em sonhos, sinto uma quase dor. Eu amo ainda quem você foi, mas esqueci quem você é. Até os ciúmes que lhe tenho agora não são de você estar com outro, mas de ter estado comigo. Esta espécie […]

O Jardim Secreto

Na minha cidade havia uma casa enorme, mansão dos tempos dos barões do café, que estava abandonada e tinha um jardim também impressionante. O jardim ficava detrás de altos muros e estava tomado já de ervas, depois de décadas de esquecimento. Mas quando olhávamos pelas gretas do portão, víamos lá dentro aquelas árvores exóticas, aquelas fontes onde já não jorrava água, cobertas de mato. Havia uma dignidade, uma disposição artística ali. Algo que o descuido não apagava. Era um desafio comum em minha infância saltar […]