O Telefone

Meu primeiro texto de ficção fantástica, datado de 2005 ou pouco antes, incorporando elementos, então ainda bem vivos, das minhas impressões da primeira viagem aérea.

Pensei no aparelho tranquilamente pousado à cabeceira da pista, reluzindo sua pintura branca sob o sol atípico daquela tarde de inverno nebulosa e morna e me acalmei. Depois o vi taxiar paquidermicamente em direção ao setor de embarque, sob os olhares tensos dos passageiros ainda indecisos se embarcariam ou não. Deteve-se ali, resfolegando como uma ave mitológica, até que todos entrassem.

Entrei quase por último, ainda pensando se valia a pena correr outra vez o risco de voar naquelas aeronaves que tão frequentemente andavam sofrendo acidentes horríveis. Mas qual acidente aeronáutico não é horrível? Qual argumento melhora a perspectiva de que não há, na verdade, nenhuma verdadeira segurança em nada que o homem faça — ainda mais estas coisas de voar, tão audazes e precárias que um simples pássaro as pode ameaçar?

Dentro estava aquele ambiente estranho que só quem já esteve nas entranhas de um avião já pôde ouvir. Aquele zumbido agudo e ininterrupto das turbinas em baixa rotação, aquele cheiro de combustível que sub-repticiamente invade através das portas que haviam aberto para que entrássemos, o odor de plástico e tecido lavado com detergente industrial. As comissárias de bordo transitavam pelo corredor orientando-nos com seus uniformes rígidos e suas faces pintadas de bonecas, suas vozes metálicas de autômatos, quase artefatos, impessoalmente cumprindo rituais meticulosos e repetidos, atos quase mágicos a esconjurar os perigos.

“Se ocorrer despressurização da cabine, esta luz vermelha se acenderá e máscaras de oxigênio cairão dos compartimentos localizados acima dos assentos. Cubram o nariz e a boca, conforme estou mostrando, e respirem bem devagar para não perderem a consciência.

“Qualquer ruído estranho que perceberem, olhem para nós. Se estivermos continuando nossas tarefas normalmente é porque nada de anormal está acontecendo.

“Se ocorrer alguma situação de emergência, todos serão orientados a proceder de modo adequado. Em hipótese alguma se levantem de seus assentos durante uma situação de perigo. Esta atitude só servirá para aumentar os riscos.”

Tranquilizados após sermos informados de que não há nada que possamos fazer para salvar-nos em caso de problemas, apressamo-nos todos a distrair-nos das possibilidades lendo os jornais, ouvindo música ou assistindo pela janela o desenrolar dos últimos preparativos.

Esta aeronave doméstica possui apenas uma classe, três assentos do lado esquerdo, dois do lado direito em cada fileira. Mais de cem pessoas se acomodam desconfortavelmente para a viagem que durará, talvez, três ou quatro horas.

Me pergunto se desta vez ainda conseguirei manter-me calmo diante da perspectiva de estar respirando o mesmo ar que tanta gente. Olho em torno para verificar com quem compartilharei o meu precioso alento e vejo uma miscelânea de pessoas unidas apenas pela tensão do embarque e pela inexpressão em seus rostos.

Uma jovem grávida, loura, de mãos dadas com seu marido de olhar obtuso e aparência bovina. Um turista gringo, com roupas tão coloridas como só eles e os palhaços têm coragem de usar, pigarreia insistentemente e bate as mãos com insistência contra as pernas, como se espantando a tensão de voar sob os cuidados de uma tripulação do Terceiro Mundo. Uma bela jovem de traços indígenas, com dentes tão brancos que parecem ser uma ilusão, seios grandes e flácidos e cabelo tão liso que me convida a correr meus dedos por ele afora. Um jovem negro, entretido com seu computador portátil, nervosamente ajeitando sobre o nariz seus óculos sem aros. Um senhor idoso e muito gordo, respirando ruidosamente e nunca fechando a boca desdentada, envolta em pelos desagradavelmente manchados de amarelo. Uma mulher macérrima, de nariz agudo e lábios carnudos, quase como uma personagem de desenho animado. Duas moças negras, ambas belíssimas, vestidas de modo simples e quase elegante, conversam animadamente e gesticulam incompreensíveis indicações de coisas e pessoas. Um homem jovem, talvez de vinte anos e pouco, excepcionalmente bem-vestido e até parecendo morto, de tão calmo e alheio, ouvindo música de seu walkman enquanto seus olhos, sob duas cerradas sobrancelhas, permanecem fechados. Duas irmãs de caridade usando seus uniformes e suas faces impassíveis. Um funcionário de alguma empresa, decerto subalterno (já que usa uniforme), mordendo os dedos com quase um ódio.

E todos com suas histórias e seus adiamentos aguardam o instante de decolarem rumo a seus destinos. Tantas pessoas com histórias que eu nunca vou conhecer. Ninguém interessado em conversar. Como eles me verão, se é que me olharão?

“Atenção, senhores passageiros. Mantenham-se em seus assentos e apertem os cintos de segurança.”

Olho pela janela e percebo que a aeronave ainda está parada. Subitamente sente-se um leve tranco e ela passa a deslocar-se, a princípio tão lentamente que parece não poder ir a lugar algum. O aeroporto, neste momento, parece um labirinto interminável de caminhos não-sinalizados que o piloto tem de decifrar para atingir a pista autorizada e arremeter rumo ao céu. Ocasionalmente passamos tão junto a outros aparelhos que as asas quase parecem tocar-se. A tensão carrega-se sobre nós como eletricidade, a ponto de quase podermos ver as fagulhas. As comissárias recolheram-se a seus assentos também e estão todos esperando o momento de desprendermo-nos no chão.

Chegamos, então, à pista de decolagem. Qualquer um que visse de muito alto perceberia o aparelho como uma mosca arrastando-se pelo princípio de um longo palito negro deitado sobre o chão. Mas para nós que dentro dele estamos parece que a pista é estreita a ponto de as asas estarem fora e qualquer resvalo no manche poder resultar em sairmos do estreito espaço apropriado e cairmos em capotagem dantesca da qual não sobreviveríamos. Um outro tranco, já não tão leve quanto o primeiro, e estamos ganhando velocidade a uma taxa impressionante. Leigos como eu sequer estimam a quanto estamos quando, enfim, o comandante faz o avião arremeter de bico rumo ao céu, oscilando no ar, por um momento, antes de, finalmente, assenhorar-se de suas forças e erguer-se a cortar o ar quase verticalmente.

Sinto o peso de minhas costas me empurrar para trás e a muito custo giro a cabeça para olhar através da estreita vigia para ver o chão perder muito devagar sua importância. Vamos subindo como um elevador sem cordas, sacudindo as vezes com as correntes de ar, as turbinas ocasionalmente parecendo engasgar. Ninguém sorri neste momento, nem mesmo os mais acostumados. Os que já se calejaram de viagens distraem-se com futilidades enquanto os marinheiros de primeira viagens agarram-se aos seus assentos e preces. Os bravos, em silêncio. Os fracos, em murmúrios. Ninguém presta atenção à musiquinha que toca sem parar.

As nuvens vão chegando perto. Um certo receio ainda místico atinge-nos quando deixamos a esfera original do homem e cruzamos o limiar dos domínios amorfos e intocáveis dos sonhos antigos. Não vemos anjos nem deuses por aqui, apenas ocasionais ilhas de algodão que flutuam sob nós e deixam suas sombras tênues na paisagem segmentada do país que está lá embaixo, deitado como um animal que jaz às margens do Atlântico.

O aparelho inclina-se ligeiramente à esquerda para fazer a ampla curva que nos voltará para o norte-nordeste e é neste momento que eu começo a me sentir mais estranho que nas vezes antes em que viajara. Novamente o avião sacode e hesita na luta contra a altitude ainda insuficiente. Olho para trás em busca das comissárias para ler em seus rostos respostas para meu medo que acumula-se como uma febre galopante. Nada lá, elas não estão à vista e isto em vez de me dizer que a rotina continua me conta que algo está errado e a semente do pânico germina dentro de mim, em terreno fértil e amplamente irrigado.

Desta vez a sacudidela foi um arranco, e não como antes. Outros passageiros se agitam, voltam-se, perguntam-se, ouço suspiros e o avião oscila ligeiramente da esquerda à direita, como um navio ao sabor da maré. Fito pela vigia, fixo meus olhos na turbina direita, sobre a qual o sol da manhã retine, azedo e claro. Meus olhos leigos nada entendem que possa aumentar a apreensão ou me curar a vontade de gritar por Deus, Alá ou qualquer entidade sobrenatural que tenha asas e vontade de me tirar desse claro pesadelo.

Recosto a cabeça contra o assento e de repente a vibração da aeronave muda de frequência. Alguma coisa cai lá atrás, com um impacto audível. Talvez alguém que levantou-se. Outro baque e já ouço gritos de desespero. Uma comissária de bordo adentra o recinto, seu rosto de madeira não move um músculo.

“Atenção, senhores passageiros. Por favor, mantenham a calma. Estamos atravessando uma zona de turbulência e o comandante terá de fazer alterações no plano de voo. Durante os procedimentos poderão ocorrer ruídos estranhos ou sensações de impacto causados pela aceleração ou pela desaceleração. Pedimos a todos que permaneçam em seus assentos e conservem a tranquili….”

Antes que pudesse terminar um estrondoso estalo se ouve. Olhamos vários de nós através das vigias do lado direito e vemos, incrédulos que a turbina parece estar se desprendendo da asa. Desta vez a mulher de madeira não consegue se manter impassível, pois também vê. Olhamos todos em sua direção, náufragos de esperanças em busca de algum alívio. Ela não abre a boca, mas engole em seco e seus olhos parecem ser de vidro. De repente brilham estranhamente mais e ela se retira para a parte de trás dizendo “um momento, por favor” quase como se não tivesse nada a dizer, mas tinha.

O comandante nitidamente altera o curso da aeronave. Já não continuávamos na intrépida investida para cima. Nivelado a princípio, logo o avião principia a inclinação à frente que tanto temíamos. O ângulo de descida revela a urgência da manobra e aumenta exponencialmente meu desespero pois, como engenheiro, temo que uma estrutura visivelmente fatigada e frágil como a asa direita talvez não suporte o esforço de desacelerar e estabilizar rumo a um pouso de emergência.

“Atenção, senhores passageiros. Aqui é o comandante. Estamos iniciando uma descida de emergência. Permaneçam em seus assentos e obedeçam rigorosamente às instruções das comissárias de bordo.”

Duas mulheres atravessam o corredor, em passos instáveis e já sem faces de bonecas. Maquiagens borradas e músculos retesados ao máximo, suas vozes são mais por maquinismo que vontade. Elas foram treinadas para ter medo e sobrevivê-lo, para desesperar-se e salvar-se ao mesmo tempo, para chorar lutando e ajudar sem perguntar. Ensinam-nos a curvar-nos sobre o abdômen e cruzar os braços para aguardar o possível impacto. Depois de tudo terminado, deveríamos procurar a orientação do pessoal de bordo para a evacuação do aparelho.

E elas logo abandonam-nos outra vez a nossos temores. Encolhidos fetalmemte aguardamos pelo momento crucial. O ângulo de descida vai lentamente sendo suavizado, mas temo que a velocidade não. Com o rabo de um olho observo outra vez a turbina direita a tempo de outro impacto desarranjar-nos e vê-la despregar-se e, numa fina ironia, liberta do peso do aparelho, seguir adiante por instantes, antes de o combustível faltar-lhe e ela morrer numa queda quase poética.

A asa direita está espedaçada e não resistira a nada mais. O aparelho já não desce em ângulo algum, mas precipita-se em parafuso, cortando o ar loucamente como uma peteca. A serra verdejante se aproxima impiedosamente. Uma escuridão se abate sobre nossos olhos como se nos recusássemos a ver a fatalidade derradeira. No último instante sinto o aparelho quase nivelar-se, esforço ou sorte, e a oscilação se estabiliza antes de um horrível som arrebentar-nos de todo tipo de controle.

Arrastar de árvores. Rugido louco da turbina superior a invadir-nos através das janelas quebradas. Muita umidade da floresta purifica o ar curtido de tantas respirações sobressaltadas. E paramos.

Longos suspiros atravessam todo o aparelho. Aos poucos as cabeças vão erguendo-se. Gritos de “Ai, meu Deus!” misturam-se a palavrões. As comissárias voltam trazendo estojos de primeiros-socorros e sorrisos renovados.

— Por favor, alguém está ferido?

Poucos, bem poucos estão. Alguns do fundo tomam a iniciativa de dar vivas ao piloto. Vários ameaçam levantar-se. E a essa altura nem as comissárias parecem interessadas em conter a efusão de alívio que incendeia a todos. Menos a mim que me sinto estranho e ainda não entendo o que pode ter acontecido. Mas entendo e estou feliz. E peço apenas que alguém que traga-me água tônica com gelo e limão.

Ouve-se outro estrondo. Um grito extremo e diversas pessoas atiram-se ao desespero.

— Calma, calma! — solicita o pessoal de bordo — Este ruído foi apenas a abertura das saídas de emergência.

Uma das comissárias tenta abrir a porta para a cabina de comando, mas está travada por dentro. Pelo intercomunicador ninguém de lá responde, nublando por um momento o alívio que sentíamos. Mas logo a voz cadavérica do comandante irrompe dos alto-falantes:

“Senhores passageiros, dirijam-se para as saídas de emergência localizadas, nas partes anterior e posterior da aeronave. As saídas disponibilizadas estão do lado direito do aparelho.” — Começa então a evacuação.

A escada inflável já está posta. Os primeiros a ir são tripulantes, para postar-se em terra e ajudar os passageiros a descer. Não tenho especificamente nenhuma pressa e aguardo a minha vez com resignação quase monástica.

Quando finalmente chego à porta, olho rapidamente a paisagem externa e me faço escorregar até o chão. Sou recebido por uma comissária negra, de sorriso plácido e mãos firmes, que não me diz nada e nem parece me distinguir dos demais.

Após sorrir ela me ajuda a erguer-me e me liberta na clareira que o avião formou ao pousar, meio de lado, arrastando muito mato e derrubando algumas árvores. Estamos em um lugar quase plano, coberto de vegetação rasteira e indefinível, algumas formações rochosas podem ser vistas à meia-distância, mas os detalhes da paisagem estão borrados pela densidade da neblina que desce. Provavelmente é algum planalto na Serra. Algum lugar, porém, interessante, pois todos olham sem nada ver, todos admiram sem nada reconhecer.

Formamos um grupo em meio à neblina, a vinte metros ou menos do corpo machucado da aeronave, que jaz ali como um peixe extraído do rio e atirado a um matagal. Percebemos a razão de a cabina de comando não ter podido ser aberta: a frente do aparelho está toda destruída. Provavelmente ela sofreu o impacto final contra o solo, vitimando sem perspectivas todos, ou quase, lá dentro. As comissárias não nos contaram, mas agora sabemos, que aquelas vozes eram gravações.

A constatação destas mortes nos consterna, mas estamos vivos e isto já é uma felicidade. Descem os últimos e logo começam vir caixas e mais caixas de coisas que as comissárias trazem dos recônditos traseiros do aparelho. Caixas que provavelmente estão repletas destas substâncias a que chamam de comida, de remédios, de utensílios que talvez nos sejam úteis. Do alto da escada uma das muitas e maquinais mulheres que nos orientaram durante o voo prossegue em missão:

“Senhores passageiros, atenção. Nossas comunicações foram destruídas juntamente com a cabina de comando. Por isso não temos como relatar onde estamos. Teremos de aguardar aqui até que nos encontrem e resgatem. Estamos retirando do avião toda a comida que possuímos e também algum equipamento que pode vir a ser útil. Estamos fazendo isto porque o avião está em uma posição instável e pode cair no abismo a qualquer momento. Principalmente se voltar a chover e o solo ficar menos firme no lugar onde ele está pousado agora.”

Subitamente nos damos conta do rente que foi nossa sorte, do perto que foi de morrermos todos. O aparelho está ligeiramente adernado à esquerda, a asa dianteira resta como um braço amputado e a esquerda mergulha rumo à ríspida inclinação do precipício. O “pouso’‘ foi, na verdade, uma queda mais ou menos controlada contra um platô arborizado e a aeronave deslizou por sobre até quase o outro lado, ficando pendente da borda, pronta para cair ao menor vento. Talvez algum dos barulhos que ouvimos depois do fim da aterrissagem tenha sido justamente o deslizar da fuselagem sob seu próprio peso. Essa constatação me faz admirar ainda mais a coragem das aeromoças.

Lamentavelmente aviões não costumam carregar muita coisa útil para acampamentos porque sinceramente não se espera sobrevivam passageiros ou tripulação após uma queda. Escovas de dentes com o emblema da companhia não servem para nada quando se está na selva. E a comida toda que havia era aquela que embarcou no aeroporto, já pronta e embalada. Durará por horas apenas e nos deixará, depois, passar alguma fome até chegar quem nos salve.

Apesar deste sol mortiço que brilha sobre nós, não se dissipam nem por um segundo as nuvens pesadas que branqueiam e toldam o horizonte. Parece que estamos em uma alta montanha, cercada de abismo, mas com alguma possibilidade de termos sobrevivido fantasticamente. Em nossos relógios ainda é meio-dia e está frio.

Então a cabina de comando se abre. Um homem aparece à porta. Logo vemos que traz, apoiada a si, uma mulher em uniforme como o seu. Membros da tripulação da cabina. Sobreviventes como nós.

Ajudam-no a descer. É um homem de seus cinquenta anos, está em choque e se conserva calado. A mulher não vai durar. Possui um ferimento extenso através do tórax. Eu evito olhar, mas me contam que se podem ver costelas através do corte. Falece em poucos minutos e de repente descobrimos que temos muito mais sorte do que antes pensáramos.

— Onde estamos, comandante? — pergunta uma das comissárias.

— Nem tenho ideia. No final os aparelhos de navegação pareciam enlouquecidos. Eu olhava para aqueles ponteiros todos girando e era como se nada fizesse sentido. Só sei que estamos, provavelmente, a cerca de uns cento e vinte quilômetros a leste de onde partimos.

Uma das aeromoças interfere:

— Cento e vinte quilômetros a leste não pode ser. Isso seria já sobre o Oceano Atlântico. E não sei de nenhuma ilha montanhosa em frente à costa nesta altura do litoral.

— Sei o que vi até o momento em que tudo começou a dar errado e caímos aqui. Decolamos em direção a sudeste, iniciamos uma manobra de conversão para norte-nordeste através do leste. Tive de desviar mais para o leste para escapar de uma zona de turbulência muito forte e evitar uma tempestade. Então, antes que o avião chegasse à altura de cruzeiro, começamos a perder força e a turbina direita foi a se despregar. Quando vi o que ia acontecer pensei em descer para tentar fazer um pouso de emergência no Rio de Janeiro, talvez até uma amerissagem. Então eu de repente vi terra e tive que tentar estabilizar para não bater e viemos de barriga e meio de lado contra este platô. O avião bateu de nariz contra o chão, mas por sorte virou de lado em vez de explodir. Arrastou por quase um quilômetro e parou nesta beirada que parece uma falésia ou uma borda de platô.

A história do comandante não fazia mesmo muito sentido. Mas àquela altura saber o que ocorrera não era a sequer a terceira de nossas preocupações. Tínhamos de decidir o que fazer, já que o rádio fora destruído e a comida não duraria mais que horas.

Então apareceram umas luzes em meio à distante neblina. Eu fui um dos que a avistaram. Juntamente com outros, já que a maioria não parecia ter se apercebido da novidade, afastei-me e pude ver que eram na verdade várias e de diversos tamanhos e cores, apenas haviam parecido uma e uniforme por causa da distância e do efeito da neblina amortecendo as cores e borrando os contornos.

Aproximava-se muito lentamente, ou talvez estivesse vindo de muito longe e fosse muito grande. Ao fixar mais a atenção, percebi que vários estávamos simultaneamente olhando — o que talvez explique a comoção que se seguiu quando aquelas luzes que vinham exatamente em nossa direção desapareceram na distância sem chegar, como se o objeto que as portasse houvesse feito uma curva impossível no ar e retornado exatamente ao ponto de origem.

Nosso grupo era constituído de dezenas de pessoas diferentes em cor, raça, casta e credo e estávamos todos assustados e sem a mínima noção de onde era ou do que podíamos fazer. Perguntar “o que foi aquilo?” era a atitude mais comum enquanto nada mais aparecia para fazer. O piloto percebeu e tratou de organizar passatempos para que pudéssemos ficar ocupados até o resgate sem perdermos a cabeça. Recebemos a incumbência de percorrer aquela planície nas alturas para determinar seu tamanho — já que a neblina se espessava e impedia vermos mais que palmos além sem a interferência da brancura sobre as luzes e as formas.

— Estou imaginando que este platô seja bem comprido em algum sentido, mas bem estreito em outro. Vamos usar lanternas para não nos perdermos uns dos outros e vamos tentar chegar às bordas.

Havia mais de vinte lanternas disponíveis, o que facilitou o trabalho — embora elas fossem todas de baixa potência. Uma lanterna mais potente, ligada a um gerador, foi colocada junto ao avião. O primeiro explorador seguiu em direção contrária levando uma lanterna portátil, caminhou até que a luz em suas mãos ficasse quase imperceptível. Comunicando através de piscadelas em código, foi-lhe ordenado que voltasse um pouco e esperasse. O segundo explorador o alcançou e seguiu adiante, fazendo o mesmo tipo de arranjo. E assim, sucessivamente, vinte pessoas se revezaram sem chegar à borda do abismo.

Retornaram todos e continuava a ignorância entre saber ou nem pensar em que.

— Não dá para ir mais longe porque a neblina está se adensando — dizia o piloto. Se vocês se separarem mais vão se perder uns dos outros e aí passaremos também a ter a preocupação por vinte pessoas perdidas neste planalto desconhecido.

— Tenho uma ideia — sugeri. Porque não fazemos uma varredura em círculo depois que estabelecermos outra vez a fila das lanternas?

— Boa ideia — concordou o jovem executivo com seus nervosos óculos sem aro. Você quer ir na frente desta vez?

Senti-me honrado pela oferta e — diante do medo que já estava se instalando em todos — aceitei o encargo.

A longa fila de vinte pessoas com lanternas na mão se formou outra vez (desta vez mais curta que antes, devido ao aprofundamento do entardecer, adensando ainda mais a neblina). Na ponta da fila ia eu, pisando garbosamente e com muito medo aquele chão estranho e instável que às vezes parecia um carpete fofo e em outras era como um pântano turfoso.

Começou a varredura, do sul para o norte. Cada membro estava à distância de conversa do outro — e no silêncio daquela obscuridade branca vozes incorpóreas trocavam impressões do que aparecia, principalmente impressões do nada (porque, além de receios, nada havia).

Mas então eu o vi. Havia uma espécie de montanha que não havíamos visto e ela devia estar a um quilômetro do avião, não mais. Dela eu só via a fímbria, uma orla verdejante de coisas que pareciam musgos de um pretérito perdido.

— Eu acabo de ver alguma coisa — confessei. Vou sair do seu âmbito de visão para ir lá. Oriente-se pela minha voz. Se eu parar de falar, volte ao avião e tente buscar ajuda.

— Não faça isso, cara! Nós não sabemos nem onde estamos.

— Pelo que me consta isto aqui é qualquer lugar no norte do Paraná ou na serra da Mantiqueira, dependendo de quanto o comandante bebeu hoje antes de voar.

O rapaz que vinha atrás de mim tentou me convencer a não fazer aquela loucura, mas eu a faria ainda que ele tentasse me laçar. E ele tinha medo demais para tentar me seguir aonde eu estava indo.

— Parece ser uma montanha. É uma uma grande massa de rocha negra suja de musgo e líquens. Em alguns lugares parece haver folhas mirradas de plantas minúsculas e licopódios. Mas, hei! Esta coisa está mais perto e é menor do que parecia!

Meu interlocutor insistiu pela última vez para que eu voltasse, mas eu o ouvia apenas como um suave murmúrio na distância.

— Definitivamente isto aqui é, no máximo, uma pedra grande com alguma vegetação em cima. Estou começando a rodear em sentido horário. Se a base for mais ou menos no esquema em que estou vendo, deve ter um diâmetro de noventa metros, não muito mais.

Rodeando a rocha, então, foi que percebi a estranhíssima visão:

— Estou rodeando e até agora não vi nada. Hei!? O que é isso? Sujeito! Você não vai acreditar no que eu estou vendo aqui agora? Um orelhão!

A voz do penúltimo da fila era quase inaudível àquela altura:

— Volte, tem alguma coisa errada! Você está delirando.

Não estava. Diante de mim estava um telefone público azul-real. Novo como se tivesse sido acabado de instalar. Localizado dentro de uma área quadrada recortada na pedra maciça. Só mesmo rodeando a montanha de perto ou aproximando-se dela exatamente de frente para a entrada de labirinto era possível ver aquela peça de absurdo jazendo entre as nuvens naquela manhã de sexta-feira. E o mais extraordinário foi que, no instante exato em que meus pés pisaram pela primeira vez o recinto em que ele estava, ele tocou. E tocou ainda muitas vezes antes de eu ter coragem de atender.

Se eu lhe contasse o que havia do outro lado da linha, ou tudo que aconteceu depois, você não acreditaria. Muitas vezes uma história tem que terminar assim, porque tentar ir além quebrará o encanto. Deixo cada um de vocês com sua interpretação, mesmo porque eu não tenho muita certeza nem da minha, apenas do estranho mecanismo através do qual eu lhes chego, e das estranhas coincidências que passaram a permear a minha existência nesta nova condição.

Apenas reservo-me o direito de relatar o que ouvi, e de esperar que cada leitor encontre uma explicação satisfatória. Quando peguei aquele telefone e o levei ao ouvido eu senti um formigamento no meu braço, uma vontade louca de colocar de volta no gancho, de sair correndo no meio da neblina ou me atirar do penhasco. Porque sem que eu tivesse perguntado havia do outro lado uma voz que repetia “Terminou, terminou, terminou!” e quando eu gritei de volta “o que? o que? o que?” fez-se silêncio naquele lugar, como se eu estivesse só a flutuar entre nuvens brancas. Ouvi um sinal de ligação interrompida, pus de volta o aparelho e peguei de novo, e tive esta estranha necessidade de falar, mesmo sabendo que ninguém está me ouvindo aí do outro lado.

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