O Tesouro de Sérgio

Eu sou dos que não sentiram nunca pelo Sérgio nenhuma afeição especial. Na verdade eu pouco menos que o desprezava desde que o conheci. Mal lhe dava motivos para chamar-me de amigo. Mas ele me chamava assim, talvez por falta de verdadeiros.

Era seu jeito auto-suficiente o que mais me indignava. Não era dado a intimidades, raramente sabia dizer palavras simpáticas e parecia que tinha prazer em desdenhar de tudo.

Mas aos poucos foi-se consolidando entre nós um certo tipo de amizade que a convivência adensa. Na faculdade não havia como evitarmos um ao outro: a mesma sala, os mesmos vinte e poucos colegas. Isso pôde nos fazer achar que éramos semelhantes.

Só que o tempo passou e muita coisa saiu dos eixos. Ele largou o curso no meio sabe Deus porque e foi correr atrás de seus sonhos, enquanto eu me tornava professor. Alguns anos depois nos reencontramos: eu ia para a escola onde dava doze aulas semanais no curso noturno e ele vinha pela rua com uma caixa de ferramentas.

Breves palavras e nos informamos de nossas situações. Ele agora trabalhava como eletricista em ocasionais biscates. E trabalhava também em uma loja de material elétrico. Tinha também umas casas que recebera de herança e cuja renda era o que realmente mais lhe sustentava. Em resumo: não morria de fome, mas não havia ido nem à metade da distância que sonhara ir. Triste fim de um sonhador: viver de aluguéis e de um subemprego.

Nessas condições um temperamento inquieto acaba resvalando para o álcool. E Sérgio sempre tivera predileção por aditivos. Enquanto eu achava que estava tudo bem, naquela tarde ele fora despedido por chegar mais uma vez embriagado.

Fiquei realmente preocupado por Sérgio no dia em que me contaram essa história, semanas depois. Pensei nos muitos anos em que não nos víramos. Às vezes uma pessoa se perde pela ausência dos amigos.

Senti uma ponta de remorso por não ter nunca lhe dado a atenção que talvez esperasse de alguém. E nisso resolvi procurá-lo para lhe dar, talvez, algum apoio. Mesmo temendo que ele apenas achasse que mais um ia tripudiar de sua desgraça. Reservei para isso uma de minhas manhãs de Domingo. Assim não atrapalhava o andamento normal de meus negócios.

Desci do ônibus já com a sensação do dever cumprido e o encontrei sentado à mesa em um bar ao pé do morro.

— Olá, Sérgio.

Pelo seu hálito e por sua voz eu podia jurar que ainda não tomara o café-da-manhã, mas havia uma catinga de álcool em seu bafo e ele tinha um copo de cerveja na mão.

— Olá, quem é?

E virou-se para dizer algumas palavras que ele imaginava serem ofensivas a uns velhinhos que jogavam sinuca no fundo. O problema é que, bêbado, ele xingava em calabrês, língua de seus pai, daí resultando que ninguém se ofendia porque ninguém o conseguia compreender.

— Não lembra de mim, da faculdade?

Ele me fixou uns olhos aturdidos:

— Ah, Gato-Preto! Quanto tempo, hem?

Por um momento eu me lembrei porque eu o havia detestado tanto a princípio. O maldito apelido…

— Então eu venho te fazer uma visita e você não está em casa, seu safado. Ouvi dizerem que você mora mais aqui nesse boteco que lá em cima!

Ele revirou os olhos, cambaleando, e disse:

— Acho que eu não estou me sentindo bem!

E desabou de qualquer jeito na calçada. Todo mundo perto se manteve imóvel, exceto por alguns sorrisos e algumas provocações. Tive então de tomar a iniciativa de ajudá-lo.

Em má hora, pois a conta não estava paga e os trocados que ele levava no bolso não eram suficientes para isso. Para evitar mais problemas, usei seus seis reais e cinquenta centavos e ajudei a levar aquele corpo magro e precocemente enrugado pela ladeira acima até a casinha em que vivia.

Ao chegarmos eu o estendi em sua cama desarrumada, tapei o nariz para evitar o cheiro do banheiro recentemente usado e não tão recentemente limpo e saí enfastiado dali.

Bela visita! Linda perda de tempo numa manhã de domingo ver um sujeito esticado como um submarino em sua cama roncando e babando!

Dei uma rápida olhada nos cômodos, todos pouco e mal mobiliados, poeira se acumulando pelos cantos e um cheiro entranhado nas paredes. “É, parece mesmo que o Sérgio está na pior. Melhor que eu visite de vez em quando para dar uma força ou as coisas podem piorar ainda mais.”

Na sala havia uma pequena escrivaninha com uma máquina de escrever e um maço de papel-ofício, uma estante velha com muitos e desordenados livros e uma televisão a cores que parecia nem funcionar mais de tão antiga.

A lixeira estava quase cheia de folhas amassadas que excitaram a minha curiosidade. Desamassei uma ao acaso e nela encontrei esboços de poemas bem melhores que as minhas tímidas tentativas. Verificando com mais atenção o conteúdo daquela e das outras lixeiras da casa encontrei mais dezenas de páginas com muita coisa a meu ver bastante boa que estava a caminho do depósito de lixo municipal. “Que desperdício de talento! Esse cara escreve tudo isso e joga fora!”

Aí passou pela minha mente o malvado pensamento de me apropriar daquilo que nada lhe custara e que tão facilmente descartava. Com algum esforço eu poderia introduzir modificações bastantes para atestar minha autoria sem pôr a perder inteiramente o pulso vibrante ali contido.

Olhei para um lado e para o outro e não havia ninguém fiscalizando minhas intenções. Então entesourei minha coleta em um insuspeito envelope pardo que havia numa prateleira e me preparei para sair, deixando Sérgio entregue à ressaca.

Mas então eu percebi que havia sido vigiado. A janela da sala se abria quase rente ao limite da posse e dava para o quintal vizinho, onde estava uma mulher que me fitava. Era e teria os seus vinte e sete, vinte e oito anos. Seus cabelos eram escuros, compridos, lisos, brilhantes, pesados. E caíam sobre seus ombros, densos e impenetráveis.

Seus olhos eram muito negros e muito vivos e me penetravam acusadoramente. Ela sorriu quando a olhei fazendo aparecerem numerosos dentes muito brancos e grandes e se aproximou da janela com um passo tão resoluto que parecia estar vindo me matar e perguntou-me sem nenhuma timidez:

— Aconteceu alguma coisa com o Sérgio?

— Ele resolveu beber até cair.

— De novo! Coitado! Ele tem estado tão estranho.

— Ele faz isso sempre?

— Desde que se mudou para cá, deve fazer um ano mais ou menos. De onde o conhece?

— Da faculdade.

— Pobre coitado. O que será que o leva a viver assim?

— Desde que o conheço ele tem um certo gosto pela bebida. Mas beber até se arrastar pelo chão é coisa nova.

— Mas é uma pena. Um homem de tanto talento não devia se deixar cair tanto.

Sorri por dentro ao perceber na voz da mulher uma ponta de atração por Sérgio. O ano de vizinhança não fora bastante para que percebesse as nítidas tendências homossexualidade que havia nele. Um incerto sentimento de pena passou por minha mente diante desta constatação e não pude deixar de pensar que era meu dever desiludi-la, mas diretamente.

— Sérgio é o tipo que não tem amigos nem amores.

— Eu percebi, ele é muito mais arredio que o normal…

— Ele sempre foi grosso mesmo. Me surpreende até que ele tenha deixado que você ficasse sabendo o seu nome.

A essa altura, passada já a impressão de que ela vira alguma coisa digna de atenção em minha conduta altamente suspeita, convencido de que ela nem mesmo se lembraria depois de ter me visto sair com um envelope pardo na mão, pedi-lhe licença, fechei a janela e saí. Chamei-a à porta da rua e ela veio, andando com uma elegância de sambista. Os volumosos seios tripudiavam de minha timidez, mas não consegui pensar em nada para dizer de imediato, não antes de ela já haver dito que sentia muito ver Sérgio naquele estado e que seria bom para ele que os amigos aparecessem com mais frequência. Fui sincero ao dizer que realmente pretendia voltar para vê-lo. Mas acrescentei que, embora Sérgio fosse um bom escritor, pelo menos aos meus olhos não era um bom sujeito.

— Não tenha tanta pena dele. Foi a sua própria mão que cavou esta situação em que está. Ele não é flor que se cheire. Sempre mal-educado, mal-agradecido e enrustido em si mesmo. Nenhuma amizade duradoura, nenhum relacionamento amoroso, nada aguenta. Ele parece que tem sempre uma vontade enorme de aparecer e de humilhar os outros.

O brilho foi se apagando de seus olhos enquanto eu falava. Eu previa que o efeito de minhas palavras seria negativo, mas também sabia que não valia a pena passar por herói. As mulheres não amam aos heróis, apenas aceitam ser salvas por eles para poderem voltar a amar homens comuns ou vilões.

— Ele não está tão sem amigos como você diz — havia uma amargura e uma bem nítida recriminação em seu tom de voz — ele tem a mim. Se lhe é tão custoso vir ajudar um semelhante, deixe que eu faço isso!

— Escute o que estou dizendo. Se lhe estender a ele vai bater nela, se lhe der as costas ele aproveitar a chance de enfiar o punhal.

E tomando discretamente o “meu” envelope, despedi-me e saí levando um tesouro.

Originalmente escrito em abril de 2003. Publicado em 24/06/2007.

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