Das Agruras de se Traduzir com Paixão

Há uma grande controvérsia sobre as qualidades necessárias ao bom profissional. Osten­sivamente os manuais de autoajuda não cessam de mencionar a “paixão” como um tal requisito. Todos dizem gostar e querer profissionais que mergulhem com “pai­xão” naquilo que fazem. Na prática o que eu tenho visto ao longo de minha vida pro­fissional é o contrário: os mais bem-sucedidos não são os apaixonados, mas os prag­máticos. Apaixonados tendem a comprometer-se com os resultados, pragmáticos não deixam que os problemas “grudem” em si. A vida profissional é uma grande linha de montagem, onde ninguém é responsável por nada além do parafuso que aperta. Pragmáticos podem ser péssimos para a empresa, mas são ótimos para si mesmos, enquanto os apaixonados vão levando a culpa dos erros dos outros por tentarem resolver aquilo que vai além da sua mesa.

Também no ofício de traduzir, no qual ainda sou um mero diletante, eu já percebi que a paixão nos prega peças, e que a melhor escolha seria uma saudável neutrali­dade “pragmática”. Esta semana cometi um dos meus maiores erros de tradução, e tudo por causa do excesso de entusiasmo.

Don't tread on me

Don’t tread on me

Antes de falar sobre este erro em particular, gostaria de lembrar o desastroso título “A Casa no Fim do Mundo”, que eu havia dado ao romance “The House on Border­land”, de William Hope Hodgson. Neste caso, em meu favor, ainda posso dizer que este título é melhor do que o que fora utilizado pela primeira tradução em português (“A Casa à Beira do Abismo”). Por fim, acatei a sugestão de um leitor e mudei para “A Casa no Limiar”, que é mais poético e também mais literal.

Não, o erro a que me refiro é sutil, porém mais grave, porque afeta todo o enten­di­mento da história. No caso do romance de Hodgson, “A Casa no Fim do Mundo” era um título que se harmonizava com a percepção geral da ambientação. Especialmente considerando as conotações que a expressão “fim de mundo” adquire entre nós, bra­sileiros: Kraighten era realmente um “fim de mundo”.

O conto “The Treader of the Dust”, de Clark Ashton-Smith, foi por mim traduzido como “O Andarilho do Pó” (ainda bem que não há nada envolvido quanto a voos, ou o meu blogue poderia ter sido denunciado). O verbo “tread” significa, literalmente, “pisar”, e eu logo associei expressões como “untrodden ways”, “he who treads on stars” etc. para concluir que, metaforicamente, Ashton-Smith estava falando de algo assim. Por isso, tasquei lá esse título e comecei a traduzir o conto, movido pela pai­xão, e aqui o meu grande erro: sem tê-lo lido até o final. Eu estava tão empolgado com a história em si, e logo também empolgado com o tom absolutamente coloquial que eu estava conseguindo, que não me dei ao trabalho de lê-la inteira antes de come­çar a traduzir: chegando lá nos três quartos da história, retornei ao início e me pus ao tra­balho.

Sem querer aqui entregar “spoilers” do conto (mas inevitavelmente entregando), eu só fui perceber, quando traduzi o último parágrafo, que o título não se refere ao pro­tagonista (embora ele passe metade da duração do conto pisando em poeira). Esta diferença significa que o meu título mudou completamente o foco de um persona­gem a outro, orientando o meu leitor em uma direção oposta à que o original indi­cava. Pior, esta orientação conflitante faz com que o leitor interprete errado alguns elementos da história.

Eu disse que só percebi isto ao traduzir o último parágrafo, mas estou sendo condes­cendente comigo mesmo: na verdade foi até depois. Ocorre que, ao traduzi, eu já não me lembrava do título que dera à história, e que já havia preenchido no formulá­rio do blogue. Assim, quando copiei o texto e colei na caixa do WordPress, eu não percebi que estava publicando a tradução com um título inadequado.

De fato eu só fui perceber isso quando minha página do Google+ me mostrou o título e eu me lembrei, vagamente, da cena final da história. Mas aí já era tarde. As pessoas já estavam enxergando o texto com aquele título, e se eu fosse mudar, teria que compartilhar tudo de novo. Teria que aceitar a vergonha de uma tradução tão errada e pedir desculpas depois.

É isso o que estou fazendo agora, caro leitor. Com todos os defeitos que minhas tra­duções às vezes têm (posto que não sou nenhum profissional nisso), esta é a primeira vez que eu perverto um título. Aliás, é a primeira vez que eu perverto alguma coisa. Minhas traduções buscam ser servis, buscam ser literais. Não tento inventar o que não está no texto. Esta é, aliás, a única razão pela qual ainda não comecei a traduzir “The Night Land” (também do Hodgson), pois ali eu terei de fazer adaptações.

Peço sua compreensão para o que houve, e para a alteração que farei hoje ainda no título da tradução. Não estou cobrindo meus erros, estou só corrigindo-os. E até deixo aqui esse registro, para que todos se lembrem que o erro aconteceu.

Errar é humano, ainda mais quando se trabalha com a paixão antes do método, como é o meu caso. Mas a honestidade de admitir este erro, eu creio, inspira confiança. Tenho medo é de gente que “não erra”, pois provavelmente essa gente só consegue se “descolar” eficientemente das consequências de suas patacoadas.

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