Desafio Entre Contos: Bruxas

Este mês o desafio de ficção promovido pelo site EntreContos me atraiu muito, por se tratar de um tema que sempre me fascinou: bruxas. Tão excitado eu fiquei que logo parti a escrever e, quando dei por mim, construíra “A Virgem do Sabá“, baseado em uma sinopse deixada por Clark Ashton-Smith. Infelizmente esta história ficou longa demais para o desafio e tive de escrever outra!

Da segunda vez, mantive a inspiração no mesmo universo ficcional (de Lovecraft, Ashton-Smith e outros) e recorri temas extraídos de “O Horror em Red Hook” (Lovecraft), “O Colosso de Ylourgne” (Ashton-Smith) e “O Poço e o Pêndulo” (Poe), além de algumas letras do grupo americano Blue Öyster Cult (“Workshop of the Telescopes”, “I Am the One You Warned me Off”, “Astronomy”, “The Revenge of Vera Gemini”, “Harvester of Eyes” e “Wings Wetted Down”). Eu já me inspirara no BÖC para o meu conto Tempo de Semear, Tempo de Colher, que desenvolve uma ideia vagamente inspirada em “Harvest Moon”.

ATENÇÃO: SPOILERS

Para dar mais profundidade, pesquisei as origens da citação macabra criada por Lovecraft (a original em latim se mostrou ainda mais macabra) e li sobre a sobrevivência de cultos pagãos nos pequenos povoados medievais. Com tudo isso em mãos, e a cabeça fixa no interior da França no século XIV, comecei a escrever Beatrix e Jeannelynne, que eu consegui deixar dentro do limite de palavras e de acordo com o tema. Além disso, esse conto acabou bem mais profundo e elaborado do que “A Virgem do Sabá”, embora talvez aquele seja melhor e mais bem desenvolvido.

Ambientei a ação no universo ficcional de Averoigne, criado por Clark Ashton-Smith, ao contrário de “A Virgem do Sabá”, que eu escolhi ambientar em uma região que fica a poucos quilômetros da casa em que nasci, no interior de Minas Gerais. Averoigne teria sido uma província da França medieval entre os séculos XI e XVI (segundo as datas das histórias que Ashton-Smith ambientou lá). Deixei dois indícios disso: o pseudônimo “Gaspard du Nord”, que usei para assinar, e as menções à cidade de Vyonnes, que Ashton-Smith inventou como capital de Averoigne.

A macabra epígrafe de Lovecraft, que eu reutilizo no final, na sua forma completa (por este motivo não imaginei que os leitores se importariam com o parágrafo vir em latim) é um trecho de uma obra chamada “Philosophumena”, publicada no século V, e que aborda as heresias da época. O título é díficil de traduzir, mas seria algo como “entre os falsos mestres”. Trata-se de uma imprecação usada pelos romanos nos rituais de mistério vinculados aos cultos de fertilidade, possivelmente herdada dos mistérios de Elêusis, da antiga Grécia. Então as amigas bruxas que notaram esta voz feminina no texto, mesmo aquelas que não estudaram esta parte, acertaram no alvo.

Gorgo e Mormo são dois títulos atribuídos a Hécate, deusa da Lua. Gorgo quer dizer “a Górgona” (alude ao fato de ela ter uma face terrível) e Mormo significa “Mordedora” e é o nome pelo qual as mães gregas assustavam suas crianças, uma espécie de bicho-papão. Mormo seria responsável por morder e arrancar pedaços de carne das crianças choronas. A cicatriz de sua mordida seria o umbigo. Na religião de mistério, Mormo não é apenas um bicho-papão, mas o aspecto umbilical de Hécate.

Os nomes são também calculados. Gosto de pensar nos nomes de meus personagens como reflexo de sua personalidade ou uma alusão (sempre irônica) ao papel que desempenham na história. Assim, os três nomes citados no texto (Beatrix, Jeannelynne e Pierre de la Fournaise) contêm informações sobre os personagens.

Beatrix é o nome de uma recente Rainha da Holanda, mas eu o escolhi porque significa “Abençoada”, em latim. Este nome esconde uma ironia, pois a personagem foi (ou seria) torturada pela Igreja em razão de suas práticas de curandeirismo.

Jeannelynne é um nome surpreendentemente real, relativamente comum no norte e noroeste da França e bem antigo. Mas é uma forma diminutiva irregular de Jeanne. Então significaria “Joaninha”, ou algo assim. Foi escolhido porque na tradição popular brasileira, chamar uma mulher de “João” é aludir a uma masculinidade inerente. Aqui em Minas Gerais, antigamente, mulher que cortava o cabelo curtinho era chamada de “Maria João” ou “João”, especialmente se fosse negra. O nome dimininutivo é irônico, tal como o apelido de “Pequeno João” ao personagem da história de Robin Hood porque a personagem é andrógina e possui várias características masculinas. Possivelmente até mesmo dotada de algum hermafroditismo porque em sua infância ela chegou a ser vestida de menino. Jeannelynne também é uma personagem do desenho animado Caçadores de Dragões: uma estalajadeira gorda, brutal e péssima cozinheira mas que, mesmo assim, é amada pelo protagonista, o magrelo e tolo Gizmo.

O nome do abade Pierre de la Fournaise é triplamente irônico. Primeiro porque “Fournaise” significa “fornalha”, o que remete a um ardor sexual reprimido. Segundo porque a palavra é frequentemente utilizada, especialmente “no popular” em referência aos reinos infernais. Jesus disse que os ímpios seriam enviados à fornalha de fogo. Como Pierre é um inquisidor cruel e misógino, chamá-lo de infernal é apropriado. A terceira razão é que a mesma palavra também foi usada pelos marinheiros franceses para descrever os vulcões quando descobriram-nos em lugares como Reunião e Maurício. O principal vulcão da Ilha de Reunião, que até hoje pertence à França, é o “Piton de la Fournaise” (Pico da Fornalha). Novamente o abade é predestinado por seu nome a ter uma personalidade complicada.

As artes aprendidas por Jeannelynne depois de deixar Beatrix foram a alquimia (daí utilizar um ácido para dissolver as grades da cela e permitir a fuga de Beatrix) e a magia branca dos grimórios. A evocação feita por ela inclui elementos mágicos, alquímicos e cabalísticos (mas vários deles foram introduzidos por mim ao forçar uma tradução torta de um trecho da letra de “Workshop of the Telescopes”. A letra fala do ritual de fabricação de um espelho mágico e repete com frequência que a verdadeira visão é a dos que vêem de olhos fechados. Embora eu não a tenha retirado de um grimório, é possível que Sandy Pearlman, autor da letra da canção, o tenha feito por mim. Notável é a citação da salamandra como elemental do fogo, que remete a Paracelso.

Peço desculpas às moças que apareceram aí e me criticaram por satanizar a bruxaria, mas eu não quis ser anacrônico. A bruxaria medieval, tal como descrita, não existiu. Os rituais satânicos normalmente atribuídos às bruxas eram praticados por cristãos degenerados, não por pessoas do povo que mantinham tradições pagãs. Algumas das críticas que eu recebi sobre este aspecto são anacrônicas, porque a religião Wicca é uma criação recente (menos de cinquenta anos) e que parece ter pouquíssima relação com as verdadeiras tradições pagãs célticas. Ademais, a região da França onde ambiento a história, a fictícia Averoigne, não ficava em uma região de influência céltica, mas em uma região central, provavelmente o Franco-Condado (boa indicação disso é a onomástica dos personagens criados por Ashton-Smith, como Gaspard du Nord).

Quanto ao latim no final, eu procurei frases cujo sentido pudesse ser adivinhado facilmente por pessoas dotadas de uma razoável cultura geral.
Libera me domine de manu malefactorum é latim bárbaro e significa “Livra-me senhor, das mãos malfazejas” (ou “das mãos das maléficas”). Em latim clássico teriam sido usados os termos “divus” (divino) e “strigae” em vez de “domine” e “malefactorum”.

É uma frase fácil de discernir, mesmo sem conhecimento latino: “Libera me” é “livra-me”, “domine” é “Senhor” para qualquer pessoa que já tenha lido obras que citam ladainhas em latim, “manu” é claramente “mão” e a palavra “malefactorum”, apesar de conjugada de várias formas, retem a raiz “mal” e pode ser associada a “malefício” por quem tenha talento para línguas.

Em seguida o abade cita os versículos iniciais do salmo “De Profundis”, que foi durante muito tempo considerado o mais popular trecho da Bíblia. Existem várias versões musicadas dele e quem teve algum contato com música clássica deve ter conhecido algumas delas. É também o título de um poema escrito por Oscar Wilde na prisão e é citado muito frequentemente como símbolo do desespero: De profundis clamavi ad te, Domine; Domine, exaudi vocem meam. Fiant aures tuæ intendentes in vocem deprecationis meæ. Em uma tradução literal e bastante calcada no latim da Vulgata (em vez do original hebraico), teríamos: “Das profundezas clamo a ti, Senhor. Senhor, escuta a minha voz. Que teus ouvidos atentem à voz de meu desespero.”

Mesmo sem associar imediatamente a um salmo conhecido, as palavras “profundis” e “deprecationis” deveriam ser suficientes para que o leitor sentisse um ar de desespero.

Em seguida o abade, distraído pela “tortura” a que era submetido, interpola no salmo um trecho da Ave Maria: “Benedicta tu in mulieribus” (Bendita és tu entre as mulheres). Além de ser o único tipo de elogio ao feminino que um padre faria, a frase, no contexto em que é posta, revela uma blasfêmia horrível.

Quanto ao último parágrafo, ele é a versão mais extensa da imprecação transcrita por Lovecraft, que o autor americano extraiu de uma tradução do original de Hipólito feita para a Enciclopédia Britânica.

Deixei em latim porque não consigo imaginar um ritual mágico, satânico ou não, que não seja versado em uma língua antiga. Seria inconcebível, e até tosco, que as bruxas falassem em português, pior ainda se falassem em gíria moderna. Supus que o fato de ser o original do mesmo texto da epígrafe, repetindo nomes e vocábulos aparentemente semelhantes, os leitores os associariam.

Mas para quem não associou, lá vai uma tradução:

Venha Bombo, infernal, terrena e celestial. Habitante das encruzilhadas, tríplice, luminosa, noctívga, inimiga da luz, amiga e companheira dos que andam pela noite, que aprecias o ladrar dos cães e o cheiro do sangue, que vais por entre os cadáveres e os sepulcros dos mortos, que desejas o sangue e que trazeis o terror aos mortais. Gorgo, Mormo e Lua de mil formas, vem apreciar nossos sacrifícios.

Certamente não é algo que você gostaria de ouvir alguém dizendo perto de você caso estivesse perambulando por um local deserto à noite.

Espero que com estes esclarecimentos vocês consigam reinterpretar o texto e apreciá-lo mais.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *