Dos Livros Intermináveis e dos Leitores Abomináveis

Há obras que ganharam para si um status de obrigatórias. Isto praticamente é a morte para qualquer possibilidade de que sejam enca­radas como “divertidas”. Ninguém supostamente se diverte fazendo o que é obrigatório. Como eu, porém, tive a sorte de me apro­ximar da literatura como um selvagem, sem qualquer tipo de ori­entação pedagógica enquadrante, pude ler com prazer algumas des­tas obras e agora me espanto que sejam citadas em tal contexto.

É recorrente a citação de listas de tais obras ilegíveis — parece haver certo prazer por parte de leitores e leitoras de todo o mundo em atacar o status daquilo que é tido como sacrossanto. Eu mesmo faço isso às vezes, lembrando aos meus amigos e (raros) leitores o quanto eu detesto as duas mais notáveis obras de James Joyce, Ulysses e Finnegan’s Wake. Duas grandes demonstrações de autor­re­fe­rência e egolatria, isto sim.

Este iconoclasmo com as obras que a crítica mais idolatra parece bastante necessário, se considerarmos que o sonho molhado da crí­tica é dirigir o gosto do público até ele se igualar ao seu. Por mais que a crítica seja útil, e ela o é, acredito que o crítico deve ser man­tido em um cercadinho seguro, não lhe devemos dar tanto poder.

Diz-me uma recente matéria do caderno literário do El País que o autor britânico Nick Hornby teria encorajado seus lei­tores a queimar os livros chatos. Devemos tomar cuidado ao aceitar sem crítica esta brincadeira de Hornby. Primeiro por ele ser britâ­nico: os habitantes daquela chuvosa ilha têm um senso de humor sofisticado que frequentemente passa incompreendido por quem está de fora. Suas piadas me lembram aquelas his­tórias que contávamos na escola a respeito de nosso clubinho parti­cular: os de fora ouviam e não entendiam. Segundo por­que, como já disse de certa feita, o ato de queimar um livro possui um simbolismo negativo demais para que a ideia seja ventilada irresponsavelmente. Queimar livros pode parecer “legal” quando você está atacando um ídolo do sistema, mas não podemos esquecer que o sistema sempre terá mais influência sobre corações e mentes e poderá facilmente manipular as massas para que queimem o que não interessa ao status quo. Assim, quem começa a brincar com fogo pode queimar o que não quer ou, pior, ser jogado no fogo que ateou para outrem. Escritores especialmente não deviam alimentar a ideia da queima de livros, nem mesmo por brincadeira.

Afinal, não custa lembrar, se uma obra está sendo indicada para as chamas isto significa que provavelmente ela tem poucos defensores. Experimente falar em queimar a obra de Paulo Coelho ou a Bíblia. Chutar “cachorros mortos” (segundo o critério “pop”) é muito seguro e é uma maneira de atrair atenção. Assim como Hornby sonha em queimar Dostoiévski, o mago pluvioso atacou James Joyce. O que isso prova? Não sei exatamente, mas suspeito que deve haver um elo entre os dois episódios e todas as ideias no sentido de suprimir os livros ditos “chatos”.

Isso acontece, porém, porque esses livros recebem elogios rasgados de pessoas que são inteligentes, ou parecem ser. Como a maioria não os alcança e não quer admitir que esteja “abaixo” intelectual­mente de quem os recomenda, é fácil aparecer alguém que reivin­dica o mesmo status dos recomendadores, sugerir o fogo para a obra questionada e obter “likes” e palmas desta maioria que se ofende com o fato de haver obras que desafiam sua compreensão. Em vez de simplesmente aceitar que há livros que são esfinges (e, ao mesmo tempo, que não estamos todos obrigados a resolver cada enigma de cada esfinge do mundo), a massa deseja descobrir que o rei está nu, especialmente se for pela boca de uma “criança”. Mas, e se o rei estiver vestido e a criança maliciosamente gritar que ele está nu? Somente a primeira criança que desmascarou um imperador nu possuía credibilidade para isso, todas as outras ouviram a histó­ria e acreditam que vão pagar de espertas se “fizerem o povo ver” a nudez real, mesmo que inexistente.

As obras citadas como ilegíveis no artigo são um apanhado de clás­sicos e de livros recentes que não parecem possuir qualquer caracte­rística em comum (embora possam ser agrupadas segundo critérios mais ou menos arbitrários) a não ser o fato de serem romances, gênero que parece ter adquirido um status de fetiche nas últimas décadas. Romances são necessariamente complexos, sempre o foram, mas tem havido uma tendência a confundir o romance com a “novela”, gênero literário caracterizado por tramas mais longas (às vezes rocambolescas), porém estruturalmente mais simples e mais focadas na ação do que na reflexão.

Eu gostaria que esse tipo de debate fosse superado definitivamente e em seu lugar tivéssemos apenas a liberdade do leitor, com a crítica atuando como balizadora, mas sem ser vista pela massa como um tipo de oráculo da verdade. Infelizmente isso não acontecerá, até porque a simples autoridade imposta naturalmente pelo conhecimento é confundida com autoritarismo e pensada como um inimigo a ser derrubado. E o anti-intelectualismo é uma das bestas do nosso apocalipse cultural.

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