Façamos a Literatura Feia

Em um mundo literário no qual o meu modo de pensar é visto como um desvio, uma falta de educação, é reconfortante, de quando em vez, ler alguém que também não se conforma com as nuvens róseas que pretendem predominar na literatura. Gustavo Czekster lavou a minha alma esta semana ao publicar no LiteraTortura [um artigo devastadoramente bom]) que expressa, melhor do que eu próprio o faria, aquilo que penso sobre literatura. E havia tanto tempo que não lia nada assim, que não me deparava […]

Avós Rebeldes

Quando criança eu li “[Vovô Fugiu de Casa](http://www.lpm.com.br/site/default.asp?Template=../livros/layout_produto.asp&CategoriaID=848474&ID=384818)”, de Sérgio Caparelli (taí o link, comprem e leiam pois é bom demais). Essa obra foi uma das mais impactantes de toda a minha vida. Várias vezes me peguei reescrevendo histórias que começam com personagens pondo o pé na estrada, tudo por causa do velho que resolve fugir de sua vida deprimente e passar suas últimas semanas ou meses de vida curtindo a serra gaúcha em companhia do neto que sofria bullying na escola. A cena em […]

O Preço da Passagem [3]

Não percebi quantos dias passei naquele lugar. Dizem-me que foram cinco. Nos primeiros dois ou três o homem do quepe tentou extrair de mim alguma informação sobre as pessoas com quem estivesse envolvido. Mas de alguma forma, segundo consta dos relatórios a que hoje tenho acesso, graças ao habeas data, eu apenas circulava em torno da ideia de ter entrado em algum barco em companhia da falecida Jurema, de ter saído sozinho e a deixado lá. Assinado um tal Tenente Cavalcanti.

O Preço da Passagem [2]

Tardou ainda por algum tempo incontável, mas não demasiado que nos desesperasse. Soou uma outra buzina de navio indo para o mesmo lado do primeiro. Ouvimos o já conhecido chapinhar de pás, sentimos o farfalhar das roupas da multidão, talvez ansiosa, acendeu-se a trêmula luz vermelha de uma lanterna e o batel encalhou na areia. Desceu o barqueiro vestido da mesma maneira monacal que os anteriores, o rosto recoberto pela sombra de uma dobra de tecido — e dentro dela um brilho desagradavelmente avermelhado e solitário.

O Preço da Passagem [1]

A última coisa que vi na noite escura de 26 de abril de 1967 foram luzes azuis e vermelhas no retrovisor. “Malditos milicos, nos acharam!” — pensei e acelerei na vã esperança de fugir, mas logo perdi o controle em uma curva fechada da estrada para Araruama. Jurema gritou e se encolheu, o carro atingiu a sebe com um baque e um farfalho, tudo muito rápido, e caímos pela ribanceira. Apenas tive tempo de pensar que muitos anos depois da ditadura talvez nos considerassem mártires estudantis e dessem indenizações a nossas famílias. A ironia disso me fez suportar tudo sorrindo, enquanto o rádio do Aero Willys tocava Beatles rumo ao abismo: *She’s got a ticket to ri-i-i-de, but she don’t care…*

A Maravilhosa Estória do Senhor Sombra e da Senhorita Raio de Luar

O amor do Senhor Sombra e da Senhora Raio de Luar começara muito complicado, levara décadas em um estado infrutífero, tantálico, até finalmente desembocar naquela manhã de abril, fria e úmida, em que ele se deu conta, pela primeira vez, de que ela sempre amanhecia doente quando faziam amor. Sombra tinha sido um herói antes de desenvolver sua barriga e perder algumas mechas para o tempo. Ela tinha sido uma femme fatale inspiradora de crimes e amores juvenis antes de ganhar estrias, acumular quilos extraordinários […]