A Última Noite do Velho Poeta

Vou andando sozinho pela escuridão da noite. Volto para casa com os ouvidos amortecidos e com amargura na boca pela décima vez no mês numa noite morna de outubro ou novembro. Subitamente eu me dou conta de estar imerso num silêncio sibilante e imenso que apenas raros carros cortavam.

Com passos duros e pernas doloridas, cruzo a Ponte Nova e subo em direção à praça, onde já quase não há ninguém agora, salvo três fregueses de uma lanchonete comendo cachorros quentes e um bêbado gritando palavrões.

Mais uma vez eu saio do caminho reto para passar perto da casa de Maria Alice. Mais uma vez a esperança de vê-la à janela, mesmo sabendo que é alta madrugada e que as janelas estão fechadas. Evidentemente quando entro na Nogueira Neves constato as lâmpadas apagadas. Conforme esperava, mas mesmo assim alguma coisa morre comigo.

Depois de estar parado à esquina por alguns minutos remoendo velhos dramas e letras de canções do Roberto Carlos eu resolvo atravessar em direção ao Meia Pataca.

Noto que vem atrás de mim a patética figura maltrapilha que atrapalhava a paz dos filhinhos de papai junto à ponte. Apresso o passo, pois o espantalho bêbado que me segue não promete ser boa companhia. Sua roupa amarrotada mostra que esteve deitado em alguma calçada e seus olhos cavernosos devem estar vermelhos de sangue como os de um lobisomem.

Mas é tarde para fugir e ele me grita:

— Ei, você aí!

Insisto em fingir que não o ouço e ando mais.

— Ei! Pare para ouvir a história do poeta! Insisto no silêncio e na pressa.

— Ei, eu sei quem você é. Pare que eu estou precisando te contar umas coisas!

Eu paro apenas o tempo bastante para responder:

— Desculpe, São três da manhã! Quero dormir, outro dia.

Ele xinga misturadamente e se apressa.

— Meu jovem você ganha muito em me ouvir. Pare! E eu vou lhe contar uma história que vale a pena…

Diz o “pare” com tal determinação que eu paro. Incrível minha disposição a obedecer a ordens dadas seja por quem for… Desde que no tom de voz correto.

De longe eu sinto o inconfundível hálito de cachaça barata, cigarro e cáries. O cheiro entranhado em suas roupas suadas e amarrotadas evoca antigos vícios e perfumes de prostitutas.

Ele tira do bolso um inacreditável lenço e enxuga a testa. Depois pigarreia com como que para despertar do álcool que lhe nubla a razão e me olha coma desolação de quem mal pode suportar a compaixão que desperta.

Sorri. Mostrando-me diversos dentes podres, tortos ou ausentes. E se apresenta:

— Conheça o poeta maldito dos regos e becos da cidade.

O alcatrão de uma vida de fumante lhe fazia respirar chiando e o peito cabeludo e avermelhado, exposto pela camisa aberta, subia e descia como um fole.

— Eu te conheço?

— Se não me conhece vai me conhecer. Muitos já me conheceram, até biblicamente falando. Sou um cara muito conhecido, ainda que a maioria tenha preferido esquecer.

Ele acende mais um cigarro e o fuma soltando baforadas quase artísticas pelo ar. Observa enquanto se desfazem os anéis e mastiga umas palavras:

— Só que hoje eu sou um merda e não tenho ninguém com quem conversar nessa porra de mundo. Agora eu não tenho mais ninguém para foder a minha bunda, ninguém para ler meus versos, ninguém para chorar no meu enterro!

— E onde que eu entro nessa história?

— Até que eu queria que você entrasse, entende? Mas eu fico satisfeito se você for testemunha.

— Testemunha do quê?

— Cala a boca e escuta. Que eu vou te contar minha história. Desde o dia em que dei o cu pela primeira vez debaixo dum pé de mamão no fundo do quintal da escola.

— Só que eu não tenho nada a ver com isso. Se você é poeta, por que não transforma isso em poesia?!

— Sou um poeta moderno. Hoje poesia não se faz mais com versos, e sim com verbas. Para pagar a edição, para o coquetel, para mandar os 150 exemplares às 25 bibliotecas, aos 35 leitores e aos 70 sábios. E dar o resto para 5 amigos e mais uns 15 bobos. Não sobra tempo para falar da vida e de sentimentos. Ser poeta é difícil: não se pode ter sentimentos.

— É mesmo? Parece que os poetas de hoje em vez de fazerem versos enchem o saco dos amigos com suas histórias pornográficas e sua ressaca?

— As únicas novelas que me interessam são as da globo, porque são “fenômeno sociológico”. As outras são alienadas.

— Então inventa algo novo para fazer.

— Hoje em dia os campos estão restringindo as possibilidades, já fizeram tudo: só nos resta aplaudir e ler o cânon.

— Já me disseram uma vez que a única saída para a poesia é entra no consultório do analista?

— Ou entrar pelo cano. Poeta é um sujeito teimoso que ainda não descobriu que é ridículo. É um riquinho com vontade de aparecer que se acha filósofo…

— Mas eu continuo não tendo nada a ver com isso. E francamente eu nem consigo entender a metade do que você diz.

— Mas continuo te mandando calar a boca. Ou não quer saber o que fiz quando fugi de casa e fui pro Rio de Janeiro?

— Não. Talvez até eu achasse engraçado ler isso num livro. Mas a essa hora da madrugada…? Eu quero mais é ir para minha casa dormir em vez de ficar escutando um bêbado.

— Eu quero falar de minhas primeiras taras, porque eu amava Cassandra Rios e Adelaide Carraro. Eu quero falar de orgias e da vinda do Messias.

Nisso um casal passou por nós de braços dados e vivendo tranquilamente o seu idílio. O poeta interrompeu a beatitude em que iam e lhes gritou ironicamente:

— E aí, Messias, ‘tá lembrado de mim?

Messias não respondeu.

— Que é isso, Messias, por que esta cara de quem me comeu e não gostou?

Eu ri discretamente, não querendo estar na pele do Messias. Mas ele simplesmente fingiu que não ouvia nada e seguiu seu rumo levando pelo braço a namorada.

— Eu lhe dizia — disse o Poeta — da dificuldade que era para um rapaz ver uma buceta pela frente em 1962…

Não era isso que ele estava falando, mas eu não estava a fim de alongar o assunto e continuei escutando.

— Para quem teve de fugir pelo pasto com os cachorros da polícia no encalço até que eu me saí bem no Rio de Janeiro. E antes que você pergunte, eu tive que fugir daqui porque o pai do Messias não gostou de saber do que a gente fez…

Então fez uma pausa, como se para puxar outro fio da meada em que a história havia se enredado e reentrou na mesma sucessão de desencontros que fora a sua vida.

— Em que língua é essa música que estão tocando por aí? — perguntou enquanto apurava o ouvido.

— Sei lá. Inglês?

— Não interessa. O que interessa é que eu sou do tempo em que se podia oferecer uma música porque se sabia o que estava tocando. Você sabe o que essa daí diz?

— Não.

— “Don’t want a short-dick man”

— Continuo sem saber.

— “Não quero um homem de pau pequeno!”

Eu ri sem achar graça nenhuma em minha ignorância. Então ele me consolou:

— É engraçado, mas você já reparou que hoje em dia é mais importante o caboclo saber inglês que português?

— E é o que parece, ou não é?

— Isso porque ninguém se preocupa em fazer o Brasil crescer. E eles ficam nos colonizando com esse lixo. E mais ainda. No meu tempo não era era risco de vida tocar de verdade o amor, embora isso fosse raro.

— Não existia zona naquela época?

— Eu nunca tive dinheiro para pagar uma vadia, por isso eu quis ser a vadia…

Outro riso constrangido:

— E então?

— Você gosta de rock?

— Bastante.

— Gosta de Pink Floyd?

— É meu favorito.

— Vejamos se você entende do riscado.

— Ah, de rock eu entendo.

— Você já foi ouvir Pink Floyd num alto de morro à noite, junto com um bando de doidões, fazendo suruba, fumando maconha e ouvindo o “disco da vaca”?

— Não!

— Então você não entende nada de Pink Floyd.

— E nem de poesia, pelo que você me falou.

— É. Mas a diferença é que você não faz a menor questão de entender de poesia…

— Ninguém faz.

— Mas devia. Só com a poesia você pode combater a imbecilidade que há no mundo.

— Mas você não me disse agora há pouco que a poesia no mundo de hoje virou uma coisa imbecil?

— Só que isso ainda não quer dizer que virou crime tentar fazer poesia direito…

— Como você faz?

— Não. Eu não. Eu sou um idiota que sempre correu atrás da opinião alheia. Acho que até homossexual eu virei porque era chique ser bicha na cena literária dos anos 70…

— Ah, nisso eu não acredito. Ninguém dá a bunda sem querer. Dizem que dói demais para um cara fazer isso sem ser de propósito.

— Depois que você fica acostumado é muito gostoso, pode ir por mim que é bom!

— ‘Tô fora dessa!

— E de tudo isso que eu vivi, não guardei nada a não ser o prejuízo dos anos de vida que eu perdi sem ganhar dinheiro e sem virar herdeiro de fazenda. Não, não achei nenhum amor eterno para esquentar a minha cama na velhice, não tive nenhum filho para me botar no asilo.

Diante do meu silêncio ele continuou.

— Todo mundo deixou sua marca em mim. As as putas me deram suas gonorreias, os farmacêuticos, por sua vez, me encheram a bunda de Benzetacyl. Agora estou contando os últimos dias, com um enfisema que já é meio caminho andado para um câncer. Cheirei cocaína até perder o olfato, dei o cu até ficar com hemorroidas e agora eu me sinto um cocô que cagaram neste cu-de-mundo.

— E o que vai fazer para mudar isso?

— Mudar? Que nada! Eu vou é cumprir o meu destino! Chegou a minha Hora Mágica. Devo me juntar aos meus!

E rapidamente, antes que eu possa tentar impedir, atinge a ponte de cimento sobre o Meia-Pataca. De pé no corrimão ele vocifera, como o Nero de Henryk Sienkiewicz:

— Que grande artista o mundo vai perder.

Então abre os braços compridos contra o luar, como um morcego pousado lá e lentamente se deixa cair na lama rasa e fedorenta da margem.

Das profundezas cheias de bosta e espuma industrial eu ainda o ouço dizer, com voz rouca e raivosa:

— Merda! Ponte errada!

Escrito entre 2002 e 2003

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