A Piada Não Tem Mais Graça

Não sei se já contei para vocês que sou fã dos Smiths. Para mim não existe letrista mais agudo e inteligente do que Morrissey, que é simplesmente aquilo que Renato Russo queria ser quando crescesse. Em suas letras ácidas e amargas ele descasca e devassa as conturbadas relações informais de poder que se estabelecem no convívio entre os seres humanos. Mas não escrevi esta crônica para louvar os Smiths, apesar de todo meu fascínio por versos como “Se não for amor será a bomba que vai nos reunir” e “Agora entendo como se sentiu Joana d’Arc quando as chamas chegaram ao seu nariz adunco e o seu walkman começou a derreter”. Escrevi-a para, recorrendo aos versos de Morrissey, deixar marcado meu orkuticídio.

Que fique bem claro que é um “orkuticídio”, não um suicídio. Estou saindo da vida apenas no metafórico sentido daquele “mundinho azul”. Aqui fora, continuarei ganhando cabelos brancos e crescendo barriga enquanto tento continuar escrevendo e criando minhas filhas. Como toda carta que justifica uma morte (neste caso virtual), esta também será longa, e também só será lida pelos “legistas” interessados na “causa mortis” ou nos segredos sórdidos de quem se tornou o cadáver.

Cometo este ato insano porque that joke isn’t funny any more. Houve um tempo em que o Orkut me divertiu. Talvez tenha feito mais do que isso: graças a ele eu obtive meu contrato de publicação e fiz alguns amigos. Mas não muito mais do que isso. Hoje entendo que este hábito me tirou mais do que me deu. Tirou de mim energias que eu deveria ter gastado olhando o céu (um azul mais bonito que o plano de fundo do saite), pisando na grama da praça (apesar de algumas bostas de cachorro), caminhando pelas ruas (apesar da fumaça dos carros, dos cheios urbanos e do sol áspero), brincando com a Gabi e com a Duda (e também “brincando” com a Dani).

“Pare o carro ao lado da estrada, / você deve saber / que a onda do tempo amaciará você, / assim como a mim.”

Houve uma época em que até o Orkut me inspirava a escrever, mas ultimamente eu tenho sentido cada vez mais que minhas horas passadas frente ao monitor se tornaram momentos “zumbis” em minha vida. Cada vez mais, inspiração me vem quando corro, ando, tomo banho, como, trabalho ou vejo vacas pastando. Olhar os píxels esvazia o meu cérebro. É como uma droga e eu já adiei muito isso e agora está na hora de desintoxicar.

“Quando você ri de pessoas / que são tão sozinhas / o único desejo delas é morrer.”

Comecei a me “matar” quando Sinki me expulsou da Novos Escritores do Brasil. Talvez eu tivesse resolvido continuar “vivendo” se alguma das iniciativas que tomei entre julho e setembro tivesse dado certo. A comunidade Textos & Texturas, os concursos da Contos Fantásticos, a Revista Textura. Cada uma delas poderia ter sido um entorpecente (ou uma morfina) capaz de me fazer seguir com a farsa. Mas misericordiosamente nenhuma delas continuou.

“Bem, eu acho que / essas coisas não me fazem rir, / eu bem queria conseguir.”

Isto levou-me a um afastamento voluntário do Orkut entre setembro e dezembro. Embora tenha sido somente parcial (eu realmente tive várias sequencias de dias sem acessar, mas não consegui atravessar os três meses sem postar), estas férias serviram para me mostrar que eu não precisava do Orkut para ter inspiração mais. Nesse ínterim descobri outras maneiras de interagir com escritores, fiz algumas amizades, encontrei algumas pessoas, participei de eventos, recebi comentários. Gradualmente me afastei das “comunidades” onde convivia e percebi que antes passava horas vivendo vidas irrelevantes e irreais, lutando contra moinhos de vento apenas imaginários, dedicando minhas forças a combates que nem ficariam registrados para a posteridade (pois o meio eletrônico é como a areia da praia).

“Mas essa piada não tem mais graça.”

O que me levou a um desencanto, que somente foi agravado pelo fato de que minha participação no Orkut havia produzido um efeito negativo em minha interação. Tornara-me uma “personalidade” detestada por minhas opiniões incisivas, tinha mais desafetos do que admiradores, meus textos atraíam críticas mais rigorosas porque as pessoas tinham necessidade de apontar os meus erros enquanto desculpavam os alheios. Claro que eu não me ofendi com isso, pois é natural que as pessoas exijam mais de quem acham bom. Mas incomodou-me ver que eu estava sendo sempre, sutilmente, visto como o “garoto de fora”, o estranho na turma.

“Estamos muito perto de casa / e vai muito fundo, até o osso, / mais fundo do que você acha.”

De fato o era. Minha idade, minha maturidade e minha mentalidade. Três fatores que me separam da maioria dos jovens escritores orkutianos. O senso do ridículo caiu em mim como uma bomba quando eu, lendo a história dos Alcoólicos Anônimos, no saite “Agent Orange”, li a biografia de Frank Buchman, um dos inspiradores do movimento. Aos 37 anos anos (a idade que hoje tenho) ele tentou se instalar no dormitório dos estudantes em Harvard, a fim de “ficar mais perto” daqueles com quem deveria interagir, na qualidade de capelão da faculdade. Ele acabou expulso de lá pela faculdade, diante dos insistentes protestos dos alunos, que não conseguiam conviver com sua presença. Acabou até sofrendo acusações de pederastia por conta disso. Ao ler este episódio burlesco da biografia de alguém que não ficou famoso como um cara bacana, eu procurei visualizar em minha mente as cenas de sua vida no dormitório estudantil. De repente o rosto de fuinha de Frank Buchman se metamorfoseou no meu e eu percebi que tinha que sair do dormitório, mesmo que pulando pela janela, porque certamente os rapazes ficavam constrangidos pela minha presença. Meu lugar não era lá.

“Chute-os quando caem! / Por que também você /Tem que chutá-los quando caem?”

Torna-se natural a impaciência quando você quer ir longe. Quanto mais você aprende, menos prazer tem em revisitar os estágios iniciais de sua jornada. Os professores, essas almas abnegadas e tão raras, certamente não derivam o seu prazer do conteúdo, mas da experiência sociológica do ensino. Eu, porém, sou viciado em conteúdo, eu sinto o vento soprando na estrada do conhecimento e não gosto de voltar atrás para buscar quem está correndo atrás de mim.

Esse tipo de sensação de impaciência leva quase certamente à violência verbal, algo muito barato quando no Orkut. Na vida real você não discutirá Proust com um bêbado no bar, mas no Orkut esses pudores costumam cair, e acabamos perdendo a medida das palavras.

Não é bonito descobrir que você é um dos que chutam os que estão caídos, especialmente quando os próprios caídos mostram os dentes quebrados. Não é bonito você descobrir que está fazendo hoje o que lhe ofendeu tanto quando fizeram com você no passado. Mas eu não tenho a morbidez de veterano que gosta de humilhar calouro, eu “passo” esse papel a quem tenha essa depravação. Não vou chegar a ser um J. R. Pereira, vou me “orkuticidar” antes disso.

“Estava escuro quando dirigi para casa / sentado em bancos de couro. / Então, de repente tive a impressão / de que talvez venha a morrer /com um sorriso no rosto, enfim.”

Decidi me “matar” virtualmente em janeiro. Até pus data para isso na descrição do meu perfil. Nos primeiros dias as pessoas argumentaram muito comigo, vieram os bombeiros trazendo parentes, amantes, filhos, cobradores e um psicólogo. Todos chegaram no parapeito dizendo que valia a pena continuar, e eu fui continuando.

Decidi brincar com eles. Sairia do Orkut fazendo uma brincadeira que sempre quisera fazer. Criei um perfil falso, chamado Filipe C. Pinto (uma “tradução” do nome do genial Philip K. Dick). Usei o perfil para postar um conto MEU na Contos Fantásticos, depois de ter deixado pistas, com dois “amigos” virtuais” de que o conto seria de Stephen King ou de um autor soviético cujo trabalho teria semelhanças com o do King. Eu esperava que ambos “dessem com a língua nos dentes”, fazendo todos pensarem que o conto era de alguém famoso, quando era meu. A patranha seria completa quando eu postasse no concurso seguinte um conto de um autor famoso e fizesse todos pensarem que era meu. Eu já tinha tudo até traduzido. O conto seria “O Quarto Vermelho”, de H. G. Wells; uma reconhecida, mas pouco conhecida, obra prima da literatura universal.

“Eu já vi isso acontecer com outras pessoas / e agora está acontecendo comigo.”

Desisti, no entanto, de levar esta farsa até o fim. Teria dado muito trabalho manipular as pessoas em cada vez — e eu não sou nada bom nisso. Além do mais, por que eu também teria que “chutá-los caídos”? Se eu tenho impaciência com os garotos e com suas obsessões, como tratá-los com tanto desrespeito? Senti-me ridículo fazendo isso e resolvi parar com essa trollagem gratuita.

“Mas essa piada não tem mais graça.”

Então, amigos, despeço-me de todos vocês aí do Orkut. Meu perfil será apagado quando terminar o horário de verão. Peço desculpas à Åsa Heuser, que me confiou a moderação da Sociedade da Terra Redonda, mas não tenho mais como continuar. O “orkuticida” que considere seus compromissos não consegue se “matar”. Somente consegue o Ato Extremo quem fecha os olhos, algo egoisticamente, e ignorando as pessoas que deixará na mão.

A piada não tem mais graça para mim, é só isso que eu quero que vocês entendam. Não me obriguem a continuar no palco só porque vocês gostaram do show.

Ficarão assuntos pendentes, obviamente. Perderei contato com algumas pessoas, pelo menos com aquelas que não estão ainda no meu MSN e nem no Facebook. Mas o buraco deixado pelo tempo que eu gastava no Orkut será fechado com muito trabalho literário novo: tenho CINCO romances para terminar, minha gente, e estou chegando ao meio-dia da vida. Tenho muito que viver e que escrever.

Lasciate ogni speranza voi ch’entrate.

2 thoughts on “A Piada Não Tem Mais Graça

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