Nós, Os Ridículos

Depois que Rafael Draccon afirmou que não publicaria Rubem Fonseca e recebeu as merecidas críticas, outros próceres do mercado editorial não tardaram a sair em sua defesa. Diferentemente de Draccon, que disse o que disse quase que por ingenuidade, os novos artigos são premeditados para alcançarem um efeito. E para isso empregam toda a técnica argumentativa que disfarça o absurdo óbvio (“não publicar Rubem Fonseca”) e enfatiza um novo modelo de negócio no qual o absurdo é o lugar comum.

O artigo que eu me refiro é [o de Danilo Venticinque]), publicado na revista Época desta semana. Trata-se de um artigo bem escrito e cheio de verdades óbvias, que preparam o terreno para sutis maldades.

A primeira delas vem logo no começo. “Na pré-história da literatura” é a expressão que o autor, num arroubo ofensivo, usa para qualificar o tipo de literatura que se praticava há… dez ou quinze anos. Esta ousadia supera o nível da besteira dita por Rafael Draccon. Venticinque, como todo jovem, acredita que vive numa era mais especial do que todas, que o mundo velho não tinha importância e que o que ele faz é essencialmente revolucionário. Este é o combustível de muitos progressos, mas também de muitos erros. Mas, se Draccon afirmou que não publicaria Rubem Fonseca, Danilo Venticinque chamou todos os escritores anteriores à geração da internet e das redes sociais de “pré-históricos”. Machado de Assis, Proust, Fernando Pessoa, Cecília Meireles, Ezra Pound, até mesmo talentos recentes, como Patrick Süsskind e Milan Kundera. Tudo “pré-histórico”.

Venticinque, obviamente, não diz isso de forma impensada. Ele está defendendo Rafael Draccon, os seus valores, e o sistema editorial que ele representa. Venticinque discorda *da ressalva* feita por Rafael Draccon em sua tentativa de retratação. E vai mais além: “excetuando os gênios incontestáveis (e raríssimos), que editora preferiria um eremita das letras a um escritor que sabe vender seu trabalho?”

O argumento parece bom, mas peca num ponto óbvio: não há gênios incontestáveis, exceto os mortos. Kafka e Fernando Pessoa são só dois exemplos de autores que morreram praticamente sem reconhecimento algum. Então, o que o colunista quer dizer é que, a menos que você seja um gênio *reconhecido como tal* pelo sistema, você precisará saber vender o seu trabalho.

Reconheço que Venticinque tem razão quando diz que mudou a maneira como consumimos informações. Discordo, porém, de sua análise desta mudança. Quando ele diz que “na disputa pela atenção dos jovens leitores, um livro concorre com fotos de gatos, notícias de celebridades e vídeos de comédia”, ele está sugerindo que a literatura deve aceitar esta concorrência como algo legítimo e natural e procurar assimilar uma linguagem semelhante. Isto me parece absurdo, pois o tipo de coisa que a literatura é não se confunde, na dificuldade de realização, por exemplo, com uma foto de gato ou uma notícia de celebridade. Então, é inútil (e até injusto) querer que o autor concorra contra produtos culturais levianos.

Ocorre que, do ponto de vista de Venticinque, é necessário travar este combate porque o que importa é vender livros, mesmo que sejam vendidos para quem não os lerá. A literatura deve, entre outros papéis, oferecer um tipo de reflexão social e cultural que vá além dos produtos imediatos para o consumo em massa. Mas quando ela se iguala com fotos de gatos e vídeos de comédia, ela está se desvalorizando. O autor que se submete a essa pantomima está denegrindo o valor do seu trabalho, e depois vai reclamar o que quando descobrir comentários grosseiros e sem sentido, feitos por gente que comprou o livro pela capa ou que o leu por acaso?

Penso que não há nenhum demérito em buscar divulgar o próprio trabalho, eu mesmo faço isso como posso. O problema está em rebaixar este trabalho, que requer mais tempo e mais cuidado, ao nível de uma foto de gato na internet, como faz o Danilo Venticinque. Eu não acho que o público das fotos de gato esteja interessado no tipo de coisa que eu escrevo, então não preciso competir com elas. Devo buscar outro tipo de público, e começo a suspeitar que não encontrarei esse público nas redes sociais.

Venticinque acha que “o silêncio é o caminho mais curto para a irrelevância”, mas ele está, obviamente, se referindo à irrelevância no “mercado”. Porque o sistema que ele representa é o de vender livros e o conteúdo nem tem a mesma importância. A irrelevância no mercado editoral resultaria desta postura resistente. Enquanto cada vez mais editores brasileiros pensam assim, escritores brasileiros começam a escrever em outras línguas, sob pseudônimo e [se lançam no exterior](http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/1235347-escrevi-em-ingles-para-ser-lida-diz-autora-lilian-carmine.shtml). No Brasil, Bruna Britto estaria fadada a ser tachada de “irrelevante” por editores como Venticinque e Draccon.

Ocorre que este posicionamento me parece ser apenas outra faceta do forte preconceito que o público leitor (e os editores) têm contra o autor brasileiro. Considerado inerentemente inferior ao estrangeiro, o escritor nacional só consegue se sobressair caso se exponha, bote maquiagem na cara, encene algum tipo de arte marcial, pinte a bunda de vermelho ou pendure uma melancia no pescoço. Pelos méritos de sua obra ele nunca se criará em um mercado acostumado a publicar os best-sellers anglo-americanos de forma automática. Mas assim vemos que não é que tenha mudado tanto a forma como consumimos conteúdo, é que mudou muito pouco a barreira que existe contra o nosso escritor, barreira que deriva da péssima qualidade de nosso ensino.

Digo isso porque não concordo com o julgamento generalizado nas redes sociais, de que os autores brasileiros clássicos são toscos e chatos. Eles são, essa é a sua tragédia, melhores do que os nossos leitores. Um país que tem dois terços de seus cidadãos abaixo do limite da alfabetização funcional não tem gabarito para dar valor a uma obra como o “Grande Sertão”. Nosso público não gosta do autor nacional porque foi obrigado a lê-lo na escola, não entendeu nada (porque a escola não conseguiu alfabetizá-lo perfeitamente) e ficou com esse despeito que o inculto tem por aquele que “fala difícil”. Então, se você quer atingir a esse público semi letrado, precisa pensar em fotos de gato como parâmetro de seu estilo, ou vai ser tachado de “pedante”. E aqueles que praticam uma literatura que se ombreia com fotos de gato tacham de “pré-históricos” autores que estão consagrados pelo tempo, são objeto de estudo em outros países e levam o nome de nosso país lá fora.

O que mudou não foi a literatura, são os valores de nossa juventude. Exibir-se para obter fama fácil é uma coisa tão comum que nem mais surpreende. Para aparecer na televisão uma mulher aceita dizer ao marido, diante das câmeras, que, antes de conhecê-lo, [se prostituía em troca de cheeseburgers](http://www.youtube.com/watch?v=QsNwQxaLdkE). Essa disposição para o exibicionismo se torna um atalho fácil para compensar a falta de talento: um livro ruim pode ser bem promovido e vender como pão quente. Há quem se prostitua por cheeseburgers, há quem tope qualquer negócio para divulgar seu livro, e esse autor é o modelo desejado pelas editoras, que pensam em cortar seus custos diante da ameaça justamente das novas formas de consumir conteúdo. Quem caminha para a irrelevância é esse modelo editoral ditador, que em seus espasmos produz figuras caricatas como o Draccon e o Venticinque. “É a evolução natural de uma geração que perdeu a vergonha de se expor para divulgar seus livros.”

O fecho do artigo resume o posicionamento do autor de uma forma lapidar: “Os escritores da pré-história achariam tudo isso ridículo. Para os novos autores, ridículo é não ser lido.”

Acho que o tema merece mais reflexões, que eu não estou disposto a fazer a essa hora da madruga.

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