Tradução: Vulthoom (C.A. Smith)

Chanler foi afetado de maneira mais vívida que Haines pelas curio­sas alucinações que se seguiram, embora, a não ser por diferen­tes graus de verossimilhança, as impressões fossem estranhamente pare­cidas. Pareceu a Chanler, subitamente, que o perfume não era mais alienígena, mas algo que lembrava de outros tempos e luga­res. Ten­tou lembrar as circunstâncias desta familiaridade anterior e suas lembranças, emergidas dos reservatórios selados duma antiga exis­tência, tomaram a forma de uma cena real que substituiu a câmara cavernosa ao redor. Haines já não era parte desta cena, mas desa­parecera do campo de visão, e o teto e as paredes tinham se dis­solvido, dando lugar a uma grande floresta de árvores que pare­ciam fetos. Seus caules finos e perolados e sua folhagem tenra nadavam numa glória luminosa, como o Éden banhado pela primeira aurora. As árvores eram altas, mas ainda mais altas que elas eram as flores que derramavam de incensários de um branco ondulante um perfume voluptuoso e dominante.

Chaler sentiu um êxtase indescritível. Parecia que retornara à fonte do tempo, o primeiro dos mundos, e naquela gloriosa luz e na fragrância que submergia seus sentidos até o seu último nervo ele se abastecera de vida, juventude e vigor inexauríveis.

O êxtase aumentou e ele ouviu um canto que parecia emanar das bocas das flores: um canto de huris que transformou seu sangue em uma poção dourada. No delírio de suas faculdades, o som se identi­ficou com o odor das flores. Ele subiu em um arrebatamento verti­gi­noso e irrefreável e ele pensou que as próprias flores flutuavam como chamas e as árvores aspiravam por elas e ele mesmo era uma chama acesa que pairava com o canto buscando o último pináculo de deleite. Todo o mundo girava para cima em uma maré de exaltação e parecia que o canto se transformava em um som articulado, até Chanler ouvir as palavras:
— Eu sou Vulthoom e tu és meu desde o começo dos mundos e serás até o fim…

Despertou sob circunstâncias que pareciam quase a continuação das imagens visionárias que contemplara sob influência do perfume. Estava deitado em um leito de relva curta, de folhas recurvas, de cor verde desbotada, com enormes florações de cores tigradas que se dobravam sobre ele e um brilho macio como o de um pôr do sol âmbar enchendo seus olhos por entre os galhos pendentes de árvores que davam estranhos frutos carmim. Vagarosamente, enquanto tomava consciência de seus arredores, ele percebeu que fora a voz de Haines que o acordara e viu que ele estava sentado perto naquele curioso relvado.

— Diga, você não vai nunca sair disso?

Chanler ouviu a pergunta ríspida através de uma camada de sonhos. Seus pensamentos estavam confusos e suas memórias se mesclavam estranhamente com lembranças falsas, que pareciam retiradas de outras vidas, e que haviam surgido em seu delírio. Era difícil dis­cernir o falso do real, mas a sanidade lhe retornava aos pou­cos e com ela veio uma sensação profunda de exaustão e cansaço nervoso que lhe advertia que estivera viajando no espúrio paraíso de uma droga potente.

— Onde estamos agora? E como saímos daqui? — perguntou.

— Pelo que posso saber — respondeu Haines — estamos em uma espécie de jardim subterrâneo. Alguns dos grandes Aihais nos devem ter tra­zido para cá depois que sucumbimos ao perfume. Resisti à sua influência por mais tempo do que você e lembro de ouvir a voz de Vulthoom quando perdia os sentidos. A voz disse que nos daria qua­renta e oito horas, tempo terrestre, para pensarmos em sua pro­posta. Se aceitarmos, ele nos devolverá a Ignarh com uma fabulosa soma de dinheiro e um suprimento das flores narcóticas.

Chanler já estava então completamente desperto. Ele e Haines come­çaram a discutir sua situação, mas não podiam chegar a uma con­clu­são definitiva. Todo o caso não era menos frustrante do que extra­ordinário. Uma entidade desconhecida, que se intitulava como o Demônio marciano, lhes convidara a se tornar seus agentes ou emis­sários terrestres. Além da distribuição de uma propaganda des­ti­nada a facilitar seu advento à Terra, eles deveriam introduzir uma droga alienígena não menos potente que a morfina, a cocaína ou a maconha e, com toda probabilidade, não menos pernici­osa.

— E se nos recusarmos? — disse Chanler.

— Vulthoom disse que neste caso será impossível nos deixar retor­nar. Mas ele não especificou o nosso destino, só sugeriu que será desagradável.

— Bem, Haines, temos de pensar um jeito de sair dessa se pudermos.

— Temo que pensar não nos ajude muito. Devemos estar muitos quilô­metros abaixo da superfície de Marte e o mecanismo dos elevadores, com toda probabilidade, é algo que nenhum terráqueo poderá jamais aprender.

Antes que Chanler pudesse oferecer qualquer comentário, um dos gigan­tes Aihais apareceu entre as árvores carregando dois dos curi­osos utensílios marcianos conhecidos como kulpai. Estes eram grandes bandejas de cerâmica semimetálica, adaptadas com taças remo­víveis e garrafas rotativas, nas quais toda uma refeição de sólidos e líquidos podia ser servida. O Aihai depôs as bandejas no chão diante de Haines e Chanler e então esperou, imóvel e inescru­tável. Os terráqueos, conscientes de uma fome rapinante, se servi­ram da comida, que estava cortada em várias formas geométricas. Embora possivelmente fossem de origem sintética, os alimentos esta­vam deliciosos e os terráqueos os consumiram até o último cone ou losango, empurrando-os para dentro com uma bebida que tinha cor de granada e sabor de vinho.

Quando terminaram, seu serviçal falou pela primeira vez.

— É a vontade de Vulthoom que andem por Ravormos e contem­plem as maravilhas das cavernas. Terão liberdade para irem sós e sem ajuda ou, se preferirem, posso lhes servir de guia. Meu nome é Ta-Vho-Shai e estou pronto para responder quaisquer perguntas que façam. Também poderão me dispensar quando quiserem.

Haines e Chanler, depois de uma breve discussão, decidiram aceitar esta oferta de um cicerone. Eles seguiram o Aihai pelo jardim, cuja extensão era difícil de determinar por causa da nebulosa luz âmbar que o preenchia e parecia vir átomos radiantes, dando a impressão de um espaço ilimitado. A luz, segundo souberam por Ta-Vho-Shai, era emitida pelo alto teto e pelas paredes, sob o estí­mulo de uma força eletromagnética de que tinha um comprimento de onda ainda mais curto que o dos raios cósmicos e possuía todas as qualidades essenciais da luz solar.

O jardim era composto de plantas e flores exóticas, muitas delas estranhas a Marte, e fora provavelmente importado do sistema solar alienígena de onde Vulthoom era nativo. Algumas das flores eram enormes tapetes de pétalas, como centenas de orquídeas reunidas em uma só. Outras eram árvores cruciformes, de que pendiam folhas fantasticamente longas e variadas que pareciam pendões ou rolos de escrita arcana. Outras eram ramificadas ou davam frutos de muitas formas extravagantes.

Saindo do jardim, entraram num mundo de passagens abertas e caver­nas abobadadas, algumas delas cheias de maquinismos ou toneis e urnas para estocagem. Em outras, se empilhavam imensos lingotes de metais pre­ciosos ou semipreciosos e gigantescos cofres trans­bor­davam de gemas brilhantes como se quisessem tentar os terráqueos.

A maioria das máquinas estava em ação, embora planejadas, segundo disseram a Haines e Chanler, para funcionar assim por séculos ou milênios. Sua operação era inexplicável até para Haines, com seu conhecimento especial de mecânica. Vulthoom e seu povo tinham ido além do espectro e além das vibrações audíveis do som e tinham compelido as forças ocultas do universo a comparecerem e obedece­r a seus desígnios.

Por todo o lugar havia um bater ruidoso como o de pulsos metáli­cos, um murmúrio como o de Ifrits1 prisioneiros ou titânicos ser­viçais de ferro. Válvulas se abriam e fechavam com um estrondo rude. Havia salas onde dínamos estridentes se erguiam como pila­res e outras onde grupos de esferas misteriosamente levitadas giravan silenciosamente, como sóis e planetas no vazio do espaço.

Subiram um lance de escadas, com degraus colossais como os da pirâ­mide de Quéops,2 até um nível superior. Haines, de uma forma meio onírica, teve a impressão de lembrar ter descido os degraus, e imaginou que se aproximavam da câmara onde ele e Chanler tinham sido entrevistados pela entidade oculta, Vulthoom. Não tinha, cer­teza, porém, e Ta-Vho-Shai os conduziu por uma série de vastas salas que pareciam servir como laboratórios. Na maioria destas havia colossos muito idosos, que se curvavam como alquimistas sobre fornos que queimavam com um fogo frio e retortas que fume­ga­vam com singulares penachos e nuvens de vapor. Uma sala estava abandonada e não era mobiliada com nenhum aparelho a não ser três grandes garrafas de um gás claro e incolor, mais altas que um homem e de formato algo parecido com o de ânforas romanas. Pelo que parecia, estavam vazias, mas estavam fechadas com rolhas que um ser humano mal poderia ter levantado.

— O que são estas garrafas? — perguntou Chanler ao guia.

— São as Garrafas de Sono — disse o Aihai, com o ar solene e sen­ten­cioso de um palestrante — Cada uma está preenchida por um gás raro e invisível. Quando chega a hora do sono de mil anos de Vulthoom, os gases são liberados e, ao se misturarem, perpassam a atmosfera de Ravormos até a mais baixa das cavernas, induzindo um sono de duração similar em nós que servimos a Vulthoom. O tempo deixa de existir e despertamos somente na hora do despertar de Vulthoom.

3 thoughts on “Tradução: Vulthoom (C.A. Smith)

  1. Vulthoom – Clark Asthon Smith | Leituras Paralelas

  2. Parabéns pela tradução!
    Sei o quanto é difícil traduzir, pois também me enveredo por esses caminhos tortuosos traduzindo contos e livros pouco conhecidos ou ignorados na nossa língua inculta e bela.
    Já traduzi Metropolis, algumas coisas de Phillip K. Dick e atualmente estou concluindo a tradução de A Desagradável Profissão de Jonathan Hoag de Robert A. Heinlein.
    Bom trabalho, e continue assim! Lembre-se que sempre existirá alguém que ficará muito agradecido e será muito beneficiado com seu esforço!

  3. Vulthoom – Clark Ashton Smith « Exilado dos livros

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