Injustiça Poética

Escutei as sirenes logo abaixo da minha janela e me levantei para ver. Continuava em silêncio a casa do outro lado da rua. Tinha estado assim durante os últimos doze minutos, contados no relógio.

O policial apeou da viatura e foi até a porta, que dava diretamente sobre a calçada. Bateu sem educação, conforme a situação exigia. Ninguém respondeu, as luzes continuaram apagadas.

— Abra essa porta, ou vamos soprar, soprar…

— O que aconteceu com você, querida?

Ela não respondia. Timóteo estapeou-lhe o rosto na esperança de reavivá-la, mas ela continuou com aparência cadavérica.

— Ó, merda!

A menina corria descalça pela rua.

— Tio, chama a polícia para a mamãe! Chama a polícia para a mamãe!

— Olha o que vocês fizeram, seus filhos de uma puta!

— Mãos para o alto, seu bosta!

Timóteo não as quis pôr ao alto. Que o levassem à força, se quisessem, mas não se renderia à culpa.

— Eu não fiz nada! Eu não fiz nada!

Os gritos e ruídos de madeira quebrando começaram por volta de dez da noite. Mais altos do que os gritos da torcida na televisão. Esqueci o jogo e cheguei à janela. Ouviu-se um tiro.

— Veado! Miserável!

— Vadia! Vai se foder! Vai me pagar agora!

Um tamborete de madeira voou pela janela de vitrô e foi parar na calçada. Logo em seguida um corpinho esquálido saltou pelo buraco aberto, milagrosamente não se cortando nos cacos, a típica agilidade do medo.

Eu estava com a cabeça cheia de álcool e enxergava a realidade através de um aquário enquanto Luzia, ainda dormindo ao meu lado, dormia o sonho dos anjinhos pelados.

Os policiais se entreolharam e fizeram um gesto de cabeça. Recuaram para derrubar a porta. Ouviu-se um estalo de tiro dentro da casa. Os policiais não pestanejaram e atiraram quatro vezes através da porta antes de saltarem sobre ela, transformando-a em lascas.

— Como pôde fazer isso comigo, Marta?

— Não sei do que está falando?

— Como? Como? O que é isso aqui?

E atirou um maço de cartas e fotos sobre a mesa.

— Tio, tio! Chama a polícia para a mamãe.

De repente senti os lábios de Luzia me convidando de volta.

— Péra, Luzia.

— O que?

— Tem uma merda qualquer acontecendo na casa em frente?

— E você quer ver merda? Vou virar para o canto, até amanhã!

— Ah, é disso que está falando?

— É, é disso que eu estou falando! Quem é esse tal de Artur?

— É o meu namorado, Timóteo.

Ele se sentou, com as mãos na testa.

— Você me disse que só queria um tempo.

— Sim, mas muita coisa aconteceu nesse tempo.

— O que vai ser de nossa filha?

— Uai, nada. Ela vai continuar vivendo uma vida normal. Indo à escola.

— Ela é minha filha também, Marta.

— Vai continuar sendo. Não tem nenhum problema.

Os policiais entraram na casa apontando os revólveres, prontos para atirar. Na cozinha, caída de bruços, com dois tiros nas costas, jazia Marta numa poça de sangue. Encostado à parede estava Timóteo, apertando com a mão esquerda o ombro direito.

— O que houve, menina?

— Mamãe não está bem. Chamem a polícia para ela. Rápido, é o papai.

Luzia se levantou, então, e se debruçou à janela comigo.

— Pelamordedeus, Luzia, bota uma roupa. Quer que o bairro inteiro fique olhando pros seus peitos?

— Já que você não está interessado, quem sabe algum dos vizinhos interesse?

E se debruçou mais ainda, deixando os grandes peitos penderem, ironicamente, sobre o parapeito da janela.

— Papai, não entre — cochichou a menina.

— Mas, filhinha, você ainda não está pronta?

— Papai, vá embora, por favor.

— Assim você deixa papai triste, Débi.

— Olá, Tim. Já chegou? Entre.

— O que você tem dito para a menina, Marta? Agora ela não quer ir comigo?

— Eu, o que eu deveria dizer, seu frouxo?

— Achei o revólver, sargento.

— Preserve a cena, soldado. Vamos algemar o susp… Mas que merda é essa, ô filho da puta? Tira essa mão daí!

— Sargento, ele está ferido.

E Timóteo desabou no chão, de cara sobre a poça do sangue de Marta.

— Eu disse, tio! Precisava chamar a polícia para a mamãe! Precisava chamar.

A menina entrou num pranto convulsivo quando os socorristas retiraram o seu pai, entubado, para dentro da ambulância:

— Papai! Papai! Então ela fez! Ela fez!

O sargento se aproximou:

— O que foi, menina? Do que você está falando?

— Mamãe…

— Infelizmente, menina, chegamos tarde demais. Sua mãe já tinha sido… Tarde demais para ela…

— Você não entendeu! Papai!

— Você vai poder ver o seu pai depois, querida. Se ainda quiser vê-lo depois do que ele fez.

— Você não entendeu, polícia. O revólver era da mamãe.

No dia seguinte, Artur faltou ao trabalho. Liguei para ele depois do expediente. Ele não sabia que eu era vizinho da Marta, e nem eu sabia que ele andara arrastando a asa para ela:

— Artur, o que houve contigo? Não foi trabalhar, está doente?

— Doente não. Mas acho que vou ficar.

— Por quê?

— Cara, a minha namorada, cara. Morreu.

— Oh, que… que puxa! Eu nem sabia que você estava namorando de novo.

— Pior não é isso. Ela tinha dito que era viúva. Que espanto o jornal de hoje!

— Artur, Artur. Dê-se por feliz que ela morreu.

Artur não entendeu. Talvez minha frase até abalasse a amizade. Mas eu precisava corrigir uma injustiça no mundo, se estivesse ao meu alcance. Pobre Timóteo: batera na mulher durante três anos de casamento e nunca fora preso. E agora estava preso por algo que não fizera. Em algum lugar Satanás estava gargalhando e patenteando sua nova invenção, a injustiça poética.

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