A Grande Ameaça à Propriedade Privada

A propriedade privada é supostamente um dos pilares do capitalismo. Tanto assim que os pobres de direita adoram criticar o socialismo que, supostamente, estaria interessado em expropriar seu carro, seu iPhone e sua caderneta de poupança.

Esta percepção da sacralidade da propriedade no capitalismo é, no entanto, um grande exagero: a burguesia, classe dominante no capitalismo, não tem apreço nenhum pela propriedade privada (dos outros) e sempre esteve muito interessada em apropriar-se do que não lhe pertencia, empregando astúcia ou força, conforme a necessidade. O colonialismo, por exemplo, nada mais foi do que o emprego da força (e de alguma astúcia) a fim de roubar dos povos menos fortes (ou menos astutos) a propriedade de sua terra e de seu próprio destino. A propriedade dos pobres, além de quase inexistente, é sempre precária: ninguém jamais pediu a um milionário que mostrasse a nota fiscal de sua Lamborghini, mas o pobre (especialmente o pobre preto) já teve de muitas vezes provar que era dono de uma mísera bicicleta — fora as vezes em que não conseguiu a prova e perdeu a magrela.

Atualmente o capitalismo está focado em abolir não somente o conceito de propriedade dos bens materiais como a própria ideia de que podemos controlar nossa privacidade e o nosso destino.

A obsolescência programada é uma destas estratégias. Cada vez é menos normal o mercado de “peças de reposição” para itens de alta tecnologia. Há vinte anos existiam até mesmo lojas especializadas em consertar guarda-chuvas, hoje em dia a “manutenção” de telefones móveis consiste, em basicamente, botar protetor antichoque, trocar uma bateria viciada, substituir uma tela trincada ou desobstruir uma saída USB enjambrada. Consertos mais complexos são impossíveis: vale mais a pena jogar fora e comprar novo do que tentar consertar. Mas obsolescência programada também inclui forçar os aparelhos a ficarem inadequados com o passar do tempo, para nos convencer de que precisam ser trocados mesmo que ainda funcionem bem. Há vinte anos era comum baixar da internet um programa de computador que cabia em um disquete de 1,44 MB. Hoje em dia um simples papel de parede tem vários megabytes. A primeira versão do Star Office que eu usei tinha 65 MB e todos achávamos absurdamente grande (um Microsoft Office era pouco mais que a metade disso). Hoje em dia o seu sucessor, LibreOffice, precisa de quase 300 MB.

Isso é exacerbado pela tentativa de controle do mercado de peças de reposição e de serviços de conserto. Uma coisa tão séria que há países onde os consumidores estão lutando pelo “direito de consertar” os produtos que compram, enquanto fabricantes, como a Apple, processam lojas de peças e difamam quem vive de tentar fazer reparos.

Ao forçar o consumidor a comprar frequentemente o mesmo produto porque o antigo ficou “obsoleto”, a indústria cria uma noção de “propriedade fluida”, na qual você não é realmente dono daquilo que compra. Não é mais o seu telefone, mas o telefone da… cite a marca ou operadora aqui.

Outra frente em que isto acontece é no mercado de software. A Microsoft foi a pioneira em transformar a relação de consumo nesse campo. Antigamente, “comprar” um programa equivalia a recebê-lo em meio físico (disquete ou CD) e ter a liberdade de reinstalar quando e onde quisesse. Muitos usuários da velha guarda ainda costumam ter suas caixas em que receberam as mídias de instalação.

A Microsoft trabalhou anos no sentido de fazer com que você “compre” algo etéreo, sem receber um objeto físico. As licenças do MS Office atualmente não incluem aqueles belos pacotes de antigamente. Em alguns casos nem mesmo lhe permitem baixar um instalador: você usa tudo a partir da internet ou depende da internet para que a instalação local funcione. Em um estágio posterior, Amazon e Apple (além da MS) criaram a ideia da “assinatura” pelo serviço. Agora você pode ser impedido de continuar usando aquilo porque pagou caso não tenha um outro serviço (o provedor de internet) ou caso infrinja os termos do acordo de licença. Tecnicamente, você pode ter cancelada a sua licença do MS Office se o utilizar para escrever um documento que denigra o governo dos Estados Unidos e isso venha a ser objeto de uma ação contra você, por exemplo.

À medida que a “Internet das Coisas” se expanda, o conceito de “Software as Service” vai se intensificar. No futuro você poderá ser impedido de usar sua geladeira ou fogão se não pagar a assinatura. Você não será mais proprietário dos objetos que adquirir, mas inquilino.

Isso se estende ao dinheiro. Com o fim iminente do dinheiro físico, o conceito de “propriedade” se torna fluido também em relação a ele. Assim como um criminoso pode invadir o banco e desviar fundos de sua conta, o governo pode bloqueá-los se você não estiver cumprindo a lei. Pior do que isso: você pode perder todo o seu patrimônio se tiver uma pane de seu disco rígido. Alguns dirão que o dinheiro físico também apresentava seus riscos (podia ser roubado, por exemplo), mas ele não podia evaporar no ar milagrosamente…

Mesmo os depósitos bancários são fluidos. Se houve proprietários de “Bitcoins” que perderam tudo quando empresas que administravam suas carteiras faliram, há titulares de contas correntes que tiveram bloqueados em sua conta até mesmo os valores referentes ao salário. A conta corrente, tal como hoje funciona, lhe nega o controle efetivo sobre seu dinheiro. De fato o seu dinheiro não existe.

O desenvolvimento do capitalismo em sua fase pós-moderna levará ao desaparecimento total do conceito de propriedade privada como os pobres de direita ingenuamente ainda a defendem.

Na verdade, a propriedade privada (do povo) sempre foi o grande obstáculo ao objetivo último do capitalismo: que é o acúmulo de capital (e poder) nas mãos de uma classe (a burguesia). Leis que garantam a propriedade sempre contêm brechas para que essa propriedade possa ser tomada. As brechas mais óbvias são em nome do “interesse social”, mas as brechas mais utilizadas são as que se referem aos meios obscuros de se grilar propriedade alheia.

Não por acaso o processo de acumulação primitiva de capital consistiu, basicamente, da expropriação dos recursos naturais dos povos colonizados. Isso inclui até mesmo o roubo descarado de propriedade alheia, como no caso dos “cercamentos” e da pirataria. No caso dos cercamentos, criou-se o conceito de que a propriedade da terra requeria um título e, como se sabe, somente os nobres detinham títulos, concedidos pelos reis. O cercamento significava basicamente concentrar toda a terra nas mãos dos nobres e chutar os antigos servos e vilões para as margens da sociedade. Esse fenômeno foi ainda mais evidente no Brasil, onde o português desapropriou o índio para construir o país. Todos os títulos de propriedade no nosso país descendem de um vício original: o momento em que alguém tomou posse de uma terra alegando que ela não tinha dono (basicamente porque tinha assassinado o dono), conseguiu proteger esta posse pela força (matando quem tentava alegar novamente que ela não tinha dono) até que se criou uma “tradição” e um costume, reconhecendo que certas terras pertenciam a certas pessoas, que passaram a ter o direito de vendê-las.

Foi por isso que Pierre Proudhon famosamente disse que “escravidão é assassinato” e “propriedade é roubo”. Escravizar era matar, literalmente aqueles que resistiam, figurativamente aqueles que se submetiam. Acumular propriedade era roubar o que pertencia a outros usando a força. Não há maneira, senão pela força, de reter para si somente algo que poderia ser útil a outras pessoas.

A economia virtual que está por surgir é uma que o conceito de propriedade privada será abolido porque qualquer forma de propriedade (de capital ou de bens) será exercida em um espaço que não é individual (o ambiente virtual). Somente os proprietários desses espaços ainda usufruirão de uma medida de propriedade — os demais deixarão até mesmo de conhecer o sentido da palavra como o conhecemos, porque para eles ela passará a significar algo que utilizam (gratuitamente ou mediante pagamento) e não algo que possuem. Inclusive já falamos em “meu blog”, “meu twitter”, “meu facebook”, “meu whatsapp”…

Mais que isso: tais espaços não serão públicos (como o mundo físico). Nenhum de nós é dono do Twitter (nada impede que ele se torne uma empresa sem rosto, negociada na Bolsa de Valores). Diferente de uma praça pública, aonde todos podem ir e encontrar-se, nosso encontro aqui só é possível enquanto o Twitter tolere minha presença e a sua. A tolerância do Twitter não está sob meu controle, possivelmente nem está sob o controle de alguém, mas de algoritmos focados em resultados de negócios.

De qualquer forma, relaxe: não terá sido o comunismo que acabou com a propriedade. Foi o capitalismo mesmo, e não precisou que um Exército Vermelho viesse expropriar sua carteira, você mesmo entrega tudo o que é e que possui em troca da impressão de viver em uma singularidade.

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