Não me Peçam que Salve a Nossa Cultura

Sou um escritor amador. Isto significa que me acomete uma série de dificuldades no exercício do que, para mim, está limitado a mero hobby. E mesmo assim ainda tenho de ouvir certas opiniões espantosas. O escritor — inclusive o amador — tornou-se subitamente um ser incensado com grandes responsabilidades: é ele quem deve dar continuar a tradição da “língua pátria”, construir a “identidade nacional”, oferecer “bons exemplos para os estudantes” etc. É muita atribuição para alguém que só tem algum respeito quando ganha muito dinheiro. Porque em relação a escritores, o povo respeita os que ganham dinheiro. E respeita o dinheiro, não os livros escritos e vendidos, que viraram esse dinheiro. Dinheiro. E antes que eu me esqueça: dinheiro.

A primeira grande barreira diante do escritor amador é o tempo. Ser amador significa ter de dedicar as melhores horas do dia a uma atividade produtiva. A esta atividade devem ser dedicadas as melhores energias também, visto que é nela que o escritor amador ganha o seu sustento e o respeito da sociedade. Terminado o dia — com os braços cansados, os olhos doídos, os dedos duros e as costas ardendo — o escritor amador terá de olhar para suas paredes e encontrar nelas indícios de inspiração para produzir uma página que seja. Se não o faz por um tempo muito longo, os seus amigos blogueiros dirão que está “perdendo a mão” e suspeitam que em breve abandonará o ofício.

A segunda grande barreira é o tempo. Ser amador significa ocupar a maioria das horas do dia em uma atividade “séria”. Não basta que sejam as melhores horas, estamos obrigados a ocupar também a maioria delas. Oito ou nove horas por dia, no mínimo e com alguma sorte, estaremos ocupados com o vil metal e as prosaicas preocupações com o mingau nosso de cada dia, que Deus não nos dá, mas vende. Terminado o dia — já cansado e já vendo todas as portas descendo e todas pessoas entrando em seus ônibus — o escritor amador terá de fazer “atividades de divulgação”, tais como ir a escolas mostrar seus livros, ir a livrarias mascatear seu produto, ir a feiras, exposições, fantasias, mercados diversos. Deve também atualizar seu blogue, contactar seus contatos no Facebook e quejandos. Com alguma sorte ainda se lembrará da ideia que teve às nove da manhã e mal teve tempo de prender num pedaço de papel solto.

A terceira grande barreira é o tempo. O escritor, amador ou não, compete com uma série de outras coisas pela atenção de seu leitor. Algumas coisas são óbvias, como o nada. Não ler nada é sempre mais atraente, para muita gente, do que ler qualquer coisa. Ler cansa, ler é um saudável “exercício”. Mas se existe um público que supera esta barreira, o amador terá que vencer, antes de atingir a este grupo, uma série menos óbvia de coisas que competem pelo tempo do leitor possível: outros escritores, amadores e profissionais, inclusive os mortos de vários séculos, que continuam vendendo, e vendendo barato, graças a não cobrarem mais direitos autorais e serem exigidos em vestibulares e concursos, o que motiva grandes edições baratas, e geralmente porcas.

E o escritor amador, que já poderia se sentir um quase hércules por vencer estres três trabalhos que valem por doze, descobre, então, estupefato, que há quem ponha a culpa pela falta de leitura desse povo justamente nos escritores que são “elitistas”, que não “vão até onde o povo está” ou que não “divulgam ativamente o seu trabalho”.

Com todo respeito, gostaria de dizer algo a quem me diz isso: tudo é fácil para quem não tem de fazer. Eis o segredo do pensamento positivo ditado pelos gurus da auto-ajuda: falar é fácil. Tem quem ache gelo mole porque morde água.

Em um mundo ideal, costureiras costuram, construtores constroem, consertadores consertam. Mecânicos (pelo menos os idôneos) não saem pela rua “caçando oportunidades” para mostrar seu talento. Costureiras não saem de agulha e dedal à mão esperando vestidos rasgarem na rua. Construtores não passam perguntando se você não está precisando aumentar um puxadinho na casa. Escritores também não deveriam sair de livro na mão perguntando se alguém não quer ler suas histórias. Quem faz isso é pastor na praça, não autor. Não autor que se respeite. Não autor que se dê ao respeito.

Escritores deveriam, principalmente, escrever. Já existe muita coisa impedindo que o pobre do escritor amador escreva. Se ele sair pela rua rodando poesia pelas esquinas em busca de clientes isso lhe roubará tempo em que poderia estar produzindo, aprimorando, tornando-se melhor escritor.

Não recrimino quem mascateia o que escreve. Cada um sabe quanto pesa a sua cruz. Muitas vezes somos forçados a fazer coisas que não queremos ou que não deveríamos fazer, apenas pela necessidade do dinheiro. Quantas vezes um autor que anda pela rua montando banca para vender livro não pensou: “eu poderia estar em casa terminando aquele conto ou revisando aquela novela”. Mascatear pode ser bom para desovar uma caixa de livros, mas é tempo gasto em coisas secundárias.

Afinal, quem tem a responsabilidade de despertar o gosto pela leitura é a escola, quem tem que construir a identidade nacional é a sociedade e quem deve continuar a tradição da língua pátria é o povo. O escritor até pode querer fazer um pouco disso, como o passarinho da fábula, levando gotas d’água para apagar o incêndio da floresta. Mas não lhe exijam isso, amigos. Não ponham nas costas destas pessoas que vocês, de fato, não respeitam, a responsabilidade de tanta coisa. Em um mundo ideal haveria demanda por poesia. E os poetas não precisariam convencer as pessoas da necessidade de ler, mas da preferência de lê-los.

One thought on “Não me Peçam que Salve a Nossa Cultura

  1. Reflexão muito interessante, JG.
    Ainda estou formando minhas próprias ideias sobre o ato de escrever, as responsabilidades e a liberdade neste ato, mas enfim… rsrsrs

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