Inocência Assassina

Jamais compreendi a origem das histórias de fantasmas, embora tenha sempre entendido a vontade, quase necessidade, que o ser humano tem de encontrar no mundo algo que vá além do concreto e do absurdo de nossas vidas uniformizadas. Por ódio à rotina é que tentamos beirar a transcendência, tentamos atingir o “algo mais”, romper o cimento cinza que recobre o jardim de inverno e encontrar terra úmida, cheia de vida, ali sepulta. Mas daí a crer em formas espectrais que vagam pelas noites, sem destino […]

Multiplicai-vos e Crescei

Nada saiu como planejado, e Selena engravidou da primeira vez que ficou com Marcelo. Ele teria entrado em pânico se compreendesse o que estava por vir, mas não tinha malícia suficiente para perceber. A agitação do Natal o consumia, o clima de festa o distraía de tudo e logo viria o Ano Novo, com suas novas prioridades, que o afastariam de mais coisas. Afinal, precisava escapar de todas as armadilhas de fase que a vida nos impõe, até o chefão final. Selena não notou tampouco, […]

O Louco e Seu Deus

O louco dançava à beira do rochedo, desafiando as ondas com seus versos: — Vamos para o céu, ou talvez… pulem, pulem! Andem logo, ele espera. Vocês não tem escolha! Pulem, pulem para os braços do dragão que esconde suas asas e seus dentes na maciez das ondas. Os homens continuavam construindo o barco sobre o gramado. Enquanto as mulheres colhiam frutas e preparavam carne-seca — provisões para a viagem. O louco observava e cantava seus versos desafinados: — Vocês não tem escolha, as velas serão rasgadas […]

Uma Noite em Malnéant

Original de Clark Ashton-Smith. Traduzido a partir da versão online em Eldritch Dark. Minha peregrinação pela cidade de Malnéant ocorreu durante um período de minha vida não menos obscuro e dúbio que a cidade mesma e as regiões nebulosas em que se localiza. Não tenho recordação precisa de sua situação, nem posso lembrar exatamente quando e como cheguei a visitá-la. Mas eu tinha ouvido falar vagamente que tal lugar estava situado ao longo de meu caminho habitual, e quando eu cheguei àquele rio envolto em […]

O Telefone

Meu primeiro texto de ficção fantástica, datado de 2005 ou pouco antes, incorporando elementos, então ainda bem vivos, das minhas impressões da primeira viagem aérea. Pensei no aparelho tranquilamente pousado à cabeceira da pista, reluzindo sua pintura branca sob o sol atípico daquela tarde de inverno nebulosa e morna e me acalmei. Depois o vi taxiar paquidermicamente em direção ao setor de embarque, sob os olhares tensos dos passageiros ainda indecisos se embarcariam ou não. Deteve-se ali, resfolegando como uma ave mitológica, até que todos […]

A Montanha

De qualquer ponto da cidade se pode ver a Montanha com sua ampla face de granito, uma larga presença a esconder o horizonte. Seu cume coberto de ralas árvores e rochas menores não é tão imponente, a não ser por estar tão alto. Subindo imponente como uma muralha, firmeza de séculos, sem flores nem poemas, é mais que um acidente geográfico, tornou-se parte da personalidade de Santa Cruz do Monte. Ao pé da montanha cresceu a cidade, contemplando o granito e se agarrando à lama […]

Uma Luz Rosada

Acabei de abotoar o cinto e tomei o resto da água mineral gelada para tentar ainda relaxar. Não seria difícil aquela noite, não era nunca muito difícil, mas a cada noite eu sentia que o controle das coisas me escapava, como se uma mão invisível estivesse puxando a corda que Deus me havia dado. Eu era um ladrão, não tinha vergonha disso, e estava prestes a cometer outro roubo. Desci do carro e comecei a caminhar. Meus sapatos de sola de borracha macia rangiam gostosamente […]

Criminosos em Fuga

Foi numa tarde quente e ensolarada de janeiro que os dois amigos resolveram agir. José e Paulo estavam desesperados pelo calor do sol e pela óbvia ausência de praia e cerveja ao alcance de suas mãos. Como bons mineiros pobres nascidos a centenas de quilômetros do mar, nunca haviam se banhado em águas salgadas. Esta circunstância nunca tivera nenhuma importância, mas naquele dia específico de verão em Santa Maria da Mata esta constatação ressoava em suas mentes como um sino incômodo que interrompe o sono […]

A Vampira de Leopoldina

Estamos tomando uma cerveja no Maneira Mineira quando a figura aparece outra vez, envergando o mesmo sobretudo negro de ontem. Tem os olhos mergulhados numa poça disforme de maquiagem borrada, as orelhas pontiagudas adornadas por alguns brincos de prata, a face pálida parece uma tela virgem perdida no meio da cabeleira solta, esvoaçando, de cor morta e penteado inexprimível. Ela não sorri, parece incomodar-se com o ruído selvagem desta praça animalesca onde se acasala a juventude, mas mesmo assim tão deslocada ela está aqui. Ninguém […]

Aprendiz de Feiticeira

Escrito originalmente em 1999 ou 2000, um de meus primeiros experimentos em prosa. Em sua calma sensualidade, a mão sobre o peito e a inocência no rosto, ela balbucia uns segredos inconclusos. Bela Adormecida tão recentemente apresentada à ingratidão do mundo, murmura festividades verbais inconsequentes que flutuam sem compor ordem na confusão improvisada de seus pensamentos. Ela não sabe, mas sente, que as palavras são armadilhas em que sempre caímos. Há tão pouco tempo ela atingira a feminilidade que ansiosamente desejava, há tão pouco tempo […]