Homens não sabem flertar

Eu tenho uma amiga virtual que costuma me chamar no Facebook para pedir conselho sobre homens. Como eu estou longe, ela consegue abstrair meu sexo e me imagina como um janelinha dentro de um programa de computador — isso lhe permite conversar comigo de uma maneira que ela não conversaria com um amigo normal. Além do que eu não sou muito normal. Dia desses ela me perguntou por que, com tanta frequência, os homens parecem não ver que a mulher está evidentemente dando bola. A […]

Amor Gótico

Ouviram um rangido desagradável. A lua gorda de maio abriu uma janela estreita entre as nuvens e a fumaça para ver Lucinda nua. Ela riu, a lua deve ter rido de volta, fazendo-lhe cócegas na pele pálida. Então ele se afastou, constrangido e com a sensação incômoda de ter as nádegas desprotegidas contra o vento e o desconhecido. — Já foi? Queria mais… — Você não sossega esse facho, Lucinda? — Deixe, cara. Aproveite a noite, aproveite a lua, aproveite a paisagem. E aproveite que […]

“Riding the Lightning”

A primeira impressão de que eu estava no começo de algo estranho foi quando ouvi um tinir metálico vagamente ritmado. Logo acompanhado por vibrações graves e um zunido agudo que ia e vinha, numa oscilação que me pareceu familiar. Eu caminhava por uma rua estranha, muito ampla, com uma linha férrea à minha esquerda e uma linha de edifícios que, parede a parede, muravam o horizonte. As pessoas ao meu redor se vestiam para um frio moderado e não pareciam ouvir as mesmas sensações musicais […]

Por Causa do Mau Tempo

Fechou-se o céu e eu me sentei para lembrar, ouvindo a água calma pipocando impulsos grossos no papel surdo que esqueci debaixo da goteira. Em algum lugar Jacinto se despede, insípido como consegue, e Fabiana está em casa retocando unhas e atormentando os pelos. Todos esperam que esteja um dia lindo quando o sol cantar nos galhos e as asas dos anjinhos ruflarem pela igreja, assustadas com o arrastar arrítimico do zelo apressado. Amanhã se casarão depois de dar-se as mãos por tanto tempo que […]

Desencontro Marcado

Um dos mais antigos contos meus, datado de 2000 ou 2001 e recuperado de um arquivo perdido numa pasta esquecida de um HD que eu nem sabia que tinha mais. Um conto escrito para uma pessoa que nunca mais verei (a moça da banca de jornais é alguém que conheci, há muito tempo, em uma praça que não existe mais, em São João Nepomuceno). Fiz as malas à noite, enquanto todos dormiam, para a definitiva volta para casa. A noite de sexta não fora como […]

Dolores, com Pudores

Vladimir contemplou um raio de sol nadando no copo de cerveja e sentiu a leve pontada de um pequeno espinho no peito, que o fez tropeçar nas batidas como se o relógio histórico tivesse uma engrenagem empenada. Era tarde já, embora ainda nem fossem sete da noite. Tarde para sonhar com Dolores. Então ouviu a voz dela no rasgo de um sorriso e teve vontade de pagar conta e sumir, ou ir embora deixando tudo na pendura, pondo pelo menos uma rua entre ele, Dolores […]

Tempo de Semear, Tempo de Colher

Estas montanhas têm uma história, desde os tempos dos índios, desde antes do primeiro português cortar a primeira árvore. Eles vieram, viveram, morreram, viram o mal que havia e se foram, ficaram apenas alguns pobres puris isolados, entocados quase como bichos. Vieram os emboabas a caminho das minas, tentaram fixar-se aqui, mas não ficou nenhuma vila, queimaram todas as casas, sumiram no tempo como se nunca tivessem pousado, e a estrada real passou ao largo.

Marlene, Número 156

Ele parou o carro à sombra de uma árvore, como um espião faria, e abaixou até a metade o vidro. Passou os dedos pelos cabelos uma última vez, para ver se não havia nenhum desleixo excessivo, e olhou pela greta em direção à casa número 156. Tirou do bolso o pedaço de papel onde anotara o endereço e conferiu se não havia distraidamente invertido os números em sua lembrança e respirou fundo. A casa devia ser aquela.[…]

Janaína e Miguelito

O ganso grasnou na neblina leitosa e Janaína chegou à janela para ver os raios infantis de sol nas teias de aranha que punham um véu nas folhagens úmidas, o orvalho parecia um salpico de perolazinhas: não havia maior troféu no mundo que estar viva e ver aquilo! Dona Gertrudes trouxe uma bandeja de torradas com manteiga, café de rapadura e queijo. Tudo cheiroso como na infância soterrada pelo tempo. Há momentos na vida que parecem durar eternidades, mesmo sendo poucas semanas. E Janaína ouvia […]

O Tempo no Caminho

O velho relógio bate nove e quinze no peito sorrindo para um piano que tocou meu lábio como o som áspero da morte que vem perto. Como ando provisoriamente vivo, e vivo reto, procuro um desvio que retarde a sorte certa que aguarda os relógios, lábios e pianos. Quando achar um caminho errado destes, escondo minutos da espera que não quero. Aqui comigo nesta sombra, nesta névoa, a ilusão feliz de que tudo ainda é e nada era.