O Preço da Passagem [3]

Não percebi quantos dias passei naquele lugar. Dizem-me que foram cinco. Nos primeiros dois ou três o homem do quepe tentou extrair de mim alguma informação sobre as pessoas com quem estivesse envolvido. Mas de alguma forma, segundo consta dos relatórios a que hoje tenho acesso, graças ao habeas data, eu apenas circulava em torno da ideia de ter entrado em algum barco em companhia da falecida Jurema, de ter saído sozinho e a deixado lá. Assinado um tal Tenente Cavalcanti.

Os meus companheiros de partido, anos mais tarde, me felicitariam por ter sido tão forte, ter aguentado a tortura sem revelar nenhum nome. Porque, de fato, antes do acidente, eu sabia muitas coisas e conhecia muitos nomes. Depois, não mais. Era como se minha vida anterior não existisse. Dizem que foi a tortura que me causou esta amnésia, talvez tenha sido outra coisa.

As marcas no meu corpo não evidenciam nenhuma excessiva violência, são poucas as cicatrizes e não sei quais delas resultaram da tortura e quais, do acidente. Os relatórios e o testemunho de minha família dão conta de que saí da delegacia direto para casa, o que provavelmente signica que não fui submetido a nada sério que exigisse convalescença. Considerando que muitos saíam em caixões lacrados ou nunca saíam, até que tive sorte. Mas, sorte é palavra que prefiro não usar para mais nada na vida.

A única lembrança que tenho dos dias em que estive com o Tenente Cavalcanti naquele escuro cubículo de algum órgão da Aeronáutica, além do diálogo inicial, é uma cena na qual ela se aproxima de mim, com as mãos ensangüentadas, dizendo:

— Continuo dizendo, rapaz. Você é um cabra de sorte. Enquanto eu tava lá cuidando do alemãozinho safado chegou esse relatório do DOPS. Ou alguém lá gosta de você ou você é só um imbecil que fugiu da polícia para não ser pego bolinando moça de família.

O tal relatório está anexado ao meu dossiê. Lá diz que não havia nenhum envolvimento meu com organizações de esquerda — o que é mentira. O policial rodoviário, em seu depoimento, dissera que nos perseguira só por suspeitar que eu fosse muito jovem para dirigir, o que pode ser verdade. E eu só fora parar diante do Tenente Cavalcanti porque o meu nome seria o de um conhecido líder de guerrilha urbana, o que também era mentira. De forma que não pesava contra mim nenhuma suspeita concreta, apenas mal entendidos. De fato eu estivera por tão pouco tempo no movimento, segundo os companheiros de partido. Isto, claro, não impediria que o Tenente Cavalcanti arrancasse meus olhos e me fizesse comê-los, se quisesse, e muita gente padeceu longamente por suspeitas bem mais vagas que essas. Mas era uma época em que ele certamente tinha muito “trabalho” a fazer e acabei tendo a sorte de ser deixado de lado. Ou, talvez, alguém lá no DOPS realmente gostasse de mim.

Minha mãe me recebeu como ao filho pródigo. Vivi sob sua proteção os anos mais terríveis da ditadura. Não sei se tive juventude, não sei o que fiz de minha vida naqueles anos. É como se uma imensa amnésia alcoólica tivesse apagado tudo de meu cérebro. Meus parentes não me respondem nunca quando lhes pergunto como estava, em que pensava, o que dizia. Fecham o cenho, desconversam. Sei que minhas lembranças só retornam a partir de 26 de setembro de 1984. Eu tinha, então, 37 anos e acordei em uma bonita manhã de sol, ouvindo o passo do relógio, bem-te-vis cantando no jardim. Mais ou menos como um paciente que renasce de um coma.

Não havia ninguém comigo a não ser uma prima gorda e de rosto espinhento que me sorria. Prima Maria das Graças fora quem, por alguma razão, reduzira as doses de meus remédios. Cuidara de mim todos aqueles anos, dizem-me que até deixou uma faculdade para me amparar durante a doença de meus pais. Não sei se por conformismo ou para exercitar uma gratidão que todos me diziam que eu devia ter, afeiçoei-me a ela e ao seu rosto redondo.

Acabamos nos casando, para sua grande, imensa, irrefreada felicidade. Ela logo tratou logo de engravidar e ter duas crianças lindas, felizmente pouco parecidas com ela, a quem eu amei de uma forma distante e imprecisa. Tudo em minha vida parecia mortiço, pálido, outonal — não conseguia amar nem mesmo aos meus filhos. Havia alguma coisa de que eu lembrava mal, alguma coisa que me fazia ter uma melancolia denitiva.

Meu despertar acontecera apenas porque prima Maria das Graças, sem a fiscalização de meus falecidos pais, deixou-me sem os remédios que eu andara tomando por anos e que me mantinham seguro. Oh, foi no dia do velório deles que acordei. De que foi mesmo que morreram? Ah, sim, um acidente de trânsito besta desses que acontecem. Ou teria sido outra coisa. Tento pensar nisso, mas minha mente é fugidia sobre quase tudo agora, exceto sobre certos detalhes que eu gostaria de esquecer. Ela diz que o fez para que eu pudesse velar-lhes, mas alguns parentes, maldosamente, dizem que ela me queria para marido, coisa que aos seus trinta e cinco anos e sem beleza notável, ela não tinha mais esperanças de conseguir, a não ser que fosse um jovem louco e carente.

Por ela, apossei-me de minha herança de filho único e, mesmo vacilante de memória, busquei uma vida normal. Varri da mente as imagens leitosas de um passado que parecia outra encarnação, mudei de cidade, aprendi uma prossão para passar o tempo enquanto ela, de forma misteriosa, fazia multiplicar minha herança em bens inesperados (qual faculdade mesmo ela cursara? Economia talvez, ou Ciências Contábeis). Para facilitar o meu desligamento dos traumas do passado eu me mudei para Minas Gerais, para bem longe do mar, que nunca mais vi.

Por alguns anos a lembrança de Jurema me abandonou. Vivi melancólicos dias de quase felicidade, porque o esquecimento é uma forma de felicidade. Tivemos nossos filhos aqui. Parecia que eu havia achado um caminho para viver dignamente os dias que tinha de resto na vida. Então você apareceu.

— Não gostou de me rever, camarada Sanches. Depois de todos os maus pedaços por que passamos, foi um milagre termos vivido para ter esse dia.

— Jovino, você não imagina o mal que me causou!

— O que lhe fiz, camarada Sanches?

— Por favor, não me chame por meu nome de guerra. Ele é parte de uma dor que eu gostaria muito que tivesse passado.

— Tudo bem, Sérgio. Eu, eu entendo. Ouvi contarem o que lhe aconteceu. Eu realmente não devia ter vindo aqui, reabrir as antigas feridas. Eu só achei que, talvez, pudesse reencontra em você o meu velho amigo dos tempos de escola. E Deus sabe como ando precisando de amigos. Mas, tudo bem, como disse, eu entendo sua dor. Vou me arrastar com a minha para outras bandas.

— Jovino, por favor, agora que você já está aqui, não há mais motivo para ir embora. De qualquer forma, eu não vou conseguir mais esquecer as coisas que você me fez lembrar espontaneamente.

— Cara, você ficou dopado por quase dezessete anos. Não me admira que não lembre nada do que lhe passou. Mas você é um herói, Sérgio. Eu venho aqui em nome do partido lhe dizer isso. Nós reconhecemos o seu heroísmo, nós entramos com um processo contra a União por reparações aos nossos antigos filiados. Você entre eles. Venho aqui, em companhia de nosso advogado, para colher a sua assinatura para dar mais peso à nossa reivindicação. Não sei se você sabe, Sérgio, mas você é uma lenda viva para o Partido Socialista Revolucionário.

— Não me fale em lendas, Jovino, quando você usa essa palavra eu me sinto como se alguma coisa tivesse sido fisgada no abismo.

— Mas, você não se lembrava mesmo de nada? Nada?

— Vagamente. Mas quando eu o vi descer do carro e reconheci o emblema do partido em sua lapela eu comecei a ter lembranças em borbotões, como se alguém houvesse levantado a tampa do inferno. Só não me lembro do que vivi durante os dezessete anos passados entre 26 de abril de 1967 e 26 de setembro de 1984. A não ser por algumas sombras, vultos, palavras soltas.

— Sua mãe o mantinha sedado, dizendo que estava louco, porque os milicos queriam te pegar de volta para tentar lhe arrancar uma confissão. Mas sempre que eles chegavam em sua casa você estava estirado na cama, babando e delirando. Então eles acharam que o Tenente Cavalcanti tinha sido duro demais com você logo na primeira vez, e acabaram desistindo, mas curiosamente você não se recuperou. Só em 1984, por alguma razão.

— Dizem que minha mãe me manteve sedado até que a minha prima, hoje minha mulher, que vinha cuidando de mim na velhice dos meus pais, resolveu tirar todo o remédio.

— Nossas fontes apuraram uma história diferente, Sérgio. Na verdade, nossas fontes dizem que você nunca tomou remédio algum. Até 1984, quando a sua prima começou a lhe dar uns calmantes naturais e a lhe fazer massagens. Quem lhe disse isso?

— Parentes seus, fofocas de família. E as investigações judiciais referentes ao processo de sua indenização. Tivemos acesso às suas fichas médicas.

— Eu não entendo.

— Fora as cenas de delírio que você citou, certamente fruto de algum soro da verdade usado pelos torturadores, qual a última coisa de que se lembra?

— Eu dirigia um Aero Willys vermelho, ano 1963, ouvia Beatles no rádio, e estava comigo Jurema.

— Não sabe o que estava fazendo?

— Cara, aqui em Minas Gerais, onde ninguém me conhece, procurei esquecer os dezessete malditos anos de minha vida entre 1967 e 1984. Procurei me acostumar com esse buraco negreo em minha memória. Tenho cinquenta anos, mas é como se tivesse trinta e três, a idade de Cristo quando morreu.

— Vamos, tente puxar da memória. A palavra Tchecoslováquia lhe traz algum significado à mente?

— Raios! Você… sim! Naquela tarde íamos a Vitória para pegar um carregamento de armas contrabandeadas da Tchecoeslováquia em um navio de bandeira turca. Lembro como se fosse agora! Submetralhadoras para uso em assaltos a banco!

— Exato, camarada!

— Com mil diabos, eu era mesmo um subversivo!

— Bem vindo de volta, Camarada Sanches! Vamos, não precisa chorar de emoção pelo reencontro.

— Não, não é a emoção do reencontro. Lembrar isso me fez entender que uma parte do meu delírio não era delírio. Jurema! Lembro Jurema com mais definição agora. Ela não era só parte de minhas alucinações! Jurema era a minha… noiva!?

— Camarada, não quer assinar também a ficha de filiação ao Partido?

— Por favor, Jovino, saia da minha casa, saia da minha vida, nunca mais apareça. Você não tem ideia do mal que me fez.

— Do que você está falando, homem?

— Jurema, Jurema está de volta!

— Camarada, acho que você está com uma recaída. Isso não faz sentido. Acho que você sabe bem o porquê: Jurema não pode voltar de onde está, ela morreu em 27 de abril de 1967 naquele mesmo acidente.

— Sim, eu sei que ela morreu, mas mesmo assim ela está de volta.

— Isso é loucura, Camarada Sanches! Ai, caramba! Sua mulher vai ficar furiosa quando voltar e ver você delirando assim! Vai achar que foi tudo culpa minha, ó merda!

— Senta aí, Jovino, por favor, senta aí e não vai embora!

— Agora há pouco você estava praticamente me expulsando!

— Preciso de você, preciso de companhia, porque Jurema está vindo, para acertas as contas comigo. Durante muito tempo eu estive protegido porque não me lembrava de nada, agora que me lembro é como se ela pudesse me farejar, ela está vindo. Eu sinto, eu sei.

— Eu vou é embora daqui, chamar um médico para cuidar de você!

— Não, não vá, Jovino. Não vá, eu não vou sobreviver muito tempo sem ter alguém para manter Jurema afastada de mim.

— Deixe-o ir, Sérgio!

— Q-quem diz isso?

— Camarada, vou buscar socorro, volto já. Não fique aí falando sozinho. Tudo vai ficar bem.

— Vá se foder, Jovino! Deixa de ser covarde. Eu sei que você confessou sob totura e me implicou, desgraçado! Foi por isso que me prenderam no hospital! Como eu queria não ter assinado essa porra desse requerimento de indenização!

— Deixe-o ir, Sérgio!

— Ju-jurema?

— Você já imaginava que eu apareceria. Muito bem. Consegui achar você, depois de todos esses anos. Como pôde me esquecer?

— Eu esqueci mais do que isso. Foram muitos anos, muitos remédios.

— Você sabe que isso é mentira, Sérgio. Você mesmo tratou de se proteger, de se envolver, de se embrulhar, de empacotar cada lembrança minha e jogar no porão mais fundo da sua memória. Porque sabia o que tinha feito comigo, e não tinha coragem de enfrentar o seu destino. Mas não esqueci de nada!!! Eu esperei até esse dia para vir!

— Por que esperou?

— Ora, por que? Eu não viria para buscar um monte de carne, uma peça de presunto apenas.

— Eu me lembro agora que a encontrei muitas vezes, com essa mesma roupa preta, esta maquiagem, esses cabelos soltos. Sempre achei que fosse uma dessas garotas roqueiras góticas. Nunca a reconheci.

— Você estaria mais perto da verdade se o estilo fosse death metal.

— Jovino não a viu.

— Ele não tem o que é preciso para me ver.

— Uma sensibilidade especial, algum tipo de dom?

— Nenhum dom, apenas a experiência de estar estado no Limbo.

— Eu, eu me lembro vagamente. Uma areia com gosto de cinza, um céu sempre negro, um mar perigoso em que as almas se perdiam, uma oportunidade não aproveitada, um erro terrível, um acidente trágico.

— Você sabe muito bem que não foi um acidente.

— O que foi?

— Foi a coisa mais antinatural que o Inferno já viu em milênios. O suicídio de uma pessoa viva nas águas do Estige Por ter me suicidado eu mereci o inferno, mas por ter me suicidado naquelas águas eu me tornei algo tão bizarro que até os demônios respeitam. Por isso sou livre para vagar pelo mundo, e para vir buscar você.

— Imagino que devo passar por lá outra vez. Bem, você me permite ao menos que eu deixe algum registro, para que ninguém pense que fui vítima de um crime hediondo, ou que me suicidei. Para que um inocente não seja incriminado, ou a Igreja me negue ritual?

— Escreve a história de sua vida, se queres. Tenho tempo e estarei contigo enquanto escreves. Mas adianto que as suas preocupações são risíveis e não fazem sentido. Melhor deixar uma nota breve.

— Está bem, vou escrever: No dia 29 de novembro de 1997, sábado, às 15h30, veio o Anjo da Morte me buscar-me, na pessoa de Jurema, a mulher que por tantos anos eu balbuciei em delírio que a deixara no barco. Eu a vira várias vezes ao longo dos anos, mas não a reconhecera por causa de meu profundo esquecimento, mas também pelas mudanças em sua aparência. Somente quando recuperei a memória de meu passado ela me ouviu e veio até mim, revelando-se quem era. Então vi suas enormes asas de penas negras. Ela veio como aparecia em meus sonhos — talvez seja esse o último desejo que Deus atende aos desgraçados. Veio como uma bela mulher, de vestido negro, olhos tristes e imensos, unhas pintadas de negro. Com longos cabelos negros também, belos de algum modo. Eu me entrego conformado porque nada resta a fazer. Sabendo que encontrarei meu destino, e o alívio de um sofrimento que não me deixa. Me rendo ao meu destino ignorado…”

— Ignorado não.

— O que quer dizer, esse “não”?

— Quando eu me revelar em minha forma real, você saberá quem veio por você, e para onde você vai!

###Pós-Escrito.

Atendendo ao chamado do Sr. Jovino Arantes Silva e de seu advogado, Dr. Eduardo de Oliveira Alves, o Sargento Rodrigues e o Soldado Inocêncio compareceram à residência do artesão e ex ativista político, Sérgio Raimundo de Albuquerque Fernandes, esposo da empresária Maria das Graças Rolim Fernandes. Ao chegar à residência do Sr. Fernandes, os agentes o encontraram caído em decúbito dorsal na varanda de sua casa, vestindo uma bermuda jeans e uma camisa pólo verde e calçado de sandálias de couro do tipo franciscano. Ambas as suas mãos estavam crispadas em torno do pescoço, como se tentassem remover um nó de forca invisível. Seu rosto apresentava uma expressão torturada, cheia do mais profundo pavor, evidenciando a agonia que deve ter padecido em seus últimos instantes de vida. O legista relatou não haver nenhum ferimento visível, marca de estrangulamento, nem qualquer indício de envenenamento. A causa mortis foi dada como enfarte agudo do miocárdio, embora não se tivesse notícia de que o Sr. Fernandes tivesse apresentado anteriormente qualquer enfermidade cardíaca. Sendo sabida a sofrida história de vida do Sr. Fernandes, uma fragilidade do coração, ainda que inaparente, não era de todo inesperada. Durante a autópsia o legista conseguiu, porém, recolher um indício inesperado, que tem desafiado interpretações: a mão direita do Sr. Fernandes continha uma única pena negra, que não se conseguiu identificar a qual ave pertence. Trata-se de uma pena realmente curiosa não apenas por não ter sido ainda identificada por nenhum ornitologista consultado, mas também por um fenômeno curioso que pôde ser observado nos dias seguintes ao fato por todos os que foram à delegacia, onde estava guardada em uma jarra hermética: mesmo na ausência absoluta de qualquer agitação do frasco, e sem a possibilidade de qualquer corrente de ar penetrá-lo, a pena manteve-se continuamente em movimento, reduzindo gradualmente sua agitação até finalmente parar. Na noite seguinte ao seu último estertor, ela desapareceu misteriosamente. A polícia acredita que algum dos ornitologistas subornou um policial para apossar-se dela. Um inquérito está em curso para apurar responsabilidades. Seja quem for que levou a pena, não se deu ao trabalho de levar a jarra e nem sequer de violar o lacre de sua tampa.

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