Marlene, Número 156

Ele parou o carro à sombra de uma árvore, como um espião faria, e abaixou até a metade o vidro. Passou os dedos pelos cabelos uma última vez, para ver se não havia nenhum desleixo excessivo, e olhou pela greta em direção à casa número 156. Tirou do bolso o pedaço de papel onde anotara o endereço e conferiu se não havia distraidamente invertido os números em sua lembrança e respirou fundo. A casa devia ser aquela.[…]

O Tempo no Caminho

O velho relógio bate nove e quinze no peito sorrindo para um piano que tocou meu lábio como o som áspero da morte que vem perto. Como ando provisoriamente vivo, e vivo reto, procuro um desvio que retarde a sorte certa que aguarda os relógios, lábios e pianos. Quando achar um caminho errado destes, escondo minutos da espera que não quero. Aqui comigo nesta sombra, nesta névoa, a ilusão feliz de que tudo ainda é e nada era.

Tivemos Futuros Promissores

Américo dizia-se amargo de propósito: queria treinar rabugice para quando fosse famoso. Então poderia esnobar entrevistas e desfilar namoradas bonitas em carros do ano. Não conseguia nem ficar famoso e nem realmente ser amargo: era apenas triste e apagadiço. Sentava-se na primeira das carteiras para fingir ser estudioso, mas andava sempre com notas ruins e sapatos rigorosamente engraxados. Meticuloso em suas escolhas, enquanto não ficava famoso e amante de modelos perfeitas deixou-se namorar por Jaqueline, que era vesga, magra, sardenta, desconjuntada e fanha. Casou com […]

Beijo Frio

Estava escuro ainda quando Manoel acordou. A cerração ainda recobria as encostas da serra e as estrelas estavam sumidas no meio de tanta umidade no céu. Mas tinha ficado difícil continuar dormindo, e ele não sabia porque. Dentro da barraca o frio não entrava tanto, o saco de dormir isolava bem a umidade, mas de alguma forma ele acordou e foi se sentar, ainda enrolado nos agasalhos que catou da mochila. Acendeu o fogareiro e começou a esquentar água para preparar um café solúvel. Reparou […]

Metade

Ele a acorda com um sussurro no ouvido. Está nervoso e cochicha baixo, como se temesse tudo. Ele a acalma, antes que grite, e diz cheio de medo: “Há um barulho na cozinha, amor. Está ouvindo? Fale mais baixo, pode ser alguém que nos ouça. Está ouvindo agora? Então fique bem quietinha aí, só escute. Há um barulho na cozinha, amor.” O silêncio se adensa, o ar parece aparado. O silêncio assobia no ouvido, como uma broca giratória penetrando até o cérebro, um chiado de […]

Meu Encontro com a Magra

Cheguei de viagem cansado, ansioso por dormir. Deixei meu carro na garagem e saí pela noite anódina e sem lua. O ar estava profanado pela chuva ainda recente, exalando uma catinga de morrinha de cachorro molhado e os meus pés chapinhavam nas poças de água barrenta que salpicavam as calçadas. No céu parcialmente limpo algumas estrelas, nenhuma vencendo de todo a iluminação artificial. Havia uma mulher sentada num banco de praça no meio do meu caminho, uma mulher vestida roupas negras e longos cabelos, com […]

O Blog de Um Milhão de Reais

Maria Bethânia atraiu uma grande reação quando “se soube” que ela teria apresentado ao Ministério da Cultura um projeto para desenvolver um *blog* de poesia e obtido uma licença para captar R$ 1.300.000,00 (coloquei assim, com todos os zeros, para que vocês possam tentar visualizar melhor a cifra). Seguiu-se grande indignação pilotada pela mídia amestrada (aquela que abana o rabo quando lhe mostram o osso de uma polêmica) e surgiram desmentidos e explicações. […]

Pela Eletricidade, Por Amor

Adormeci na frente do computador, sem terminar a monografia. Com o prazo quase esgotado, passara mais de quatro horas digitando como louco a partir de notas desconexas que reunira nos meses de pesquisa, mas em vão. Tanto esforço que minha mente começou a sair de controle e acabei caindo de cara no teclado no meio da madrugada, apesar de todo o café. Não sei quanto tempo fiquei apagado. Podem ter sido segundos ou horas, porque não estava prestando atenção ao relógio quando dormi. Sei que […]

Vashti: A Feminista Original

A Rainha Vashti era uma mulher muito bonita, segundo reza o livro. Tinha de ser, pois os reis antigos eram bem exigentes quanto a isso. A história de sua desgraça exemplifica muito bem como as religiões abraâmicas veem as mulheres e quais são os valores sociais nos quais somos educados. Durante um banquete dado pelo rei aos seus sátrapas, ministros e funcionários — um banquete que já durava sete dias — o rei, alegre pelo vinho, pediu aos seus camareiros que trouxessem a rainha diante […]

Chega de Anjos

Teobaldo tentava esquecer. Poderia ser na próxima golada de cachaça, ou na quinquagésima; tinha medo que não fosse nunca. Por via das dúvidas, entornava para dentro da goela a décima oitava enquanto ouvia Sílvio Luiz esculachando algum centro avante que perdia um gol: “Pelo amor dos meus filhinhos, esse até a minha sogra fazia!” As imagens vacilavam com a interferência da geladeira, o som vacilava com a interferência da gritaria, sua mente vacilava com a interferência de uma arma fria que levava no bolso. Ninguém […]