Assombrações

A memória especial de a ter beijado um dia
se apagou de mim sem pressa e sem pensar.
Rostos pálidos pintados em paredes brancas,
fadas esqueléticas que voam nuas pelo ar
— o passado é só mais uma entrega que faltou.

Eu podia ter perdido toda esta carne um dia,
e podia ter vendido até a vida desta casa,
mas só deixei levarem os meus sonhos embora
em embrulhos secos, cortados em pedaços
— se eu esquecesse tudo em que cria
então talvez eu poderia entender
a solidez das coisas e suas velocidades.

Espíritos malignos aparecem no terreiro um dia,
parecem vigiar enquanto os vizinhos superiores
armam algazarra no jantar à luz de tela.
Cabeças humanas jazem mudas sobre ombros
e vozes de mortos se expressam, murmuradas,
filtradas pelas paredes finas e o ar espesso.

Endureceu a liquidez com que se transbordava
uma alegria pequenina que ainda se agarrava
nas bordas do penhasco enquanto eu olhava.
Ficou a poça de alegria, tristemente transformada
na imagem da saudade que passou de ontem
e não me vale mais de nada.

As frases se achatam com seu peso contra mim,
ouço enquanto me atingem com essa culpa.
Tudo que passou foi minha arte, tudo parte
e a tarde seca sopra e arde pó vermelho por aí.
E por aí se perde um aparelho antiquado,
incomprimível de já tão pisado, se o encontram
vão achar até que eu queria preservá-lo.

22/11/1995 + 24/08/2012

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