Ser Forte e Ser Bom

Se posso destruí-lo, então eu sou melhor do que você. Assim funciona o argumento da força, a ética da opressão. Intimidação física enquanto argumento não é algo tão fácil de detectar porque é a ideologia do poder, é assim que se impõem as leis. E é assim que se fazem os heróis: matando, explodindo, derrubando. O poder de construir algo belo não é tão admirado quanto o de destruir qualquer coisa, bela ou não. Uma arma fascina mais do que uma colher de pedreiro. O […]

Quanto Você Quer Pagar?

Quanto você pagou pelo seu dia de hoje? Nada? Tem certeza? Provavelmente você está enganado, tanto quanto eu estive durante décadas perdidas de minha vida. Cada dia que você vive está pago, e muito bem pago, com uma moeda cujo valor subjetivo é maior que o do dólar e o do iene: a liberdade. É com liberdade que você paga por lhe terem deixado vivo mais um dia. Com ela você comprou, indiretamente, o pão e o café que o prepararam para outra jornada. Esta, […]

O Fascínio do Latim

Os homens de lodo e de sono aguardam o fim da última vela repetindo com vozes defuntas suas preces de cor sem sentido. O fascínio do latim está perdido e a força do fantástico apagou-se, nenhum Aquiles romperá o nada para lutar contra palavras ocas. A Torre de Marfim sofreu o golpe, os que nela vivem se espantam, mas as plantas crescem sem Platão e os pássaros não ouvem Nietzsche. De dentro do esterco nasce a rosa, de dentro dos ruídos, porém, nada. Nada nas […]

Literatura e Política: Para Todos e Para Ninguém

Nietzsche colocou em seu livro “Assim Falou Zaratustra” um subtítulo interessante: “um livro para todos e para ninguém”. Trata-se de uma declaração quase esfíngica: como um livro pode, ao mesmo tempo, ser destinado a todo mundo e a ninguém? A solução do enigma surge quando você analisa o livro em si, pelo seu conteúdo e pela sua forma. Quanto à forma, é um livro para todos devido ao estilo bíblico e linear da narrativa (sim, embora escrito por um filósofo, trata-se de uma narrativa): supôs […]

Pensando o Futuro

Dois escribas, preocupados com o futuro, discutiam à sombra de um juncal, à beira do Rio Nilo: — Imhotep, tu que és tão sábio, diga-me: Crês que um dia a arte dos hieróglifos terá sido abandonada? — Merhemptah, querido, temo que sim. Ela está a se perder: não vês que os sacerdotes de classes inferiores já os abreviam e corrompem, que já não se importam mais como antes com a exatidão da semântica, preferindo recorrer aos símbolos fonêmicos? Oh, temo que um dia a expressividade dos hieróglifos […]

Improviso

O poema nasce, às vezes, como uma necessidade dos dedos. O toque deles contra as teclas, o prazer de ver as palavras formarem-se das letras, tornarem-se negras e deitarem-se na página. A frustração de retornar a apagar, o apego apertado de saber que o cursor retorna implacável condeno o erro a não ter havido. E aquele eterno temor de talvez haver algum perigo à espreita que destrua o arquivo, que delete inapelavelmente o esforço despencado em um verso. O poema, às vezes, nasce uma necessidade […]

Ode ao Palhaço

Um homem extremamente infeliz não consegue nunca crer na profundidade do abismo. A infelicidade necessariamente induz ignorância: somente esquecendo um pouco é que se pode tolerar a pressão das lágrimas que a alma exige, mas que os olhos não querem dar. Melancolia é diferente, há uma tristeza pouco aparente entre não ser alegre e não ser feliz. Pouca gente sabe, mas existem infelicidades muito alegres. O homem vivendo no extremo da felicidade aprende a fingir: somente quem finge consegue sobreviver ao espelho quando ele é […]

Um Buraco em Forma de Deus

Vestimos a vida, roupa desconfortável e apavorados vivemos no mundo. Andamos sem rumo querendo salvar-nos de vaidades, perigos e segredos.[^1] Espíritos tensos, buscamos sem onde o fio que nos liga a nós mesmos. Somos palhaços no meio da praça, rindo, felizes, de quem mal nos trata. Espíritos e carnes densamente pensam a essência que justifique tudo isso, aspiramos ao alto mais alto e o vemos cair como uma ameaça sobre nós. Corpos retesos e mãos impotentes, acenamos na noite em busca daquilo, somos virtude e […]

Aos Espíritos

Eu esqueci quem fostes, fantasmas do passado. Esqueci todos os beijos e as tépidas noites de outono. Estou aqui pensando e me tenho perdido como nos maus velhos tempos, com as mesmas palavras gastas repetindo antigos erros. Gastei demais o meu tempo gostando de coisas banais, depois veio a seca da vida e uma espécie de ressaca que teima com gosto amargo e este vento intrépido me faz sentir os pecados e pensar em coisas sem nexo. Tenho sido alguém sem sentido, tenho seguido caminhos […]