Impressões da Leitura de “Harry Potter e os Métodos da Racionalidade”

Não foi fácil que alguém conseguisse me convencer a ler uma fanfic. Era para mim uma espécie de artigo de fé que toda obra desta categoria seria desprezível, bem pelo menos foi o que pensei até eu conhecer o site Nightland.co.uk (agora hospedado em http://nightland.website), onde conhecei algumas obras derivadas de William Hope Hodgson nas quais havia qualidade e criatividade suficientes para meus injustos padrões. Porém, mesmo assim, continuei de opinião que fanfic boa era uma exceção. Esta semana topei, pela segunda vez, com uma que me satisfez, embora parcialmente (lembrando que uma satisfação total é impossível com uma obra derivativa).

Harry Potter e os Métodos da Racionalidade é uma obra escrita por Josh Larios que conta uma história alternativa para Harry Potter, em que certos eventos significativos são alterados, resultando em um distanciamento cada vez maior em relação à obra canônica. Em 122 capítulos o autor escreve a história do primeiro ano de Harry Potter em Hogwarts, mas a partir do terceiro capítulo ou quarto já fica bem claro que o rumo da narrativa é totalmente imprevisível.

A primeira grande mudança de que temos conhecimento é que, por alguma razão, Lily e Petúnia Evans tinham um relacionamento melhor do que nos livros canônicos, por causa da primeira alteração significativa da história, e disso resulta que o órfão Harry é recebido em um lar bem mais acolhedor que o dos Dursley, afinal, Petúnia não se casou com Vernon Dursley, mas com Michael Verres, o maior CDF da turma, que mais tarde se torna um professor em Oxford e oferece à esposa e ao filho adotivo um padrão de vida muito superior (e muito diferente) daquele que Vernon poderia dar. Esta mudança já seria suficiente para criar um futuro imprevisível para a história, mas há outras das quais vamos saber gradualmente à medida que avançamos na leitura.

Assim, Harry Potter não apenas cresce em um lar amoroso e acolhedor, mas também tem acesso a todo conhecimento que um garoto superdotado poderia aspirar — e o Harry Potter deste universo alternativo é um superdotado, embora de uma maneira que só vamos entender no antepenúltimo capítulo.

Tendo tido acesso a uma grande variedade de leituras, ele se comporta como um jovem cientista e aborda todos os paradoxos de sua vida como feiticeiro com uma abordagem racional, frequentemente repetindo ou referenciando famosos experimentos científicos, notoriamente na área da psicologia e da sociologia, donde o título “Harry Potter e os Métodos da Racionalidade”.

Apesar de imensamente inteligente, este “Harry Potter” é ainda uma criança imatura e, por isso, comete uma série incrível de erros, confia nas pessoas erradas, expõe-se sem nenhuma necessidade, fere as pessoas que ama etc. Talvez mais do que o Harry Potter original, que, apesar de considerado especial, era em quase todos os aspectos um garoto normal.

Apesar disso, HPMR consegue ser uma leitura divertida porque, indo além do cânone de J. K. Rowling, consegue abordar com criatividade e bom humor quase todas as contradições e incompletudes do universo original de Harry Potter, como:

  • O sistema de pontuação absurdo do Quadribol e por que razão as partidas não seriam usadas para manipular o resultado da Copa das Casas;
  • A maldição do posto de Professor de Defesa contra as Artes das Trevas é uma maldição real, não uma fofoca;
  • A extraordinária paciência de Dumbledore com Hagrid e Filch (que, convenhamos, são dois personagens completamente imbecis que só criam problemas para o mago, sua escola e os alunos, sem nunca oferecerem nada em troca);
  • O funcionamento do Wizengamot e da Confederação Internacional de Feiticeiros;
  • O funcionamento da prisão de Azkaban;
  • A real natureza dos Dementadores;
  • Explicações razoáveis para o funcionamento das principais maldições, como a Avada Kedavra;
  • Por que Lord Voldemort, o mago mais poderoso do mundo, não conseguiu controlar o governo mágico da Grã-Bretanha, mesmo após dez anos tentando (o que, na opinião de Harry, significava que, das duas uma, ou ele era um acabado estúpido ou não estava realmente tentando);
  • O mecanismo através pelo qual algumas famílias trouxas têm filhos feiticeiros e algumas famílias feiticeiras tem filhos “squibs”;
  • As razões da aparente decadência da mágica;
  • A real natureza da divisão de Hogwarts em quatro “casas”;
  • O verdadeiro valor da moeda mágica (o “galeão”) em relação à libra-ouro e de que maneiras Harry poderia especular com sua fortuna para se tornar ainda mais rico, aproveitando as falhas primárias do sistema econômico administrado pelos goblins;
  • A diferença entre as criaturas mágicas e os feiticeiros e de que maneiras poderia haver cruzamento entre estes e elas.

Tudo isso parece muito, mesmo para 122 capítulos (de fato 121 pois um dos capítulos se limita a uma única frase), mas de fato está tudo lá, junto com a narrativa de um ano de estudos de Harry Potter, entrecortada por algumas peripécias fora de Hogwarts e alguns eventos inesperados e outros que mais ou menos seguem a sequência de “Harry Poder e a Pedra Filosofal”, misturando com elementos dos livros seguintes (Câmara Secreta, Cálice de Fogo, Enigma do Príncipe e Relíquias da Morte). E tudo está lá temperado com referências a famosos experimentos científicos e citações de Pascal, Isaac Asimov, J. R. R. Tolkien, Carl-Friedrich Gauß e muitos outros.

Alguns personagens são menos importantes do que nos livros originais (notoriamente Ron, Ginny Weasley, Cedric Diggory, Neville Longbottom, Hagrid, Filch, Arthur Weasley, Molly Weasley, Bellatrix Lestrange, Remus Lupin, Gilderoy Lockhart, Dolores Umbridge, Cornelius Fudge, Rita Skeeter, todos os fantasmas e todos os retratos de Hogwarts), outros são muito maiores (Draco Malfoy, Lucius Malfoy, Amanda Bones, os pais de Hermione Granger, Vincent Crabbe, Gregory Goyle, Blaise Zabini, Padma e Parvati Patil, Fawkes etc.). Alguns personagens simplesmente não existem (Duda Dursley) ou são citados apenas nominalmente (Sirius Black, Peter Pettigrew, Luna Lovegood, Xenophilus Lovegood). Alguns têm uma personalidade bastante diferente dos livros (Quirinus Quirrel, Lord Voldemort, Lucius Malfoy, Nymphadora Tonks, Severus Snape, Harry Potter e a própria Hermione Granger).

Mais não posso dizer, sob o risco de entregar spoilers, mas preciso dizer que os 122 capítulos não têm qualidade uniforme. Há alguns muito bons (e o trecho final, nos últimos cinco ou seis capítulos, é excepcional) e alguns que simplesmente fazem você perder a suspensão de descrença. Os capítulos intitulados “Omake Files” (vários, distribuídos pelo texto) e os que se sucedem a “Stanford Prison Experiment” são duros de engolir. Mas no fim você sairá com a impressão de que a leitura valeu a pena, mais do que isso, terá a certeza de que J. K. Rowling poderia ter feito livros muito melhores se ela tivesse seguido algumas das ideias levantadas pelo autor desta fanfic.

Antes de terminar, cabe dizer que, sim, existe sexo nesta fanfic. Não explícito, mas mencionado aqui e ali. Menciona-se, por exemplo, que, pelo menos, dois alunos foram concebidos enquanto seus pais estudavam em Hogwarts e há, pelo menos, um caso de professor envolvendo-se com aluna. Os alunos discutem sexo abertamente, inclusive contatos homossexuais e arranjos poligâmicos (pelo menos um dos alunos é fruto de um relacionamento triangular entre dois primos homens e uma mesma mulher, de forma que ele leva o sobrenome da família dos supostos pais mas ninguém realmente sabe qual deles o concebeu). Mas isso, claro, é muito mais chocante que a cena de um troll comendo um aluno começando pelas pernas ou a horrível tortura a que são submetidos os prisioneiros de Azkaban…

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