Como um Passarinho

Não pude resistir ao “pequeno apartamento de dois quartos, sem garagem, por apenas R$ 350,00”. Aluguei. Não precisava nem de dois quartos, bastava-me um. Mas não havia aluguel mais baixo na cidade, fazer o que? Algumas novas peças de mobília e lá estava em meu pântano particular.

Eu não conhecia quase ninguém na cidade ainda, então ficava andando de lá para cá depois do trabalho enquanto ainda não escurecia, para ver gente, cumprimentar e esticar as pernas duras de ficar sentado o dia todo. Mas isso era pouco — menos que uma hora, porque já era outono velho e escurecia cedo.

E quando escurecia… arre, que frio! Nada que assuste a um russo, mas a gente não tem estrutura para ver um termômetro abaixo de vinte graus. Bateu a primeira brisa fresca a gente já tem medo de resfriado, vento virado, quebranto, cobreiro e até tuberculose. Por isso o brasileiro se encapota em estilo esquimó se meramente sonhar que vai esfriar bastante para gear.

A primeira noite que eu dormi em Pequeri fazia 13° no termômetro da praça e eu não quis ver mais temperaturas. Enrolei-me nas cobertas — e eu não comprara suficientes — e não desci da cama nem para beber água. De manhã até fiquei curioso, mas a cerração escondia o termômetro e eu não tive nenhuma vontade de andar cem metros na direção contrária à que eu tinha de ir para satisfazer uma mera curiosidade. “A curiosidade matou o gato”, mas não a mim.

Duas ou três semanas depois eu já estava menos molenga e não me apavorei, muito, quando vi 11° lá fora. Sobre o dia seguinte, porém, é um pesadelo para eu contar outro dia.

Como eu não tinha ainda trazido nem comprado televisão, não havia com que me distrair. A internet, por sua vez, não era exatamente a mesma coisa. Então andar pela cidade, quando me acostumei com o frio, me levou a descobrir bares onde deixavam a televisão ligada para ver os jogos de futebol.

Normalmente a cidade fechava antes de dez da noite, porque o pessoal de lá, embora zombe dos friorentos de outros lugares, tampouco é besta de ficar até tarde batendo joelhos e dentes.

Mas havia um bar que não fechava tão cedo, e que estava particularmente aberto naquela noite em que eu queria ver um jogo do Fluminense. Eu nem sabia que o bar existia. Estava dando uma volta pela cidade, dentro do carro, com o aquecedor ligado, tentando achar o que fazer para não ter de dormir cedo demais, quando vi a porta aberta e a luzinha azulada do sinal de tevê.

Entrei, cumprimentei, pedi uma cerveja e encontrei um cara com quem eu já tinha mais ou menos travado conhecimento. Simpático o sujeito, me apresentou pro resto dos espectadores e me convidou a sentar com eles para dividir o tira-gosto.

Era um verdadeiro grupo de heróis da nação tricolor. Todos com as cabeças enfiadas em gorros de lã, com luvas de algodão nas mãos, casacos pesados, rostos avermelhados de frio, orelhas pálidas.

“Está fazendo onze graus na praça” — comentei, batendo dentes porque meu agasalho não era grande coisa.

“Aqui em cima” — esqueci de falar que o bar era em um morro? — “deve estar uns dois a menos” — era o dono que falava, sorridente, praticamente sem agasalho, aproveitando a chama do fogão onde cozinhava algum tira-gosto, ou fingia cozinhar só para aquentar no calorzinho e catar marra de macho em manga de camisa.

Bebíamos a cerveja bem mais devagar do que o dono do bar gostaria. Não que ela estivesse ruim ou muito forte, é que naquele frio a eficiência da geladeira era aumentada, e cada vez que eu levava o dente à nata do copo eu me lembrava de um livrinho infantil sobre as “Terras Geladas” onde havia a foto de um navio quebra-gelo.

Quando conseguíamos dar uma boa golada, esquentávamos a barriga comendo pedacinhos de carne cozida que o dono do bar servira em um prato fundo. Como a carne ia esfriando, a gente compensava usando pimenta.

Havia uma jarra de boca larga cheia de um tipo de pimenta verde que eu nunca vira antes, com um formato de grão de arroz gordinho. Estava preservada em cachaça, com um ligeiro toque de azeite. Os outros caras enfiavam um canudinho de plástico, batiam na boca da jarra e deixavam cair no pedaço de carne somente uma gota, ou duas.

Considero-me, ainda, um sujeito bem resistente a pimenta (embora isso venha diminuindo com os anos). Por isso quis experimentar a pimenta, só que não prestei atenção em como eles faziam exatamente com o canudinho de plástico — talvez porque estava meio bebum. Então botei cinco ou seis gotas daquele líquido esverdeado em um delicioso e morno naco de carne.

Os homens arregalaram os olhos e gritaram “ooorra!” Eu nem dei pela coisa. Mesmo que tivesse dado, o orgulho me obrigaria a comer do mesmíssimo jeito.

O pedaço de carne, diferente dos dois que eu comera antes, teve um gosto detestável. Só não digo intragável porque eu tinha de engolir logo, ou então cuspir, mas não poderia manter aquela maçaroca na minha boca nem um instante mais.

O sabor não era rico e perfumado como o de pimenta malagueta. Era sem-educação, agressivo, ácido (no sentido de sulfúrico) e picante como eu nunca tivera medo de provar. Não conseguia engolir, a garganta começava a se fechar. Peguei o copo de cerveja, joguei uma bomba no gelo e o navio quebra-gelo entrou pela banquisa, sorvi um petroleiro inteiro de cerveja. Um copo, dois. Devo ter bebido como um viking corno. A muito custo a cerveja empurrou o pedaço de carne para dentro, eu quase engasgando.

“Isso é pimenta de passarinho, Geraldo” — só depois de minha desgraça alguém avisava.

Pude então respirar melhor, e me surpreendeu que, apesar de minha constrição nasal, fosse tão fácil pelo nariz. A pimenta tinha aberto avenidas pelo meu nariz, por onde poderia desfilar toda uma escola de samba. A minha boca inteira ardia como se, em meu desespero, eu tivesse girado o pedaço de carne até a parte apimentada tocar em cada célula da cavidade oral. Peguei o lenço para assoar o nariz (mentira) e enxuguei os olhos. Para todos os efeitos o lenço saiu molhado de catarro, eram lágrimas.

Percebi que começava a respirar com dificuldade, mas não por causa do nariz. Na verdade eu tinha a impressão de que poderia coçar meu cérebro usando os dois dedões na mesma fossa nasal. O problema era mais embaixo: por toda parte onde a carne apimentada tocara os tecidos haviam intumescido, ou melhor, inchado, como se diz em língua de gente. Minhas gengivas estavam gordas e apertavam umas contra as outras. Minha língua estava paquidérmica e, combinada com o céu da boca também alterado, me impedia de fechar os dentes. Minha garganta estava cerrada e eu sentia pelo goto abaixo uma queimação, uma gastura, uma espécie de azia para dentro.

Levantei e fui até o banheiro. Não liguei para a sujeira. Abri a pia, lavei as mãos, joguei água no rosto, bochechei com aquela água que eu nem sabia de onde vinha. Minhas gengivas estavam cor de vinho, meus dentes até estavam mais brancos, devia ser o estado de choque. Passarinho que come pimenta sabe o que tem.

Voltei para a mesa, mas não consegui comer mais, apenas beber. Cada copo de cerveja me fazia ouvir harpas de anjos, mas azia para dentro continuava. Demorou duas horas ou mais para eu começar a melhorar. A essa altura eu já estava na cama, que é lugar quente.

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