Residente em Vênus

Quando cheguei em Vênus tinha todas as ilusões possíveis e me achava muito esperto. Estudaria com todas as despesas pagas, obtendo um diploma de grande prestígio, certeza de carreira promissora, em troca de meros oito anos-calendário de serviços prestados a um dos governos de lá. Para um garoto pobre, que nunca pudera estudar em boas escolas e não tinha dinheiro para se preparar para os rígidos exames de seleção das melhores faculdades da Terra, parecia ser um trato excelente.

Os formados em Vênus praticamente formavam uma casta superior. Como samurais do antigo Japão. Havia uma associação deles, uma espécie de maçonaria com lojas por todas as regiões. A Associação dos Instruídos por Vênus tinha múltiplos papéis: todos os da antiga maçonaria e mais alguns. As sedes regionais funcionavam como consulados informais das oito cidades de Vênus, ofereciam lazer e cultura, mantinham cursos rápidos em convênio com alguma das universidades venusianas e recrutavam candidatos a novos membros. E os formados nunca eram designados para as suas regiões de origem, para que pudessem agir mais livremente.

Havia também o rumor de que a AIV era o principal sindicato criminoso da terra, especializado em crimes de colarinho branco, conspirações internacionais e golpes políticos. Mas ninguém ousava dizer isto em voz alta. Todos diziam que os associados se protegiam mutuamente em qualquer circunstância, e que tal proteção não era removida nem mesmo se o associado cometesse o mais bárbaro dos crimes. Tudo era resolvido internamente. E ninguém ousava questionar o que acontecia.

Mesmo esta lenda negra me atraía. Eu queria ser membro desta casta, eu que nascera num barraco à beira de um monturo de lixo. Meus sonhos eram grandes, e grande era a minha coragem. E grande era a minha temeridade. Eu sonhava poder matar com as minhas próprias mãos o Sr. Armelino, estuprar sua filha detestável e escapa para a segurança de uma sede da AIV, onde seria julgado exclusivamente pelos meus pares. Seria uma grande vingança: além de viver no conforto e no poder eu me vingaria fisicamente das pessoas que mais me haviam humilhado, e ninguém poderia fazer nada contra mim.

Foi munido destes pensamentos que eu entrei na sede regional da AIV em Belo Horizonte na manhã do dia em que completei meus dezoito anos. Tivera de esperar tanto porque a minha mãe, mulher supersticiosa e desconfiada, jurara de joelhos diante de um ídolo qualquer que jamais permitiria que seu filho se aliasse às forças do demônio, enquanto pudesse evitar. Quando adquiri a minha maioridade, ela não pôde mais.

Fui recebido na portaria por um funcionário magro e moreno, com algumas cicatrizes de queimaduras no lado esquerdo do rosto. Apresentei-me e disse que pretendia me candidatar a uma vaga em um dos cursos gratuitos oferecidos por uma das universidades de Vênus. Qualquer curso, qualquer das universidades. Este foi o dia em que minha vida acabou.

***

A escotilha se abre, inundando minha cama com a luz causticante do sol de Vênus. Ninguém usa despertadores com ruídos, não é preciso. Minutos depois eu me desperto, suado e furioso. Começa outro dia no inferno.

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Estou cursando o décimo sexto semestre do curso de Psiquiatria da Universidade Ishtar, em Vênus. O curso tem apenas dez, eu sou repetente. Repeti quatro vezes o penúltimo semestre, estou pela terceira vez no último. Este ano tenho esperança de passar.

Você deve estar pensando que eu sou um péssimo aluno, ou algum tipo de imbecil, mas duvido que conseguiria se sair melhor em qualquer das universidades venusianas. Eu também achava que conseguiria me dar bem quando cheguei aqui.

***

— Então deseja se matricular em um dos cursos oferecidos em Vênus? Poderia me dizer qual?

Nunca fui bom em responder perguntas diretas quando eram atiradas à minha cara. Gaguejei como de costume, mas extraí das profundezas de minha indecisão uma resposta, afinal:

— Engenharia Quântica.

O entrevistador me olhou de cima abaixo, e afirmou:

— Temos de avaliar se o seu potencial intelectual é suficiente para justificar o nosso investimento em sua formação. Procederemos a um teste vocacional e decidiremos se aceitamos sua candidatura.

Naquela tarde, depois de assinar alguns papéis, fui enca­mi­nhado a um alojamento, onde dormi pesadamente até a manhã seguinte. Acordei cedo e tomei um desjejum econômico antes de ser submetido a uma bateria de testes, que incluiu exames médi­cos (alguns dolorosos), testes de raciocínio, avaliações de conhecimentos gerais ou simples sessões de massoterapia. O método de avaliação era bastante críptico, e de certa forma irracional, mesclando superstições esquecidas, ciências con­tro­versas e uma boa dose de subje­tivismo. Ao fim de tudo, os seis examinadores que me haviam acompanhado deram o seu vere­dicto:

— Não o julgamos apto para o curso de Engenharia Quântica, mas decidimos matriculá-lo em nosso curso de Psiquiatria. Definitivamente você possui um talento nesta área.

Eu nunca pensara em mim mesmo como um psiquiatra, mas a minha determinação de obter uma graduação gratuita em Vênus era inarredável:

— Aceito a matrícula, mas somente se for realmente impossível aceitar-me no curso de EQ.

— Nada é impossível, meu jovem, mas advertimos que o curso de Psiquiatria lhe será bastante mais agradável e fácil. O pres­tígio profissional pode ser até maior, embora o estresse da profissão não esteja à altura de qual­quer indivíduo. Reco­men­damos fortemente que aceite a nossa sugestão, ainda mais que há na Terra uma quantidade relati­vamente pequena de psiqui­a­tras formados por nós. Estamos pri­o­rizando este curso por esta razão. Não gostaria de ser parte disto?

Deixei-me seduzir pelo convite e estendi a mão para pegar o formulário de matrícula. Os seis examinadores o recolheram, com um sorriso satisfeito, e me pediram que dormisse mais uma noite no alojamento que me haviam indicado.

Na manhã seguinte já despertei com uma camareira dentro do meu quarto, me preparando para a viagem. Haviam descartado tudo o que trouxera comigo, menos o meu cartão de identidade, que seria retido na sucursal de Belo Horizonte até o meu retorno. O descarte incluíra a própria roupa com que eu me deitara para dormir e os meus óculos.

A falta destes me deixou confuso quando despertei e vi um corpo de mulher se movendo próximo à minha cintura nua. Antes que pudesse pensar em um sonho erótico, notei que ela estava apenas verificando se não havia nada sob a cama. Levantei-me num sobressalto e ela me respondeu todas as perguntas que lhe fiz. Chamava-se Hilda, era apenas uma faxineira a serviço da AIV, sucursal Belo Horizonte, e fora designada para me preparar para a travessia.

A preparação incluiu um banho, roupas sob medida, de uma cor verde clara que me desagradava, uma valise e um aparelho portátil de tela exígua e sem botões. Nada além disso. Saí de meu quarto e fui direito ao refeitório, onde me deram outro desjejum escasso. Dali me levaram ao topo do prédio, onde um transporte me aguardava até Hadramaut, sede do principal espaçoporto terráqueo naquela época. Lá descobri, ao encontrar uma dúzia de outros jovens de diversas partes do mundo, que a minha roupa sob medida era apenas um uniforme, que eu usaria a partir de então, até hoje.

***

Minha vida de estudante não é das piores. Recebo semanalmente uma ração gratuita contendo os alimentos neces­sá­rios à minha manutenção. Não são meus preferidos, são os que me alimentam. Os demais eu poderia comprar com a minha bolsa de estagiário, mas sempre são caros demais e acabo pre­ferindo que o dinheiro acumule em minha conta de poupança, que mantenho em um banco da Terra, claro. Ninguém se importa com isso, eles não precisam se preocupar com a minha fide­li­dade.

E por que se preocupariam? Não só não há como fugir como não se pensa nisso. Ou talvez pensem, mas não confessem. Aprendi muito cedo que a ética venusiana não se interessa por emo­ções, apenas por atos. E mesmo alguns destes são irrele­van­tes. Manter o meu dinheiro em um banco da Terra não muda nada em minha situação.

Então vivo cada dia como se fosse o primeiro de uma eter­ni­dade. Os semestres se arrastam como séculos, tudo piorado pela perda da noção de tempo, causada pelo dia eterno que bri­lha lá fora. Somente sei que são semestres porque conto os dias letivos e marco os intervalos dos fins de semana. Não há feriados nem férias, porém, apenas o domingo para exíguo des­canso. Já são dezesseis anos aparentes que eu vivo assim, mas podem ser mais ou menos. Às vezes desconfio que os dias venu­sianos são manipulados, que não vinte e quatro horas idên­ti­cas às terrestres, que por isso me tiraram o reló­gio durante a noite, antes de meu translado.

***

Existiam vários voos de carga mensais entre Vênus e a Terra naquela época, mais do que hoje. Havia, porém, somente um voo de passa­geiros. A duração da viagem dependia da época do ano, variando entre uma semana e cinco meses. Pelo que diziam, a única razão para uma frequência tão grande de voos era mesmo a impossibilidade de reunir toda a carga em um voo só, cada 584 dias. Os prazos variáveis tinham o curioso efeito de, às vezes, fazer com que uma viagem iniciada em maio terminasse depois de uma começada em agosto. Estas circunstâncias aca­ba­vam tendo relativa utilidade para a política venusiana, como só hoje eu sei. Por sorte não tive de esperar muito no clima seco do deserto. Meu voo saiu apenas cinco dias depois que eu dei entrada no Hotel dos Emigrantes.

Durante minha estada ali, recebi a última comunicação de minha mãe. Ela parecia transtornada de me ver no uniforme verde e procurava evitar me olhar, como se o distintivo preto e amarelo bordado no lado esquerdo do meu peito lhe parecesse uma abominação. Não me desejou boa sorte, não pediu que eu voltasse logo. Apenas disse, de forma tristemente profética, que rezaria pela salvação da minha alma.

Saímos da estação terrestre em 25 de abril, com destino ao espaçoporto orbital. Ali encontramos o “Transporte Especial”, como chamavam ao serviço de transporte de passageiros entre Vênus e Terra. Havia somente sete desta finalidade, em reve­zavamento permanente. Partimos primeiro de maio e após dezessete dias sem sobressaltos amanhecemos com a visão de um globo esverdeado claro diante de nós, aparecendo nas escotilhas. Eu havia chegado a Vênus, e ainda não tinha a mais remota ideia de como se vivia neste planeta. A única coisa que sabia a respeito dele, das aulas de ciências do primário, era que se tratava de um mundo infernalmente quente, cuja rotação era lenta e retrógrada.

***

Preparo meu próprio desjejum na cozinha espartana de minha habitação, apesar do funcionamento do forno elétrico estar cada vez mais irregular. Café artificial, pão, queijo de soja, presunto sintético e biscoitos. Enquanto como, con­templo as paredes cinzentas, salpicadas de gotas causadas pela minha própria respiração, manchadas de mofo em alguns lugares, por culpa do defeito de meu desumidificador. Mas evitarei comprar outro aparelho desses, no máximo tentarei consertar pela décima vez este que me acompanha há tantos anos. Vou precisar de cada centavo do maldito dinheiro que ganho neste planeta. Após a limpeza a seco, visto meu uni­forme de residente e saio para o trabalho.

Os corredores de acesso são soturnos como catacumbas, per­cor­rendo as entranhas do imenso bojo de metal e cimento que flutua muito alto na atmosfera densa. A única iluminação é a luz externa, canalizada por tubos semitransparentes. É pouca luz, mas economiza-se energia no que é possível. Meu relógio venusiano de pulso marca seis da manhã. É muito cedo, muito mesmo. Mas eu me propus a acordar duas horas mais cedo que todos os meus colegas de infortúnio porque tenho de estudar.

Trabalho na Clínica de Recuperação Mental da cidade de Eros, a segunda menor dentre as oito. Faz parte da minha formação prestar atendimento aqui, por um salário miserável, até que consiga me formar, sonho que começa a parecer possível, depois de tantos anos tantalizantes.

***

A minha chegada em Vênus foi o despejo de um degredado numa praia de além-mar. Confesso que era razoavelmente ignorante sobre o que poderia encontrar aqui, não só por causa do meu desleixo em relação aos estudos de Geografia e a Astronomia, desde menininho, mas também porque muito pouco se informa a respeito do que realmente se passa em Vênus. Na verdade temos uma visão idealizada da Colonização, crescemos imaginando um mundo de incríveis aventuras em um cenário de liberdade e fartura, como os marinheiros do século XVI. Liberdade! Fartura!

A primeira experiência desagradável foi no espaçoporto orbi­tal onde, em vez da saudável desordem terrestre, fui recep­cionado por uma organização irretocável. Não havia nada colorido, em lugar algum, todas as coisas tinham as cores de seus materiais. Desde as paredes de aço e cerâmica até as roupas dos funcionários, feitas desse algodão artifi­cial tão áspero. Mas era um espaçoporto de uma colônia rela­tivamente precária, que se mantinha graças à sua excelência no domínio do deserto. Eu imaginei que a minha sensibilidade excessivamente úmida estava sendo rigorosa demais com Vênus, e dei uma segunda chance ao planeta. Teria de dar muitas mais, e todas em vão.

Estava de pé no saguão, no meio de um grupo de doze rapazes e moças vestidos com o mesmo uniforme verde azulado pálido. Nenhum de nós sabia ainda falar esta espantosa língua que inventaram aqui, então ouvíamos as pessoas que passavam con­versando em torno de nós, expelindo consoantes e mas­ti­gando vogais, com a impressão de que manifestavam uma hostilidade gratuita. O alfabeto diferente também não ajudava.

Então o Dr. Janus Nowak apareceu. Ele era um homem alto, de mandíbula farta e olhos pequenos. Seu cabelo castanho parecia desbotado pelo encanecimento e seus dentes amarelados denunciavam hábitos poucos saudáveis.

Nowak não fez nenhuma menção de sorrir, ou de sequer tentar ser simpático. Chamou-nos apenas de “calouros” empregando um sotaque tão horrível que eu tive a certeza de que a nossa língua era completamente estrangeira para ele. Nós o seguimos até os nossos alojamentos, estes mesmos em que ainda vivo.

— Senhores, senhoras. Seu programa educacional somente ini­ciará em janeiro. Até lá vocês estão matriculados em cursos de língua e cultura venusianas. Sugiro que tenham seriedade nestes estudos iniciais, pois são essenciais para o sucesso de sua vida acadêmica. Todas as aulas em todos os cursos, todas as obras de referência, tudo estará em venusiano e será também em venusiano que deverão apresentar seus trabalhos.

Nenhum de nós fora informado desse detalhe, conforme mais tarde apurei. Eu sequer sabia que existia uma língua venusiana. De fato eu nunca encontrara alguém que realmente estivera em Vênus. Os membros da AIV eram, na verdade, as únicas pessoas que ouvira dizer que estiveram em Vênus. Não se fazia turismo aqui, como ainda não se faz.

***

Seis e dez da manhã. Tenho aproximadamente uma hora e qua­renta e cinco minutos antes de começaram a chegar os outros funcionários. Tempo suficiente para revisar bastante matéria. Depois de bombar doze vezes na prova final do último semes­tre, agora eu tenho a certeza de que vou passar.

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