O Fetiche do Número na Literatura

Há charlatães que controlam postos de pedágio e há os que vendem facilidades. Temos as editoras que se propõem a dar “tratamento profissional” a qualquer amontoado de inanidades escrito por qualquer um que tenha lido três ou quatro livros na vida. Temos os que supostamente ensinam “os interessados” (o que é o mesmo que dizer “qualquer um”) a produzir obras literárias conforme os padrões do mercado. Tudo, claro, mediante um pagamento em dinheiro. Afinal, o vil metal é a solução para tudo. Se você tem dinheiro você pode pagar para ser um autor. Paga revisor, paga diagramador, paga capista, paga para pôr um nome de editora na capa de seu livro. Para todo tipo de necessitado, existe algum profissional disposto a vender conforto. Este é o mercado lucrativo que nos EUA se chama de “vanity press”, um setor da economia inteiramente dedicado a separar de seu dinheiro aqueles que sonham em ser escritores. Um mercado que não vende para leitores, mas para pretensos escritores.

Uma das vertentes deste mercado é a que pretende ensinar a escrever. Como se trata de um mercado viciado, em que normalmente cegos guiam outros cegos, o que se ensina é algo que possa ser quantificado e padronizado, resultando em um produto. Ensinam-se técnicas, porque o mercado é superficial e reducionista. Ensinam-se truques, porque o sucesso do mercado se baseia na ideia de cortar etapas e custos, chegando primeiro aonde os outros chegarão depois (e não importa se você chega primeiro com um produto inferior, a história do capitalismo está cheia de exemplos em que o melhor produto não “emplaca” porque chega depois). Truques e técnicas que consistem, basicamente, em reduzir o fazer literário à sua expressão mais simples, abolindo transversalidades, complexidades. A obra deve seguir um esquema, por vários motivos.

Uma obra esquemática é mais fácil de ler porque o leitor já mais ou menos espera o que vai encontrar. “Aqui” o herói fatalmente enfrentará um desafio e “esse relacionamento” provavelmente é uma armadilha. Leram Campbell e entenderam que tudo se reduz a clichês. A obra esquemática é também fácil de escrever: ela não requer nenhum tipo de sofisticação ou filosofia, ela pode ser produzida por alguém com pouquíssima cultura ou experiência de vida, porque ela não é uma narrativa pessoal e nem uma exploração intelectual, mas meramente uma montagem estilo Lego em que alguns elementos predefinidos são arranjados. As arestas podem ser aparadas por um revisor e logo temos outra obra perfeitamente adequada ao mercado, mas que não diz cousa alguma sobre quem é o seu autor, quais suas ideias, sonhos, perspectivas e objetivos. Tudo é ralo, padronizado, pasteurizado. Até mesmo a ligeira cor local que alguns autores colocam em suas obras reflete uma ambiência “macumba para turista”, alguns chegando ao ponto de escolher pseudônimos fáceis para aceitação no “mercado internacional”. Como uma fileira de garotas “de boa aparência” fazendo trottoir no calçadão diante dos turistas gringos.

Essa literatura prostituída idolatra a quantidade porque ela pode ser reduzida a um número. Se é difícil saber se um relacionamento foi satisfatório, o jovem se orgulha de ter “comido mais de cem.” A profundidade é trocada pela abrangência. Assim, está na moda escrever e ler livros grossos. Até mesmo autores experientes, como o King, se renderam a escrever obras mais volumosas para não ficarem para trás. “A Incendiária” (1981) tinha 426 páginas e já era excepcionalmente grande em relação à média de sua obra, mas “Sob a Redoma” (2013) chegou a 1074 páginas (no original inglês, em ambos os casos). Certamente um leitor de King julgaria “pouco desenvolvido” um texto como “A Sombra em Innsmouth” (de H. P. Lovecraft), com suas magras 160 páginas (incluindo prefácio, índice, notas, biografia e o escambau).

O fetiche do número se expressa de diversas maneiras: quantas obras o autor escreveu, quantas páginas tem cada obra, quantos exemplares vendeu, quanto dinheiro ganhou, de quantas feiras literárias participou. Acredito, porém, que o exemplar mais nocivo desta fauna de falácias seja o mito da produtividade a que venho aludindo desde o começo. A combinação do fetiche numérico com o mito da produtividade transforma o ato de escrever em uma guerra, em que não há mais prazer, apenas contagens de caracteres e prazos.

Lev Raphael foi um dos primeiros autores americanos (e tinha que ser um autor independente e de baixa vendagem) a denunciar este absurdo. Já faz um ano que ele publicou sua análise, observando com propriedade que a sugestão sensata de que autores iniciantes deveriam tentar escrever um pouco todo dia para adquirirem o hábito passou a ser interpretada como um mandamento para autores em todas as fases de amadurecimento, em todas as épocas. Chegou-se ao ponto de se [analisar o ritmo de produção de autores famosos do passado]), como se a imitação dos hábitos de tais autores tivesse o fetiche de nos tornar como eles.

A crença mágica no poder que o rabo tem para abanar o cachorro torna-se a cada dia mais popular. Eu não me surpreenderia se visse autores bebendo para escrever como Hemingway ou indo para a guerra para escreverem como Orwell — afinal, vejo o tempo todo autores que querem escrever tanto quanto Sartre ou Machado de Assis, pensando em serem tão bons quanto eles.

3 thoughts on “O Fetiche do Número na Literatura

  1. O foco na qualidade, na relevância, parece ser percebido hoje mais como um defeito do que como uma virtude. Isto transpassa toda a produção cultural, de textos a música, de quadrinhos a cinema. Mas para além dos números, (ou aquém, quem sabe) existe muita gente produzindo qualidade. É preciso garimpar e, encontrando, compartilhar. Este é o caminho da resistência.

  2. Muito provavelmente essa cultura do “escreva rápido e muito” começou nos EUA.

    Lá dá para viver de escrita e autores como Ray Bradbury, Robert E. Howard e Clark Ashton Smith sustentavam suas famílias com a escrita.

    Portanto, eles tinham que produzir bastante para garantir o pão da mesa, fora que revistas costumavam pagar por palavras. Alguns inclusive acusam Howard de esticar sem necessidade algumas histórias só para garantir um lucro extra.

    É por isso que Bradbury dá conselhos como “escreve 2 mil palavras por dia” e Asimov dizia “escreva rápido, mais rápido” quando indagado que dicas ele daria a escritores iniciantes.

  3. Eu acho válido ter metas, até mesmo um pouco saudável. O dia a dia tem muitas distrações e a maioria dos escritores tem que lidar com trabalho/estudo, ficando a atividade da escrita para o tempo que se consegue usar no fim do dia. É fácil se perder assim e acabar não fazendo nada. Não é todo mundo que consegue se focar muito bem.

    E, em questão de meta, é fácil pensar numa meta numérica. Porque é uma meta simples de entender e que não depende de uma análise mais a fundo. Não é todo mundo que escreve apenas quando se está inspirado. E para dar segmento ao trabalho criativo, as vezes é preciso de certos artifícios, como estabelecer metas de produção.

    Não se trata simplesmente de oferecer produtos, de escrever best-sellers ou mesmo de preferir quantidade ao invés de qualidade, embora, claro talvez isso seja muitas vezes utilizado dessa forma. Produtividade pode ser um conceito usado por empresas para medir a eficiência do trabalhador, mas discordo desse enxerto da forma como coloca. Mesmo mantendo-se como uma atividade artística, o artista pode precisar entender os seus próprios processos para tocar as suas produções artísticas para frente. E no final, é um dos significados originais de produto, no latim, não? Producere remete a conduzir, criar e gerar. Então porque não usar produtividade para entender esse producere?

    O proprio Ray Bradbury em “Zen, a arte da escrita” comenta os seus processos. Ele pode não usar uma quantidade de palavras. Mas a forma dele escrever contos, um por semana, começando de forma crua e refinando… Não se pode dizer que foge tanto assim de uma linha de montagem. Embora, há de se pensar que, quando feita por uma pessoa só, processos repetitivos desses ainda são artesanato.

    Quanto ao último paragrafo, não tenho nada para discordar. Além de mencionar uma coisa interessante. George Martin demora muito escrevendo os livros dele. E é muito criticado pelos fãs por isso. No final das contas, os próprios fãs acabam querendo algo mais como produto e não uma obra artística.

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