Quando Meus Personagens Se Revoltaram Contra Mim

Lembro-me como se fosse há setenta anos, posso jurar. Você acreditaria se lhe dissesse que tudo começou numa noite escura e tempestuosa, como nos filmes de terror barato? Bem, não foi exatamente assim, só parecido. Estava escuro porque algum moleque soltando papagaio causara um curto-circuito na fiação da rua. Era noite, obviamente, mas o máximo de meteorologia que me afligia era uma chuva insistente que chegara no fim da tarde e não pensava em ir embora.

Depois de me certificar de que o problema não era exclusivo do meu disjuntor, liguei o laptop, ainda com uns trinta por cento de bateria, abri o arquivo que eu salvara na nuvem e comecei a tentar digitar alguma coisa. Era uma história simples, pois eu não estava determinado a perder o concurso — como normalmente faço. Era coisa de no máximo cento e setenta mil palavras, incluindo o prólogo, claro, que teria seis capítulos, e os apêndices, que eu ainda nem começara a terminar. Dizia eu que a história ia bem, apesar das feridas nos dedos e nos sentimentos, nos primeiros causadas pela necessidade de digitar depois de oito horas de expediente diário e nos outros pela opinião premonitória de meu leitor-analfabeta: “não entendi poha nenhuma dessa viagem na maionese!”

Não era a primeira vez que tinha problemas com a história: já tivera de escrever três capítulos adicionais só para contextualizar John, o pai da primeira namorada do protagonista, e por causa disso só me restavam doze dos dezesseis dias originais de prazo. Só que os problemas anteriores haviam sido até normais do métier literário, resolvíveis com uma breve recauchutagem cá ou lá. Esse foi diferente.

Ouvi baterem à porta e tive medo. Eram apenas nove da noite em uma cidadezinha do interior, horário em que as galinhas já dormem e gente honesta já não ousa visitar ninguém. Pior ainda que o portão estava bem trancado. Olhei em volta e não me vi preparado para o apocalipse zumbi: várias janelas estavam abertas, a porta dos fundos arreganhada e a aquela mesma em que haviam batido tinha uma greta da largura de um dedo até o batente. Era claro que a mão que me incomodava dera com os nós dos dedos nos da madeira por mera educação.

— Quem é? — Enquanto ainda perguntava eu já tratava de providenciar uma arma de destruição de massas para me defender: peguei o garfo que estava dentro do prato ainda sujo da refeição mal terminada.

— Não te assustes, ó Criador! Viemos em paz.

A voz era desconhecida, as palavras soavam mais esquisitas do que o texto dá a entender.

Levantei-me do sofá e abri a porta. Não havia mesmo motivo para ter precauções: bandido não era, ou eu já teria perdido.

Era pior.

Quando escancarei a porta encontrei ali três cavalheiros que nunca vira, vestidos como personagens de um filme barato de fantasia, só que com material melhor e gosto pior. Havia também uma mulher seminua, voluptuosa e feia.

— Podemos entrar, ó Criador? — indagou um dos cavalheiros, cujo largo e longo manto de pano grosso cor de burro quando foge estalava de tão azul e fino.

— Quem são vocês? O que querem? Como foi que chegaram à minha porta passando pelo portão automático? Que diabos de roupas são essas? Quem são vocês?

A enxurrada de perguntas nervosas e repetidas foi interrompida pela primeira das respostas:

— Eu sou Epidermion, senhor de Agnoias!1 — Ao ouvir isso, dei dois passos para trás, surpreso por um nome que soava vagamente familiar.

Sem se darem conta da minha confusão, os outros foram se apresentando:

— Eu sou Koilos Kefalis, o mago.2

— Eu sou Anoitos Kákos e prefiro não dizer quem sou.3

— E eu sou Kindy Káfti e também prefiro não dizer quem sou.4

— Mas o que vocês quatro querem comigo, nessa noite escura e tempestuosa, a essa hora?

Epidermion se adiantou:

— Venho em nome de todos que habitam Agnoias, para vos implorar, ó Criador, que não nos faças padecer de tantas imperfeições e cruezas.

Então me dei conta, algo espantado, que a cena era mais surreal que um comercial de refrigerante de guaraná. Não havia como ser alguém a me pregar uma peça, pois os quatro não eram outra coisa senão os personagens de um romance meu, inédito e abandonado.

— Do que exatamente está falando… Epidermion? — Perguntei-lhe, tentando criar um clima de mútua confiança.

— Sei que não visitas mais as terras de Agnoias,5 mas vos pedimos que ponhais um fim ao que começastes… e que não nos deixeis em suspense.

— Epidermion, não sei se já se deu conta, mas está conjugando o verbo errado na segunda pessoa…

A face da criatura ficou pálida e ele começou a suar. Por fim perdeu o controle da linguagem e me agrediu com uma sinceridade que nem combinava com as suas roupas.

— Caralho! Viemos aqui com todo cuidado e respeito e tu te dás ao trabalho de humilhar-nos? Não basta olhar torto para as nossas roupas, que tu mesmo nos destes, tem que zombar de nossa linguagem e de tudo o mais que somos? Vem cá, achas que é fácil andar por aí vestindo essas fantasias do Gala Gay? Que é fácil fingir falar uma língua antiga, quando nem tu mesmo te lembras mais como conjugar verbos na segunda pessoa, ó criador?

— Epidermion, tem cuidado! — observou Kefalis, que não fazia jus ao nome. — Acalme-se, ou porá a perder a missão.

— Missão? De que estão falando?

— Queremos conversar — interveio Kindy, que parecia agora ser a mais calma do grupo — sobre a possibilidade, ou melhor, a necessidade, de terminar a nossa história.

A expressão incrédula de meu rosto pareceu sugerir aos quatro que eu não sabia do que falavam, mas eu sabia, sim. O que eu não sabia era o que falar. “A Espada de Aníkanos”6 era um projeto falhado, obra esquecida de minha fase vergonhosa de fantasia medieval. Sobrevivia em um único arquivo, em um pendrive vermelho com um adesivo de marca de camiseta. Ninguém lera e nem eu mesmo lembrava onde poderia estar.

— Eu não tenho mais como terminar aquela história. Aquilo faz parte de uma fase que já passou. Vocês nem imaginam como escrevo diferente agora!

Nesse momento percebi que Kefalis trazia à cinta a famosa espada de Aníkanos. Ri muito disso, pois aquela arma nunca matara ninguém. Enquanto eu ria, Anoitos me apontou o que parecia ser uma arma de raios cravejada de safiras. Só me dei conta do quanto eu me esquecera de minhas próprias criações quando senti o chute nos ovos. Maldita Kindy!

Caí rolando pelo chão e os quatro entraram pela casa. Epidermion utilizou o seu báculo para pressionar o meu gogó, enquanto eu estava totalmente concentrado em massagear a virilha para me recuperar a possibilidade de algum dia deixar filhinhos no mundo. Nesse momento a luz voltou no mundo e pareceu que se apagava em mim.

— Está na estante, dentro da gaveta de guardados!

A voz me chegava como o murmúrio de dois sapos namorando na frigideira. Era Anoitos que andava pela casa apontando a sua arma de raios para os móveis, como se ela fosse um detetor de metais.

Dois minutos depois dois que haviam vasculhado meu escritório saíram de lá de mãos abanando. Na mão direita de Anoitos vinha o pendrive vermelho.

— Vamos, Epidermion! Temos aquilo de que precisamos, tomamos enfim as rédeas de nossos destinos!

Antes de sairem pela porta, cada um me deixou uma saudação especial:

— Eu realmente amei à princesa Evra!7 Foi uma sacanagem que aqueles bárbaros animalescos a levassem daquele jeito, e principalmente que a devolvessem daquele outro! Tu és doente! — Epidermion me chutou a barriga e saiu pela porta.

— Isso aqui é por me fazeres andar vestida como uma dançarina de putel, ó tarado! — Ela me cuspiu nas costas da mão e saiu.

— Na verdade eu deveria agradecer por me dares essa fama de tolo, — disse Kéfalis, cochichando ao meu ouvido — tem me ajudado a comer muita mulher e a tomar dinheiro de muito mané. Mas espero que me perdoes porque, para não chamar a atenção dos outros, terei de dar-te uma bifa.

Ele me deu um tapa com as costas de um dedo enquanto estalava a língua. Quando eu ia sorrir de alívio ele se levantou desequilibrado, pisou na minha mão, tropeçou no tapete e quebrou meu vaso com zínias amarelas. Nisso cortou a mão e saiu gritando, pedindo a Kindy que lhe fizesse um curativo rápido.

Anoitos não disse nada, só me mandou um beijo, de língua, antes que eu pudesse impedir. Isso me reacendeu as energias, pela necessidade de lutar. Consegui lhe acertar um cascudo na moleira e ele me largou. Levantei-me cheio de raiva e lhe dei um chute na bunda, que acertou na porta, na quina da porta. Berrei de dor. Um bezerro respondeu em um pasto próximo. Mas não era um bezerro, era o cachorro do vizinho. Ele me gritou por cima do muro:

— Que bagunça é essa aí, seu louco?

Dei-me conta de estar caído contra a parede, de costas para ela, rigidamente protegendo minha retaguarda. A sala estava um caos. Eu tinha uma ferida na mão e outra no bolso, de onde cairia um vaso de cristal para colocar flores. A dor nos bagos era de eu mesmo ainda apertá-los? Ou era um reflexo?

Fechei a casa e fui tomar banho. No retorno até o quarto não descobri o pendrive vermelho, mas me lembrei da cópia do romance no Dropbox. Abri o arquivo mais depressa que uma tartaruga míope que acabou de levar um chute entre os eixos. Se tudo ainda estivesse horrível e mal escrito havia uma chance de eu ter tido somente esquizofrenia e o pendrive vermelho ser fruto da minha imaginação.


  1. Todos os nomes são obtidos do grego utilizando o Google Translate. Este significa “à flor da pele” 
  2. Koilos Kefalis = cabeça oca. 
  3. Anoitos Kákos = malvado estúpido 
  4. Kindy Kafti = gostosa perigosa 
  5. “ignorância” 
  6. “impotente” 
  7. Evra = “larga” 

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