Pingos nos Is

Após causar fúria na blogosfera literária e nas redes sociais com as suas opiniões sobre literatura, o escritor e editor Rafael Draccon resolveu se explicar. Não devia, mas resolveu.

Digo que não devia porque explicações nunca explicam de verdade. Toda explicação é um remendo. De que adianta agora dizer que não disse? Quantos lerão o desmentido? Mas, pior, quantos acreditarão na sinceridade do desmentido, escrito com a cabeça fria e analisando ponto a ponto o que foi publicado? Por isso, na necessidade de contestar o teor, teria sido melhor simplesmente dizer que que a entrevista o cita de forma fragmentária, deturpando seu pensamento, e deixar o caso morrer. Quando se diz uma besteira, a melhor coisa a fazer é deixar que a esqueçam. Quanto mais desmentimos, mais lembramos aos outros que dissemos.

Digo isso porque a resposta de Rafael Draccon é mais espantosa do que as declarações originais. Se na entrevista original podíamos enxergar a humanidade, frágil e tola, de um jovem deslumbrado pelo sucesso que se arvora em julgador de toda a literatura, como um Ícaro que ousa ir perto demais do sol, neste desmentido o editor assume o ar burocrático de alguém teleguiado por relações públicas e especialistas de marquetagem. E mesmo nesta insincera e calculada explicação, o autor ainda escorrega.

Escorrega porque segue um script muito conhecido, e que não convence. Comecemos pelas juras de amor a Rubem Fonseca. É possível que Draccon realmente goste deste autor, visto que o citou. Citamos o que temos à mente. Ninguém cita um obscuro escritor javanês do século XVI ou um poeta maldito do interior da Turquia. Também ninguém cita Paulo Coelho, nem os que dizem gostar de seus livros. Mas soa falso fazer declarações de amor a um autor que, dias antes, você disse que não publicaria, e cuja obra e estilo situou num outro mundo, em outra época.

> Na matéria citada, contudo, para minha surpresa acabou se utilizando
> o título: “Rubem Fonseca hoje não seria publicado”.

O jornalista foi muito feliz na escolha do título. Títulos são escolhidos de forma a sintetizar o espírito do texto. E a afirmativa de que não publicaria Rubem Fonseca é a síntese daquilo que Rafael Draccon **É**. Por mais que o autor renegue a frase, ela o perseguirá doravante. Rafael Draccon é o editor que um dia afirmou que não publicaria Rubem Fonseca.

> Primeiro, a referência não foi ao escritor em si. Na ocasião me referi
> ao “estilo Rubem Fonseca” no sentido de se optar pelo isolamento e não
> exposição.

Então não faz diferença. A referência sendo ao estilo de Rubem Fonseca, e sendo o estilo nomeado a partir da personalidade do autor, a referência recai diretamente sobre este.

> Outro detalhe importante: a referencia não foi ao mercado editorial
> por inteiro, mas especificamente na área de literatura fantástica nacional.

Então, nesse caso, seria melhor escolher um exemplo da própria literatura fantástica, mas aí se esbarra em um pequeno detalhe, a não ser uma geração jovem, de autores desenraizados que cresceram lendo best-sellers sem qualidade, que autor da literatura fantástica nacional foi “publicado”? Não existe essa peça. Nossa literatura fantástica é um bicho recente, que ainda se estranha com o resto do zoológico literário nacional, e que, talvez por isso, precisa arranhá-lo.

> O contexto era o seguinte: se hoje um autor de literatura fantástica
> brasileira chegar em uma editora e afirmar que não pretende dar
> entrevistas, participar de palestras ou mesmo do o corpo a corpo com
> leitores do pais inteiro, ele não será publicado, pois as regras do
> mercado da literatura fantástica BR de hoje exigem isso.

Não discordo que estas sejam as regras, a dúvida é se tais regras são justas e se fazem sentido literariamente. A resposta é que não, e mesmo corrigindo o contexto, Rafael Draccon reafirma, agora sem a possibilidade de alegar que está sendo mal interpretado, que o mercado para a literatura fantástica nacional está pervertido.

A primeira perversão está nas exigências que se faz ao autor. Considerando que dificilmente um autor poderá se profissionalizar no gênero (e isso é tão verdade que até o bem-sucedido Draccon faz bico de editor para completar o orçamento), com que tempo e dinheiro poderá ele estar à disposição para ir a palestras e eventos literários frequentes? Draccon está selecionando um autor filhinho de papai que não precisa trabalhar (e de fato existe uma boa quantidade de autores que são exatamente isso, e não é de hoje), e está exigindo que este autor tenha gastos expressivos para se promover (não suponho que a editora vá pagar todas as passagens e hospedagens para estes eventos).

Que profissionalismo é esse que exige que o autor pague para se promover? Esse é o tipo de oportunidade que eu dispenso. Se eu tiver que pagar para me promover, faço isso por conta própria porque, mesmo tendo menos alcance, também gasto menos. A ideia de ser contratado por uma editora é justamente a de ter gente especializada para me promover.

Obviamente a maioria dos autores aceita participar de eventos e dar palestras — especialmente se não tiverem que arcar com os custos — mas será justo excluir do universo literário aqueles que, mesmo tendo talento, enfrentam obstáculos intrínsecos ou extrínsecos para participar?

> Isso é algo que explico em toda palestra que faço: hoje em dia todo
> mundo está escrevendo um livro, logo é preciso um diferencial. Existem
> muitos escritores ótimos, mas as grades são pequenas. Para dar uma ideia,
> a Fantasy publica uns 8 ou 9 livros por ano apenas. Muitas vezes tem-se
> dez excelentes títulos em uma mesa para uma vaga por exemplo, mas a verba
> e as possibilidades são restritas. Logo, é preciso critérios.

Este parágrafo é outro espanto. Se é verdade que hoje todo mundo está escrevendo um livro, como os soviéticos da velha piada de Soljenítsin, e mesmo sendo verdade que o livro para ser publicado precisa de um diferencial, mesmo assim Draccon mete os pés pelas mãos no meio do parágrafo.

Primeiro não é verdade que existem “muitos escritores ótimos”. Existem alguns escritores geniais, vários escritores ótimos, muitos escritores bons, numerosos escritores legíveis e um número indefinido de escritores. Se é que vocês me entendem. Não digo isso porque sou mais especialista do que todos em literatura nacional, apenas porque sei, pela experiência da história, que a qualidade não é prevalente. É antes a exceção do que a regra.

Enxergar qualidade demais no mundo literário é fruto de nossa falta de costume com a crítica: não se pode apontar os erros de ninguém, ou você é maldito pela panelinha. Criou-se um ambiente de compadrio (ou “brodagem”, como se diz hoje) no qual os elogios são intercambiados com segurança. Um autor até submete à revisão do outro a crítica que faz de sua obra. Isso acontece na Litfan, mas também no resto: a indústria do prefácio garante que nenhum livro saia do prelo sem uma louvação contratada.

As grades das editoras são realmente pequenas, mas ficam ainda menores porque editores como Rafael Draccon preferem ocupá-las com pessoas que tenham algo além de uma boa história. Pessoas que se disponham a apresentar-se em eventos, dar palestras, mostrar seu rosto bonito e seu corpo sarado parta promover a própria obra. Quando a qualidade fica secundária, a grade para os livros bons fica ainda mais restrita, e Rubem Fonseca acaba não sendo publicado.

> Da maneira como foi colocada, passou-se a impressão de que se exerce
> na Fantasy uma espécie de censura em relações a opiniões. Isso
> aconteceu porque se confundiu livro e autor.

Na verdade, uma editora deveria publicar livros, e não autores. Então, não deveria importar muito a pessoa, o indivíduo que escreve. Mas quando você personaliza o processo, criando contratos de longo prazo garantindo a publicação daquilo que um autor escreva, irrelevante à qualidade, quando você quer entrevistar pessoalmente os seus futuros contratados, como quem vai contratar um funcionário, aí você cria um ambiente propício para se confundir livro e autor.

Muitos autores gostam de se manter reservados **exatamente** porque não gostam que sua obra se confunda consigo. Esta reserva permite à liberdade, permite que o autor fuja do estereótipo. Houve um tempo em que certos autores conseguiam manter vários pseudônimos, escrevendo temas diferentes. Esta é a tal “liberdade criativa”, coisa de que Rafael Draccon parece nunca ter ouvido falar, muito embora esta tenha sido a fonte das obras que ele cresceu lendo.

> Não há problema algum de um escritor ter sua opinião sobre uma obra.
> Ela pode ser positiva, negativa ou isenta, não importa. O que existe
> em relação aos autores é apenas uma indicação para que evitem ataques
> pessoais a outros autores.

Mas quando você vincula o autor à necessidade de palestrar, dar entrevistas, apresentar-se, fazer cosplay, o diabo a quatro, você está expondo exatamente a pessoa dele. Isso quer dizer que as pessoas tenderão também a atacá-lo pessoalmente, e não há nada de errado nisso. Se você põe numa palestra um autor que tem problemas de fala ou medo de palco, será natural que as pessoas critiquem sua pessoa, ainda que tenham gostado de seu livro. E se você não contrata autores com esses problemas, então você está praticando discriminação. Será para isso que Draccon gosta de fazer entrevistas com seus contratados?

> Esse tipo de situação costuma virar uma bola de neve e parar em fóruns que
> tiram do autor foco, paciência e energia que ele deveria estar investindo
> no texto e no próprio trabalho. É um tempo que deveria estar aplicando em
> aprimoramento, pesquisa e contato com leitores. Além disso, se o escritor
> atrasar metas em contrato por causa disso, ele pode ser cortado. Já se a
> pessoa se propõe a ser um critico literário ou um blogueiro, ela pode ter
> outra postura. Vai do que se quer pra si.

E Rafael Draccon determina que o autor não pode se propor a fazer duas coisas. Você não pode ser contista e blogar, não pode escrever um romance e criticar uma obra alheia.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *