O Ano do Gato

> Minha última participação no desafio EntreContos (aqui repostado com algumas correções de erros percebidos após a inscrição). O tema do mês era “histórias baseadas em música” e eu o ataquei utilizando como base para um conto a letra de “Year of the Cat”, sucesso de Al Stewart em 1975. Fiz isso porque a letra, em si, já continha o embrião de uma história.

> Não é um texto de que eu particularmente me orgulhe (e eu nunca o antologizarei porque tenho sérias dúvidas sobre o status legal dos direitos autorais), mas ele recebeu alguns elogios surpreendentes dos leitores, embora as críticas fossem as de sempre e as notas, idem.

> Ao final deixo notas mais profundas sobre o contexto do conto.

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Amanheceu no filme desbotado de um país exótico. Caía uma chuva fina e lenta, que arrulhava como uma distante fonte e tocava os vidros da pesada janela de madeira. Abriu os olhos bem devagar, tentando fugir daquela luz difusa que ensopava o ar, notou a lâmpada deixada acesa, sentiu-se pequeno em uma cama grande e ao se virar de lado encontrou a janela entreaberta, por onde entrava o sopro fresco da manhã. Todo o ruído da cidade parecia distante, engarrafado, amortecido.

Estava nu em uma cama desarrumada, em um quarto de paredes rústicas, adornado de tapeçaria, cujos cantos repousavam sobre colunas grossas como contrafortes de um palácio oriental antigo. Estava só e tudo se apagava em uma calmaria matinal assustadora. As gotas de chuva ainda tamborilavam na vidraça de caixilhos, parecendo ecoar no apartamento em outro gotejar mais denso e lento. Logo não era mais chuva, era um outro ruído, e a janela não tinha nada a ver com isso.

Seus primeiros pensamentos detestaram a ideia de estar ali. Amargava a boca com o gosto de bebida barata ou de outra coisa e aquela brisa pincelada lhe trazia uma sensação, ou um receio, de suave desespero.

Continuou deitado e sem coragem de escorregar para fora dos lençóis. A manhã cresceu devagar, ralentando a chuva e trazendo um burburinho de gente que passava em outras línguas pelas calçadas, gente que não parecia existir… Tudo aquilo remetia a uma ressaca que a boca seca não deixava mentir… Levantou o braço em busca do relógio, mas ele não estava lá. Foi só então que se deu conta de que estava realmente só e indefeso, metido naquele lugar alheio como um bichano preso num apartamento.

Seu primeiro instinto, então, foi o de precaver-se e fugir. Levantou-se desastrado, procurando as roupas, tropeçou nos lençóis e caiu pelo chão. Por fim achou roupa, relógio, carteira e tudo o mais que pensava que teriam roubado. Retomou o autocontrole proverbial de seus antepassados, abotoou a gola da camisa, passou o rapidamente um pente no cabelo, amarrou os sapatos e deu o primeiro passo para fora do quarto. Ao sair, deparou-se com o calendário pendente da parede. Tinha doze meses, como deve ser, mas os nomes estavam em uma língua estranha e se distribuíam em torno da figura estilizada de um gato antropomórfico, em traços e trajes orientais.

Viu também o relógio: “Nove horas. Deus, tão tarde!”

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O ônibus invadiu na cidade sem pedir licença, como um hóspede que já se acostumou com a casa e busca o próprio chá. A criançada corria em volta em permanente algazarra e a multidão se afastava como as águas do Mar Vermelho diante da buzina. Para a maioria dos transeuntes era só mais uma tarde de incômodo: logo os estranhos iam embora e a vida continuava.

Havia uma pracinha elegante no fim da rua. O ônibus estacionou nela, os turistas desceram fotografando as fachadas antigas, cobertas pela poeira de muitos invernos. Cinco tamareiras emolduravam o cenário, e logo foram convertidas em fundo para auto-retratos trocados. A praça também tinha canteiros onde haviam plantado laranjeiras mirradas que resistiam bravamente ao clima, embora dessem frutas amargas.

Os turistas desceram ressabiados, curiosos de estarem em um país que parecia contar o tempo para trás e onde tudo se parecia tanto com um filme antigo que Humphrey Bogart poderia sair de um bar envergando o sobretudo cáqui, acender o cigarro entre as mãos, numa despedida sem lágrimas, depois tomar o rumo do aeroporto em busca da guerra. Ou se poderia ver 007 derrapar o Aston Martin numa esquina, fugindo para a América com segredos russos.

Em vez disso, o que havia eram só crianças ruidosas, gente vivendo a vida leve e lenta à sombra das tamareiras e dos toldos coloridos que sombreavam as casas. Aquela gente tinha a manha de viver em cores, o turista tirava fotos de tantos sorrisos, mas não entendia. A alegria clara, essa ninguém estuda.

Logo que se viu na Plaza, pedro percebeu alguma coisa diferente, que poderia ser o cheiro de laranjas, a maresia do mar não tão distante, ou algum outro cheiro trancado na memória. Aventurou-se um pouco até a esquina, procurando alguma coisa no ar, sem saber o que era. Tinha a vaga impressão de estar refazendo passos que pisara um dia, e todo aquele burburinho evocava um dia esquecido. Até a língua, rascante e sonora, soava conhecida, uma cantiga de ninar ou barcarola ouvida em uma outra vida.

“Mas que bruxaria é esta?”

Naquele momento ainda não se chamava Pedro, ou não sabia disso. Tudo ainda tinha os nomes certos e ele nem sonhava entender todas aquelas sensações: provavelmente só o fascínio da primeira vez nas terras do meio-dia. Assustava-se, claro, com a sensação de quem reconstitui um crime e com a força de cada nova cor ou forma, cada qual criando seu “dejà vu”, mas repetia racionalmente para si que tudo era apenas uma falha de sua mente em processar tantos dados novos num instante.

Entrou em um bar de duas portas. Atrás de um balcão de madeira negra e diante de prateleiras de bebida que subiam até o teto achava-se um comerciante gordo, com uma boina escura na cabeça e um largo bigode. Pelo menos os preços eram baratos. Tirou do bolso uma nota amassada, entregou ao bigodudo e lhe apontou o anúncio de cerveja irlandesa na parede direita. O pobre cartaz estava desbotado e gasto, parecia ter uns vinte anos de parede. O homem despejou-lhe em cima o que pareceu um engarrafamento de vogais e estalos de língua e não deu indício de que fosse se mexer. Com esforço, Pedro pronunciou “cerveza” entre os dentes e aparentemente se fez entender. Ao menos foi o que o sorriso largo e desdentado lhe sugeriu.

— Una cerveza cualquiera — disse.

O bigodudo curvou-se sobre um refrigerador horizontal e extraiu dele uma lata verde-escura contendo uma pinta de cerveja preta.

— Son tres.

Acrescentou mais uma nota às duas que já repousavam no balcão e logo rompeu o lacre da lata, deliciosamente envolta em uma geada graciosa que prometia prazer.

“Vamos esquecer as bruxarias. Um brinde à velha Inglaterra!”

Virou a lata de cerveja de uma vez, algo fácil que o costume ensina. O líquido gelado já lhe deu uma alegria instantânea, antes até que o álcool surtisse algum efeito. Logo via o sol mais limpo, lembrou sem saudade da lareira crepitando no inverno e quis que o mundo acabasse numa praia, entre tonéis de stout ale e peixe frito.

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Ela então apareceu. Não como quem emerge da multidão, e sim como uma figura que nasce do pincel veloz de um estudante. Apareceu como quem subitamente está onde nada havia, ou como quem reduz a nada tudo que houvera antes. Ela navegava pelas sombras sob os toldos segurando as dobras de um vestido branco contemplado com formas floridas e quando atravessava os raios do sol parecia abençoada por uma aura delicada, branca e leve como um véu de cascata. A sua pele tinha a limpidez de uma estátua e o seu cabelo dançava em torno de sua cabeça, com luzes azuis retintas.

Ela dominava as sombras e refulgia ao sol, dona do claro e do escuro naquela manhã. O sol, o chão, o mundo, a praça… Tudo parecia parte de uma vinheta em aquarela derramada sobre um papel em branco, e não um acontecimento. Quando ela se moveu, foi como o escorrer de tinta, que borra a imagem porque o desastroso artista deixou água demais no pincel. Teria sido bastante belo se não se mexesse nunca, se ficasse para sempre imóvel naquela inocente beleza, de seda e sol… Mas ela não saíra à rua para deleitar os olhos de Pedro, mas para comprar os legumes do almoço.

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Um amigo o interrompeu: estavam perdendo a visita a alguma catedral. Saiu ao sol apertando os olhos e seguiu a voz familiar. A cabeça lhe ardia, e o ambiente cavernoso por dentro do templo medieval ofereceu conforto provisório para a catacumba dos seus sonhos. Era melhor que relaxasse, esquecesse as impressões e terminar o passeio intacto. Na vida há mesmo esses momentos indecisos em que balançamos ao sabor do vento. Ter caráter é resistir a isso.

Dentro do calabouço sagrado, vazado de pequenas e inúteis janelas, a sensação não o abandonou. A guia pronunciava as indicações usando um sotaque macarrônico, que não ajudava a esquecer o estranhamento que sentira na “plaza”. Faziam um percurso circular em torno das paredes e dos nichos de onde as horrendas imagens, desbotadas e atulhadas de adornos pesados, contemplavam-nos com fisionomias duras. Apenas reis e fantasmas sagrados habitavam aquelas reentrâncias escuras, era até difícil imaginar que um povo tão colorido comparecesse a tal igreja, em luminosas manhãs de domingo, para adorar tais cadáveres.

Pedro examinou a máquina fotográfica, esquecida sobre o peito, mas a megera que os guiava percebeu o movimento de seus dedos e o atalhou, com a sua voz irritantemente cantada. No se permiten fotos, señor. Não? Que horrível a ideia de levar de lembrança os feios postais que vendiam na entrada!

Por fim, enfadou-se de ver alturas escuras, vitrais escurecidos e as faces rijas dos reis e dos santos, com suas barbas de peruca e olhos de vidro. Estavam todos mortos, nenhum deles notaria sua ausência no arremedo de procissão que faziam em torno daquele mausoléu feioso.

— Preciso de ar.

— Está passando bem, Pete?

— Estou, estou, deve ser alguma coisa na água ou um tipo de alergia. Ou talvez seja só a chatice desse lugar.

— Espere-nos no adro. Não devemos demorar.

Sair daquele sepulcro de almas até pareceu um renascimento. Respirou fundo quando pisou os degraus e viu o verão queimar deliciosamente a praça. Outra aquarela toda colorida passou sorrindo, mas não aquela, e nenhuma outra servia.

A luz lhe irritou novamente os olhos, a pele formigou com os raios e o suor começou a se formar na testa. Mesmo assim saiu da sombra onde se sentira seguro e começou a imaginar por onde fora sua musa. Todas as cores de seu vestido ainda estavam marcadas com um odor antigo na memória, as formas dela apareciam como um sabor de frutas na pele, a impressão de seu cheiro lhe causava cores nas ideias.

Entrou no meio da multidão, pedindo licenças cheias de sotaque. Pela rua esquerda ao lado de uma fileira de laranjeiras. O cheiro forte e cor escura das folhas lhe pareciam algo de outro mundo. Catou uma no caminho e começou a descascar enquanto andava. Não a chuparia porque o suco amargo lhe estragaria a boca para o almoço, mas só o odor da casca já lhe atiçava o olfato, ajudava a ter a impressão de que tudo era verdade, e não um sonho depois de ler uma revista de viagens.

### 4

Foi por acaso, talvez perversidade do destino, que conseguiu revê-la saindo de uma peixaria, trazendo uma sacola de mariscos e um sorriso de cinema italiano. Apertando o passo para ombrear com ela, passou a imaginar o que dizer. Era uma loucura o que pretendia, e não o teria feito se fosse outro dia, mas aquele sol estrangeiro e aquele sal na brisa marinha lhe afetavam de um jeito oposto ao de Mersault…

Aproximou-se dela cauteloso, como um elefante numa loja de cristais: tropeçando na calçada e trombando nos transeuntes. A custo conseguiu tê-la ao alcance do braço, tentou tocá-la para chamar sua atenção de qualquer jeito. Não soube se conseguira, pois eram tantos corpos num espaço estrito que o braço roçado entre seus dedos poderia ser outro qualquer. Mas ela sentiu algo, talvez pelo sexto sentido feminino, e se voltou assustada, segurando a bolsa contra o peito e fechando-lhe o sorriso. Despejou um destampatório de palavras, vocálicas e cheias de agressividade. Pedro só ergueu os braços, como quem se desculpa, com as palavras ardendo nas orelhas como uma reprimenda de mãe.

A língua lhe saltou à mente com um sabor meridional e conhecido, com a impressão de uma mística antiga. De repente deu-se conta de saber, ou achar saber, algumas palavras, memórias instintivas que brotavam, incertas, tal impressões de outra encarnação em outro século, e logo apareceram em sua própria língua palavras parecidas. Usou-as logo em autodefesa, mantendo as mãos à frente do rosto, como quem se protege do sol. A mulher parou de gritar. Pedro abriu os olhos e a viu, toda imóvel, com o cenho franzido e a boca entreaberta. Um segundo depois ela já lhe dizia alguma outra coisa, agora devagar e polindo na boca cada palavra, de um jeito que ninguém de verdade fala. As impressões de Pedro pareceram ainda mais fortes. A mulher ergueu os dois braços e sorriu, deixando aparecer um dente torto, que não prejudicava nada sua beleza.

— ¡Qué guay! ¿Me entiendes? ¿Qué quieres?

A surpresa dela era tão grande quanto a sua. Mas Pedro acreditou nos poderes do sorriso e a saudou de volta com um seu, enquanto repetia, em movimentos lentos, algum gesto amplo que deveria ser amistoso. Os olhos dela seguiram as palmas de suas mãos.

— ¿Cómo te llamas, cariño?

Era Pedro. Definitivamente Pedro. Nunca se sentira tão Pedro na vida e nem tão certo de que o mundo era mesmo um lugar estranho. Ou era o seu país?

Por fim a mulher soltou os braços, num gesto de desapego, parecendo, enfim, descrer de qualquer ameaça. Não foi preciso ciência e nem uma poesia para que ela sentisse que ele estava confuso e apaixonado. Na verdade ela o sentiu antes que ele tivesse certeza. Bandeira branca, ele se rendeu quando ela lhe estendeu um braço e o puxou por entre a multidão.

Quando viraram a primeira esquina ela a puxou. Ela permitiu. Ficaram face a face pela primeira vez e ele tentou falar de novo, hesitante, duro. Ela despejou um derramamento de versículos de antigas odes, de vocábulos extraídos de odres de vinho e frases vibradas em cordas de alaúdes. Pedro não entendia tudo, mas sentia o pulso da beleza que a voz dela desprendia, perfumando a rua, o mundo, o momento todo, para calar qualquer outro odor, como o de mariscos. Quando tentou dizer o que sentia, ela levou o dedo ao lábio, trouxe o seu corpo para ainda mais perto, fazendo-o sentir nas carnes que estava seguro, e era bom estar vivo.

— No te enfades. Déjate libre, oye! Estamos en el año del gato. Nada de malo o bueno pude hacernos sufrir.

Nada de mau ou bom. Nada de sério. Ofereceu-lhe um braço, ela acatou o convite. Pegou a bolsa de compras, apesar do asco do odor marinho, e a seguiu pela cidade torta, pelas ruas curvas, pelas vielas que se enredavam e partiam como as veias de um labirinto. Foi com ela ate o sentido de orientação desistir. E que boa a sensação de se perder. A vida era bela, e estavam no ano do gato, ora que coisa!

### 5

No fim de uma rua de casas antigas, de paredes azulejadas e telhados vermelhos, perdida entre mercados e feiras, havia uma porta estreita que se abriu como por mágica. Dentro havia uma escuridão doce com um perfume de madeira do oriente. Pedro abraçou o escuro em um mergulho cego no oceano, sabendo que havia perigo, mas também a delícia. Deus ao Mar o Perigo e o Abismo deu, mas nele que espelhou o céu.

Ela voltou a falar. Dizia algo sobre mandalas e vidas, que desistira de planejamentos incessantes e que a vida era um rio fluido, que vai em frente entre as pedras e os montes, e que coisa boa era se deixar levar. Então Pedro sentiu no corpo um calor antigo e fechou os olhos para não ter nenhum controle ao penetrar, por fim, pela porta aberta de um delírio, pela manhã do dia primeiro do ano do gato.

— ¿En qué año naciste, cariño?

Pedro pensou um pouco. Já quase não sabia. “1987”. Ela entendeu? Deu para ver que sim. Ela levou as mãos ao rosto, gesto de quase criança surpresa, e disse que era estranho, que ele nascera, como ela, em um ano do gato.

— E isso é bom?

Ela não disse que sim e nem que não. Não existe bem ou mal, existe a vida, lenta ou lépida, e alguns seguem o ritmo do gato.

Ela lhe pediu licença, foi para a cozinha. Provavelmente usaria para uma “paella” todos aqueles mariscos e outras coisas que comprara. Na sala, Pedro se sentiu perdido entre imensas prateleiras de madeira e almofadas coloridas. As janelas estavam cerradas por cortinas densas de tecidos bordados com figuras e padrões complexos, o chão era todo coberto de tapetes grossos, tão bonitos que teve pena de pisar neles com os pés que trouxera da rua. Tirou os sapatos junto à soleira bem antes de se aventurar numa das almofadas, onde se sentou sem jeito e fechou os olhos. O apartamento tinha um cheiro forte de incenso e de patchuli e cada sombra deitada pelas cortinas e paredes era habitada por um luzir místico de cristais.

Logo ela voltou, vestindo um avental longo a ocultar pouca roupa que agora usava. Ainda não passara a sensação. O perfume do lugar tinha, talvez, o efeito de aumentar isso. As pupilas dela nadavam como duas luas novas em um entardecer nublado e ela tinha um olhar difuso como o brilho das gemas que enfeitavam as prateleiras.

— Está en el horno. ¿Has comido ya?

Não. Nunca. Nada parecido. Ela se ajoelhou entre as almofadas. Pedro viu que trocara o vestido por uma camiseta, e só. Abraçou seu corpo, anoitecendo o mundo, e a abriu para ver o que havia dentro. Queria a surpresa. Era o ano do gato, nada de mau aconteceria, e nem de bom.

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Nove horas! Que absurdo! O ônibus se fora com os turistas e ele, sem juízo, ainda estava naquele apartamento, que à luz do segundo dia se parecia muito com milhares de outros. A mágica descera, só restava o cheiro doce de essências e a ardência inferior, que ainda amarrava a sua alma. Ainda tinha a passagem em algum lugar, ou não. Só não teve certeza ou escolha. Teria de ficar e se entender com a vida. Encarar a ressaca de um dia de sol e um vestido de seda.

Mas alguma coisa dos tambores noturnos ainda restava no peito, dando um ritmo melhor às cores mortas do dia que nascera. Seria enxaqueca, ou um resto do fascínio que não morrera?

Saiu do quarto ainda envergonhado com alguma coisa que não sabia bem o que poderia ser, ouviu um chiado de chuveiro e adivinhou que havia alguém. Era ela mesma, mas algo tão diferente do sonho parecia mudar suas cores e aromas. Talvez fosse a nudez: sem o vestido não tinha a luz da tarde a lhe servir. Em vez disso, parecia ter doze anos mais, de corpo e alma, mas conservava uma beleza que já falhava, mas ainda encantava.

Não fora impressão: fora memória. Quando ela lhe falou, ele entendeu mesmo a língua que fora sua, nesta mesma infância ou em outra antes. Não a falava, mas ainda sentia. E ela chamava para partilhar da água da banheira, que estava “blanda y tibia.”

No instante se sentiu menos menino, deixou cair as calças e arrancou de si o resto da roupa. Logo estava com ela na água e os dois riam a mesma gargalhada de quem está em casa. Ah, era isso! Ele sabia que a deixaria um dia, ou que ela em breve o faria, mas por enquanto ambos continuavam, e como queriam! Então ficava mais um dia ou dois, com a passagem escondida na carteira, esperando ser usada ou perdida, como a vida preferisse. Esticou as pernas e sentiu-se flutuar com ela. As pernas dela também apareceram fora espuma, as unhas dos pés pintadas de vermelho deram a impressão de um ramalhete murcho atirado ao rio.

— Então estamos no ano do gato…

Ela apenas lhe sorriu, disse que o sotaque era atroz e o vocabulário era o de um avô. Pedro ofendeu-se disso, mas ela calou sua culpa com um beijo depois de lhe dizer:

— Nací también en el año del gato.

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Inspiração: “Year of the Cat” (Ano do Gato), de Al Stewart (1976).

No horóscopo do Vietnã o gato é um animal cuja personalidade se caracteriza por um misto de indolência e resignação. Acredita-se que os anos do gato são de grande tranquilidade e poucas alterações (más ou boas). Os nascidos no ano do gato são pessoas que se estressam pouco, que estão dispostas a aventuras, desde que não envolvam grandes esforços, e são muito volúveis no amor. Não há nada mais frustrante, para quem não compartilha a mesma personalidade, do que se envolver com um “gato”. E não há nada de mais gratificante, para quem também nasceu felino.

O gato corresponde ao coelho do horóscopo chinês (todo ano do gato é também um ano do coelho no zodíaco chinês). A mudança de animal reflete a personalidade mais prática e analítica do povo vietnamita, que não podia aceitar que o coelho e o rato, ambos roedores sem rivalidade na natureza, pudessem ser “opostos” no zodíaco.

Para o caso de você estar curioso, os últimos anos do gato foram 1963, 1975, 1987, 1999 e 2011 (ano em que se passa esta história). O próximo será 2023. Para quem esteja curioso de saber a minha identidade, não, eu não nasci no ano do gato, mas do touro, que, aliás, é o mesmo signo que tenho no horóscopo ocidental. Mas não acredito nisso de astrologia: taurinos como eu são céticos por natureza…

“The Year of the Cat” foi o quinto trabalho de estúdio lançado pelo cantor escocês Al Stewart. Produzido por Alan Parson, teve a participação de vários membros do futuro Alan Parsons Project e é considerado obra-prima de Stewart e um dos melhores discos produzidos por Parsons (que, para fins de comparação, trabalhara antes com os Beatles e o Pink Floyd). A canção título é a que fecha o álbum.

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