Precisamos Falar Sobre Reis e Barrigas

Há um espectro que ronda a literatura nacional, desde há algum tempo: o ressentimento de uma classe de autores e críticos contra o maior defeito da literatura nacional, o seu povo.

A literatura brasileira é, apesar do que pensem os indivíduos que residem em suas torres de marfim, a literatura de um povo oprimido, uma literatura de resistência. Ela tem de combater a cada dia não somente contra as próprias limitações materiais de um país que ainda é subdesenvolvido, mas também contra um sistema que parece determinado a destruí-la.

A principal função da literatura de resistência é chegar até o povo e se manter relevante, porque o sistema procura isolá-la de seu público e negar-lhe os instrumentos com os quais possa produzir um efeito social.

Esta situação difere daquela encontrada nas literaturas hegemônicas, das quais a mais preponderante é o inglês, mas não é a única. Em uma literatura hegemônica, embora possa haver centros periféricos de resistência contra a massificação, o sistema se encarrega de, mal ou bem, perpetuar o fazer literário como algo culturalmente relevante, ainda que instrumentalizado.

Nas literaturas de resistência, o sistema, mesmo que não o faça de maneira intencional e deliberada, procura silenciar toda voz local e subordinar a cultura como um todo a um processo globalizado, no qual fica ameaçada a qualidade da língua subjugada, continuamente encurralada pela pressão da hegemonia imposta a partir de fora.

Quanto mais cedo os nossos autores perceberem que não são potenciais candidatos a best-seller internacional, projetos de Paulo Coelho, mais cedo começaram a agir de maneira coerente com o único papel que resta ao autor original em uma literatura de resistência: o de subversivo.

A subversão a que me refiro é uma atitude inconformista e solidária.

O inconformismo não quer dizer rejeitar de plano tudo que divirja dos valores do autor, mas, sim, utilizar tudo o que seja oferecido pela cultura hegemônica como instrumento da difusão daquilo que a hegemonia (“globalização”) pretende sufocar.

A solidariedade quer dizer, principalmente, focar no público, que é, em última e única essência, a razão de ser do fazer literário. A literatura não é criada para as pedras ou para os animais, não é criada para uma vaga posteridade que não sabemos se um dia chegará. O escritor deve criar para quem está vivo.

Há entre nós uma certa classe de autores e críticos que desconhece ou desconsidera esta realidade e trata a nossa literatura como um sistema maduro e acabado que não diverge em nada de literaturas mundialmente hegemônicas, como o inglês, o alemão, o francês, o russo e, até mesmo, o espanhol.

Por desconsiderarem ou ignorarem a realidade, não percebem que o seu fracasso de público (apesar dos aplausos recíprocos com que se cumprimentam) é conveniente demais. Conformados com a ideia de que é o povo que tem defeito, perdem-se em formalismos que, de certa forma, tendem ao classicismo.

Confrontados com o desconforto de sua situação, esses autores e críticos escrevem textos venenosos contra a literatura comercial, os youtubers, a auto-ajuda e seja lá o que for. Não há mal nenhum em criticar o que é sabidamente ruim, mas ninguém deve se iludir achando que isso faz alguma diferença.

O que muda o mundo não é a ironia brandida contra quem a merece. Os péssimos autores que a gente tanto critica não ficam menos ruins e nem terão menos leitores por causa de textões como esse.

O que muda o mundo é o fazer, é ser propositivo. Não basta dizer o que não deve ser feito, é muito necessário fazer algo efetivo que rompa com o conformismo. Nossa literatura carece de usar botinas, como certa vez disse meu avô a respeito de um certo jovem. Caríssimos sapatos podem ser esteticamente mais bonitos, mas não servem para o trabalho duro.

Ser escritor em uma literatura de resistência é pegar no pesado, é virar brejo, é lanternar carro velho, é bater pasto, é carregar sacas de café, é dirigir caminhão.

Se o povo quer ler histórias sobre vampiros, por que torcer o nariz para isso? Escrevamos histórias de vampiros, porém aproveitemo-las para introduzir elementos nossos, uma voz peculiarmente brasileira. Façamos a literatura que o povo quer, mas o povo não deve receber de nós somente o que quer. Devemos contrabandear em nossos escritos algo que vá além do gozo raso.

Melhor escrevermos esta literatura feia, esta que o povo lê, do que gastarmos tempo escrevendo o que ninguém lerá a não ser os resenhistas e os raros fãs. Nesta literatura “baixa” podemos encontrar sustento, tal como, no passado, autores de peso ganharam a vida escrevendo contos policiais, histórias de terror e vários tipos de “exploitation”. E neste sustento podemos obter a maior das transgressões possíveis em uma literatura de resistência: ficarmos vivos e ativos enquanto autores, apesar do sistema que nos quer substituir por “ghost-writers” e traduções.

Vamos deixar em paz os Draccons e os Coelhos e todos os seus apaniguados rarefeitos. Façamos a literatura possível, façamos a literatura que o povo talvez aceite, mas que o sistema positivamente não quer.

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