Lovecraft e as Escuridões da Intelectualidade

Certos autores, quando criticados, seja com justiça ou não, costumam provocar debates intensos e ácidos, em que, invariavelmente, preferências e ideologias prevalecem sobre uma apreciação correta de seu mérito literário. Lovecraft é um desses autores.

Ídolo de muitos fãs de ficção científica, horror e fantasia; o americano tem uma herança pesada. Racista a ponto de ser eugenista, criou todo um universo de fantasia baseada naquilo que se poderia chamar de “medos do macho branco”: um universo hostil no qual a “pureza” e a “sanidade” de um mundo pequeno e simples estão sob constante ameaça de poderes exteriores, malignos e corruptores da humanidade.

Essa concepção do “macho branco em perigo” não foi, porém, inventada por ele. Atribuir-lhe toda a culpa por isso é injusto. O que pretendo discutir nesse artigo é até que ponto um autor como Lovecraft poderia ser responsabilizado pelos seus valores.

Os Antecedentes

A ideia de “macho branco em perigo” evoluiu lentamente a partir do meio do século XIX, quando começou a surgir na mentalidade coletiva europeia o temor de que os perigos desconhecidos das regiões colonizadas poderiam “fazer a viagem de volta” ao Velho Mundo, para ali assombrar a “normalidade”. Uma das primeiras obras em que esse temor colonialista aparece foi “O Horla”, de Guy de Maupassant, na qual um demônio originário do Brasil é detectado no interior da França.

Mesmo esse temor dos trópicos, porém, é parte de um terror mais generalizado em relação ao desconhecido. “Carmilla”, a vampira de Sheridan Le Faunu, é originária da Caríntia, região montanhosa recentemente conquistada pelo império austríaco. “Drácula”, de Bram Stoker, descobre um horror nos Bálcãs, recentemente liberados do domínio otomano. Aonde quer que a “civilização” chegue, pode haver ali oculto um perigo.

As histórias de piratas gradualmente incorporaram esse temor difuso ao desconhecido. Ao longo do século XIX, o elemento fantástico começa a aparecer relacionado aos “horrores do mar”. A expressão literária mais acabada disso está no ciclo marítimo de William Hope Hodgson, os romances The Boats of the Glen Carrig e The Ghost Pirates, além de alguns contos isolados como “Uma Voz na Noite” (que eu traduzi para esse blog).

Assim, quando H. P. Lovecraft está em sua fase formativa ainda, existe toda uma literatura dedicada a cultivar esse horror atávico pelo desconhecido. Em Lovecraft temos o curioso embate entre o fascínio do exotismo, representado pela sua adoração pelas “Mil e Uma Noites”, e a repulsa do estrangeiro. Essa tensão se traduzirá na sua literatura, na forma de um universo fantástico que é, ao mesmo tempo, ameaçador e sedutor.

As Limitações do Autor

O problema com Lovecraft é que ele é uma figura complicada: um autor com excelente cultura e ótimas ideias, mas que escreveu sob uma série de restrições, que o impediram de levar sua obra ao nível que ela poderia ter chegado. Nem digo “que o impediram de escrever como ele gostaria”, porque nós imaginamos muito bem que tipo de conteúdo ele teria escrito se deixassem: não teria sido mais bonito, apenas diferente.

Eu não vejo o racismo de Lovecraft como o problema maior, não em um contexto no qual o racismo era prevalente. Ele o sublimou em sua literatura, criando um conceito de horror baseado no medo paranoico à miscigenação, que acabou se mostrando duradouro e até moderno. Para mim o maior problema é que tenha se dedicado principalmente a escrever pulps por profissão.

Essas publicações foram, realmente, um meio de vida para toda uma geração de autores americanos — entre eles Lovecraft — e foram, também, a iniciação literária de uma parte significativa do público que, um pouco mais tarde, consumiu as primeiras obras do que veio a se chamar, depois, “ficção científica”. Mas foram, também, um meio extremamente questionável para esse fim.

As pulps focavam em um público de massas — portanto, afeito aos preconceitos de massa e a toda espécie de superficialidades culturais. Apelavam à sensualidade (em capas coloridas, nas quais mulheres pouco vestidas eram comuns) e a sentimentos mais “simples”, entre os quais o racismo se inscreve. Por isso, as revistas pulp ajudaram a difundir valores pouco progressistas, ainda que certos autores progressistas tenham publicado através delas. Foi através dessas publicações, por exemplo, que L. Ron Hubbard fundou a Igreja da Cientologia.

Publicar através dessas revistas teve influência, sim, sobre o desenvolvimento da literatura de Lovecraft. Podemos perceber isso quando comparamos os textos que publicava no início de sua carreira e os que publicou um pouco mais tarde, quando já inserido no “caldo de cultura” das pulp.

Para começar, isso exacerbou seu racismo porque o seu público era receptivo a isso. O tipo de horror à miscigenação que se lê em Lovecraft estava de acordo com os temores do típico americano branco — principalmente do sulista ainda ressentido com a guerra civil e simpatizante da Ku Klux Klan. As obras de Lovecraft que tiveram maior repercussão na época foram justamente aquelas que afagaram esses temores. Agora imagine um autor que escreve contos eróticos para um público de tarados do Wattpad e me diga se é justo comparar sua obra ao trabalho de uma escritora de alta classe como Marguerite Yourcenar…

Obviamente, Lovecraft não era um autor de alta classe.

Ademais, ao se profissionalizar como escritor de contos para revistas populares, Lovecraft se proletarizou. Diante da necessidade urgente de terminar histórias e publicá-las a fim de defender o seu feijão em lata de cada dia, o autor acaba internalizando a cobrança por resultados rápidos e envia para publicação obras que ainda não estão completamente desenvolvidas, ou que passaram por uma revisão muito superficial.

Obviamente, Lovecraft nunca teve a possibilidade de amadurecer suas obras.

Mais ainda, a pobreza em que o autor viveu quase toda a sua vida, desde a ruína financeira de seus pais, teve um impacto muito negativo sobre sua literatura.

Sabendo do fascínio que o autor, em criança, sentia pelas “Mil e Uma Noites”, não é absurdo dizer que havia nele um germe de curiosidade pelo mundo que, se satisfeito, poderia ter resultado na “abertura de sua cabeça” para toda uma série de valores e efeitos culturais. Mas a pobreza o impediu de viajar, de conhecer lugares reais, de travar contatos com pessoas diferentes, em seu contexto original e fora dos livros. Será que Lovecraft teria pintado os nativos do Pacífico Sul como os pintou se tivesse podido visitar suas ilhas como turista? Seria ele tão preconceituoso contra poloneses, tchecos e turcos se tivesse ido a tais países?

Mesmo Hodgson, que eu acredito ter sido o grande inspirador do horror de Lovecraft à miscigenação, raramente chega a ser racista em sua ficção, exatamente porque a sua experiência na marinha mercante lhe deu uma noção de mundo mais ampla. Em Hodgson, o horror à miscigenação não tem um cunho necessariamente sexual, mas religioso — porém ele não é assunto para esse breve comentário.

Em suma: Lovecraft é um autor cujo trabalho foi mal-acabado e cujos preconceitos e paranoias foram exacerbados pela pobreza e pelo gosto fraco do público para o qual escrevia.

O Autor Nem Sempre Iluminado

Uma tese predominante atualmente é a de que “não dá para desculpar o racismo de [xxxxx], considerando que havia em sua época vários outros autores que eram bem iluminados”.

Esse texto não pretende desculpar o racismo, ele é, sim, indesculpável (desde que demarquemos o que é racismo, pois nem sempre aquilo que se acusa de ser efetivamente o é). O que esse texto pretende argumentar é que nem sempre o autor é “culpado” pelo racismo.

Há duas coisas aí que precisam ser ditas, e com bastante ênfase:

  1. A “iluminação” pressupõe uma fonte de luz externa.
  2. Nem todos têm acesso irrestrito à luz.

Uma coisa de que gostei muito na crítica recentemente feita ao H. P. Lovecraft foi exatamente o uso do termo “iluminado”. Penso que é, mesmo, um termo muito adequado para este debate.

O que estou tentando dizer é que não dá para considerar todos os autores como igualmente iluminados.

Temos uma ideia de que os eruditos, entre eles os autores, são, necessariamente, pessoas mais iluminadas, que se elevam até um patamar que lhes permite ter um conhecimento “superior” do mundo.

Acredito que essa ideia é errada e expressa um preconceito de classe.

Nem todos os ditos “eruditos” são igualmente dotados de conhecimento. A luz não brilha igualmente sobre todas as cabeças, o que impede que certos autores vejam o mundo da mesma maneira. Certas pessoas ditas ignorantes podem ser mais iluminadas que alguns deles.

Lovecraft, apesar de se considerar um tipo de erudito, estava longe disso: era um perdedor provinciano e cheio de neuras, com várias frustrações graves na vida e que não tinha praticamente nenhum conhecimento do mundo, devido às limitações físicas e financeiras diante das quais vivia. Isso restringiu fortemente a sua capacidade intelectual para compreender o mundo, condicionava de maneira irremediável sua interpretação da realidade. De fato, a pobreza e a restrição de movimento que causa foram fatores preponderantes para manter Lovecraft relativamente “na sombra”.

Então eu não acho que Lovecraft possa ser considerado completamente responsável pelas suas ideias racista: ele foi um produto de seu tempo e lugar, sim. O fato de ser uma vítima da ignorância não quer dizer que devemos ter simpatia por ele, tampouco ódio. Efetivamente, ele foi alguém digno de dó, que teve de se divorciar por não ter condição de prover para o seu lar, e que morreu vítima de uma doença causada pela péssima alimentação com a qual foi forçado a se manter durante muitos anos.

Implicações da “Escuridão” de Lovecraft

Claro que é admirável quando alguém consegue se elevar acima dos limites de sua cultura, claro que a esses devemos valorizar mais. Isso é indiscutível, tanto quanto é indiscutível o racismo de Lovecraft, mas o fã de literatura não está atrás de valores morais, quem quer isso que vá para uma religião. O leitor quer boas histórias, bons versos, boa narrativa, etc. Seria ótimo se isso fosse encontrado somente nos livros escritos por boas pessoas, mas não é assim que funciona. Às vezes ser uma boa pessoa torna o autor um “xarope”.

Às vezes encontramos certo prazer nas sombras. Talvez porque vivemos em um planeta beneficiado por ciclos diários de luz e escuridão. É da nossa natureza conviver com as trevas e com a luz, por mais que a luz nos atraia mais.

Mesmo assim, é questionável que se coloque Lovecraft como um autor-chave da literatura do século XX. Ele teve, em vida, um alcance muito limitado. Quase toda a influência que teve foi póstuma, construída por seus amigos e fãs. Tornou-se importante para um nicho, talvez nem deveria chegar ao grande público — que, em sua maioria, não suportaria o estilo de prosa carregada dele — mas permanecer uma referência restrita entre escritores e produtores de conteúdo.

Mas existe uma idolatria por Lovecraft.

Conclusão: o Que a Escuridão de Lovecraft Ilumina

Se o autor, em vida, não se beneficiou da “iluminação” do conhecimento e da experiência de vida da mesma forma que seus contemporâneos, a idolatria por sua obra e por sua personalidade diz muita coisa sobre o mundo de hoje e sobre essas pessoas que o idolatram.

Há pessoas que gostam de Lovecraft não porque ele tenha escrito “boas histórias, bons versos, boa narrativa”, mas porque expressou valores que combinam com uma certa visão de mundo e que provocam os limites do “politicamente correto”. Para essa gente, uma história de terror eficiente como “A Cor do Espaço” tem o mesmo valor que um texto nojento como “The Street”. Para essa gente, o que torna Lovecraft interessante não é a qualidade de sua prosa, mas saber que sua prosa destila e sublima as paúras racistas de um aristocrata arruinado da província, incapaz de aceitar o mundo multicultural para o qual foi transplantado.

Essa gente que idolatra Lovecraft enquanto pessoa o fazem porque vivem hoje algo semelhante ao conflito pessoal de Lovecraft. Também elas se sentem como quem foi arrancado de sua confortável “província” e obrigado a interagir com um mundo “mudado”. Parte dos adoradores de Lovecraft é gente que também idolatra Hitler, Bolsonaro e a ditadura militar.

Toda vez que xinga Lovecraft de mil nomes, você chuta a muleta intelectual de gente que precisa legitimar seu medo. Se Lovecraft for derrubado, essa gente encontrará outro ídolo porque a sua idolatria não é pelo autor em si, mas por valores. Lutar contra os mortos é lutar contra sombras, dar socos no vento.

A verdadeira luta é hoje e agora. Quando as pessoas deixarem de ser babacas, não vão mais colocar os babacas do passado em um pedestal. No máximo vão lê-los com distanciamento, naquilo que forem essenciais.

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