O Relativismo como Inimigo da Democracia

A associação entre o relativismo e o autoritarismo foi feita pela primeira vez por Allan Bloom, em The Closing of the American Mind (“O Fechamento da Mentalidade Americana”, que ganhou no Brasil o estranho título de “O Declínio da Cultura Ocidental”). Essa obra tem o estranho subtítulo “Como o Ensino Superior Traiu a Democracia e Empobreceu as Almas dos Estudantes”.

Para aquele autor, a ideia de que haveria versões concorrentes e igualmente válidas dos fatos históricos seria uma estratégia dos conservadores, dos fascistas e dos herdeiros do escravismo sulista e teria por objetivo remover a condenação óbvia dessas ideologias ao minar a confiança generalizada nos parâmetros éticos sobre os quais se ergue a sua condenação.

Tudo isso começou a partir da popularização de uma versão pervertida da filosofia de Nietzsche — autor que fora, também, pervertido pelos fascistas alemães com seus próprios objetivos. Para alguém que se propunha como o carpidor dos valores filosóficos, o autor talvez se sentisse incomodado com a facilidade com que a sua obra foi adotada pelos coveiros destes como uma espécie de celebração da morte daquilo cujo óbito iminente ele lamentava.

Bloom aponta que vários termos do jargão nietzscheano se tornaram comuns no linguajar político, mesmo entre aqueles que nunca leram o autor alemão. Discursos baseados em “valores” (no plural), “carisma” (como um atributo pessoal), “comprometimento”, “identidade”, “estilo de vida” e outros foram primeiro encontrados em Gaia Ciência e Além do Bem e do Mal (este último uma obra essencial para entender o relativismo pós-moderno).

A conexão com certa vertente filosófica alemã se tornou tão evidente que alguns termos nem foram traduzidos, como gestalt.

Quando Bloom aponta esta conexão “alemã” ele não o faz por preconceito contra os alemães em geral, ou sua filosofia, mas por reconhecer que o fascismo em geral, e o nazismo em particular, descenderam de uma determinada linha de pensamento. Esta linha de pensamento, por haver produzido um fruto tão perigoso, contra o qual se teve de travar uma guerra mundial, deveria ser analisada sob um prisma crítico intenso. Para Bloom, no entanto, foi justamente esta linha de pensamento que passou a imperar no sistema universitário americano.

Apenas para constar, pois nem todos vocês procurarão o livro de Bloom para ler, a linha de pensamento a que ele se refere parte de Hegel e segue por Fichte, Nietzsche, Freud, Fromm e Heidegger. Nem todos esses autores foram utilizados de maneira honesta pelos fascistas (Hegel e Nietzsche foram claramente pervertidos por eles), mas outros tiveram relações próximas demais com o fascismo e ainda assim se permitiram manter com este relações promíscuas (caso de Heidegger e, talvez, de Fromm).

Essas ideias, claro, ao mesmo tempo em que cortejavam o “umbiguismo” dos intelectuais (sua obsessão com a “autodescoberta” através do exame das camadas “subconscientes” da mente, propostas por Freud), trabalhavam contra a democracia. Isso acontece, para Bloom, quando os perdedores da Guerra de Secessão, que ainda tinham certa dose de poder econômico regionalmente limitado e estavam dispostos a lutar pela sua legitimação, perceberam a utilidade do relativismo para reivindicar uma “identidade” sulista e seus “valores”. A ideia de valores minoritários, e da própria existência de “minorias”, foi a solução que encontraram (todos os grifos em itálico acrescentados por mim):

O apelo à fórmula da minoria era enorme para todo tipo de gente, reacionários e progressistas, todos aqueles que nos anos vinte e trinta ainda não aceitavam a solução política imposta pela Constituição. Os reacionários não gostavam da supressão dos privilégios de classe e do secularismo. Por diversas razões eles simplesmente não podiam aceitar a igualdade. Os sulistas sabiam muito bem que o coração da Constituição continha um compromisso moral com a igualdade e que, por isso, condenava a segregação dos negros. A Constituição não era apenas um conjunto de regras de governo, mas implicava em uma ordem moral que devia ser implementada por toda a União. Mesmo assim, o que ainda não foi suficientemente percebido, a influência de autores e historiadores sulistas na escrita de sua história foi muito forte. Foram particularmente bem-sucedidos em caracterizar a sua “instituição peculiar” como parte de uma diversidade charmosa e de uma individualidade cultura em relação à qual a Constituição fora pior do que indiferente. O ideal de uma mente aberta, sem etnocentrismo, era tudo de que precisavam para uma defesa moderna de seu modo de vida contra a invasão de forasteiros que exigiam direitos iguais aos dos cidadãos domésticos. A romântica caracterização que os sulistas fizeram das supostas falhas da Constituição e a sua hostilidade à “sociedade de massas” com a sua tecnologia e seu modo de vida avarento, com indivíduos egoístas e concomitante destruição do que era comunitário, orgânico e enraizado apelou aos descontentes de todas as cores políticas. A Nova Esquerda dos anos sessenta expressou exatamente a mesma ideologia que fora desenvolvida no Sul para proteger suas práticas das ameaças representadas pelos direitos Constitucionais e pelos poderes do Governo Federal para implementá-los. Eis a velha aliança entre a Esquerda e a Direita contra a democracia liberal, batizada de “sociedade burguesa”.

Não é de espantar que a direita seja inimiga da democracia liberal, porque não é possível manter os privilégios de uma sociedade de classes em um regime democrático. Que uma parte da esquerda se preste a esse papel é menos previsível, mas, afinal, desde Marx, a democracia liberal sempre foi vista com desconfiança, como um mero empecilho à revolução final do capitalismo rumo ao socialismo. O que mais causa espanto aqui é que a democracia tenha tão poucos aliados — especialmente entre os intelectuais.

Ao fim e ao cabo deste processo que Allan Bloom analisou em 1987, de maneira tão profética, chegamos a uma situação na qual o debate racional está se tornando impossível porque o valor de uma intervenção passou a ser vinculado a quem a expressa — o conceito de “lugar de fala”. Certamente a democracia depende de vozes plurais e isso merece ser estimulado para combater a tendência centralizadora, que é a própria essência do fascismo, mas negar a validade de uma opinião com base em quem a expressa é tão perigoso quanto isso, não porque favoreça ao autoritarismo fascista, mas porque debilita o debate racional, abrindo campo para abordagens irracionais. Se não é mais possível discutir civilizadamente e chegar a acordos racionais, em algum momento alguém meterá o pé na porta, dissolverá a bala as reuniões improdutivas e imporá uma solução. É parte da ideologia do fascismo o apelo à ação, como solução para a esterilidade dos debates intelectuais. Promover a esterilidade de tais debates não é nenhuma maneira de prevenir o fascismo. O fato de esta abordagem bizantina ter falhado duas vezes em um mesmo século (no entre-guerras e agora mais recentemente) talvez ainda não seja suficiente para que seus adeptos mais fanáticos entendam o que estão a fazer.

Para finalizar este humilde texto, em que praticamente rendo homenagem a um pensador genial, gostaria de dar um exemplo de como o identitarismo (de que Bloom fala, mas que ainda não nomeia) envenenou o debate sobre direitos civis no mundo todo e no Brasil em particular.

Não raro lideranças identitárias lançam uma acusação genérica contra o grupo demográfico predominante (as feministas, contra os homens, o movimento negro, contra os “brancos”) como se fosse um diagnóstico da realidade social. Por exemplo: “os homens não gostaram da ideia de ver um filme bem sucedido com uma heroína” ou “os brancos piram quando veem um filme com um super herói preto”. A partir do momento em que esta afirmativa é feita por alguém que tem seu “lugar de fala” (uma mulher e um negro, respectivamente), ela se torna verdade (ou melhor, uma pós-verdade) e toda tentativa de demonstrar sua evidente falsidade passa a ser vista como uma “confirmação” de sua veracidade e como um teste através do qual aqueles que tentam criticar a afirmativa são identificados como partícipes (ou pelo menos cúmplices) da atitude que se pretende condenar. Se um homem diz que gostou do filme, isto não é compreendido como uma evidência de que a generalização “os homens” é falha. Ele é repreendido por haver se intrometido, em geral com frases do tipo “não estamos falando de você”, seguidas de algum tipo de xingamento, logo secundado por uma claque. Se um branco diz que não se incomodou com o Pantera Negra e que, inclusive, já era fã do personagem de quadrinhos, algum tipo de reação do mesmo nível se sucederá, em geral negando a legitimidade da simpatia do branco pelo personagem. Em ambos os casos, as vozes que tentaram negar a generalização são identificadas como agentes de uma espécie de complô para disfarçar essa realidade imaginária na qual não existem justos. Essas vozes recebem o que, modernamente, equivale a piche e penas: o opróbrio das redes sociais.

Por causa da ideia de que a visão das minorias sobre a sua situação na sociedade tem precedência sobre qualquer tentativa de realmente entender esta situação é que chegamos a um ponto em que a percepção subjetiva de um membro da minoria se torna inquestionável e a verdade, uma quimera. Isto é bastante útil quando se quer negar a realidade de injustiças históricas, como a escravidão e a opressão da mulher, mas também é muito útil quando se quer construir lideranças falsas, mais interessadas em ganhos imediatos do que em uma luta efetiva, baseada em um entendimento racional dos desafios à frente.

O problema com as lideranças verdadeiras e com as lutas efetivas é que isso demanda tempo — coisa que é cada vez mais rara nesse mundo veloz em que vivemos. Por isso a verdade se tornou fluida e a lógica argumentativa virou um empecilho para o atingimento de conclusões necessárias. Diante de tantos dados confusos, chegar a conclusões é um conforto intelectual, que nos salva do assustador abismo do niilismo. Se a conclusão é difícil, porque não temos tempo ou porque não temos competência, não raros são aqueles que culpam as ferramentas e os procedimentos e atacam os princípios através dos quais os dados são analisados. A abordagem “holística”, que se baseia em uma visão que vai “além da lógica fria” serve a esse propósito de atalhar o caminho entre o choque da realidade e a necessidade de acreditar em uma compreensão da realidade. Mesmo que o preço disso seja impossibilitar o entendimento do que de fato ocorre.

Na eventualidade da derrota de uma luta baseada em noções falhas da realidade, por sua vez criadas pelo isolamento do intelectual em relação a procedimentos racionais de análise, sempre se pode culpar algum complô e atacar os críticos como se a sua oposição anterior à irracionalidade tivesse sido o fator de enfraquecimento do muro de palha com que se pretendia cercar o mal lá fora.

É também um bom momento para se fazer expurgos, porque é muito mais fácil atirar nos aliados do que nos inimigos: eles estão mais perto e sabemos quais são perigosos e quais não terão condições de reagir. Os aliados você conhece bem, sabe onde dói ou onde é fatal, os inimigos são menos óbvios. Os aliados estão mais perto, então o alvo é claro. Inimigos são difusos, distantes, difíceis de acertar. Além disso, os inimigos são muitos e os aliados são poucos, então é mais fácil se tornar protagonista eliminando quem divide a luta ao seu lado do que eliminando o adversário. Se o adversário for derrotado por uma grande coalizão, você dividirá a fama com muita gente. Mas mesmo que você perca a luta, se estiver sozinho terá o reconhecimento póstumo. Atacar os aliados é uma atitude, então, “mais produtiva” se o que você quer é ter atenção em vez de resultados, se quer é “protagonismo” em vez de eficácia.

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