Semente do Mal

O feiticeiro se debruçava sobre os incunábulos, obcecado com os astros, sentindo a passagem dos decanatos enquanto aguardava o momento propício para dar prosseguimento à sua Grande Obra, quando uma batida à porta se fez ouvir, interrompendo a sua concentração. Praguejando contra dezenas de gerações de habitantes daquela miserável cidade, aonde fora esconder o seu focinho da ignorância supersticiosa dos inquisidores, abandonou o contemplar dos planetas na noite límpida de inverno e desceu as escadas penosamente até a porta de madeira firme, cuja aldraba em forma de lobo produzia aquele triste e amortecido bater.

Era uma velha que vivia na redondeza. Ou melhor, a coitada se parecia e se comportava como tal, mas diziam que era ainda relativamente jovem. A pobreza e a solidão em um mundo cruel é que lhe haviam cobrado tal duro preço, a ponto de seu rosto estar precocemente retalhado de rugas e seu cabelo parecer um telhado salpicado de neve no começo do inverno. Quase toda noite aquela pobre alma batia à porta do feiticeiro, pedindo-lhe a caridade em nome de Jesus. Sempre lamurienta, repetindo que era pobre e não tinha ninguém no mundo que lhe pudesse valer. O feiticeiro não dava nada, nunca, mas ela sempre voltava a pedir, no desespero típico desses mortos de fome.

Mas naquela noite o negro coração do feiticeiro foi tocado de uma forma quase inesperada para alguém tão alheio ao mundo e suas dores. Em lugar de esbravejar com a mendiga e bater a porta em sua cara, a convidou que entrasse:

— Entra, pobre velha. Está frio demais ao relento para que a tua pobre alma perambule por essas estradas vazias.

— Agradeço muito que Jesus vos tenha tocado essa noite, meu bom homem, mas de nada me vale entrar em um abrigo se as forças já me fogem de fome. No frio pelo menos morro mais depressa.

— Pois por esta noite eu salvo a tua vida, pobre velha. Eu fiz um caldeirão de guisado para o meu jantar e ainda sobra bastante. Como a fome não exige muito do cozinheiro, creio que não vais importar-te de comer do horrível manjar com que me alimentei.

Não foi preciso dizer duas vezes para que a desamparada mulher achasse, perto do fogão, uma tigela vazia, que mergulhou no caldeirão, extraindo uma generosa medida do guisado, que se pôs a sorver com uma sofreguidão sincera, de quem realmente tinha a fome no encalço.

Quando terminou a sua boca desdentada iniciou uma ladainha de incríveis agradecimentos, em nome de todos os anjos e santos, ao seu salvador. De quem ela dizia que, apesar da péssima fama e das muitas decepções antes sofridas, era um homem bom.

O feiticeiro, evidentemente, não teve apreço por isso. A humanidade que ainda possuía não era desse tipo meloso e exagerado que caracterizava a gente humilde de antigamente. Depois de tolerar por breves minutos toda a gratidão da pedinte, molhada de lágrimas, ele a mandou calar-se. Nada feito, porém. Ordenou-lhe calar-se. Nada mesmo. Foi preciso uma ameaça, de expulsão, para que ela aceitasse parar. Mas não sem lamentar-se:

— Como é humilhante a vida da mulher sozinha nesse mundo! Se eu tivesse marido ou filhos que me valessem eu não precisava pedir.

O feiticeiro, que já estava a ponto de subir as escadas do observatório para continuar contemplando as estrelas, voltou-se e a encarou, coçando a barba desgrenhada:

— Realmente achas que estarás melhor no mundo se tiveres um filho?

— Oh, meu bom homem, falas como se isso ainda fosse possível.

— Há coisas que são possíveis, e há coisas que não são. Entre as que não são possíveis, há algumas que talvez o sejam, para quem está disposto a pagar o preço devido.

—Oh, o que eu não daria por um filho!

Ela se recolheu a um canto, ainda perto das brasas, pronta a dormir bem pela primeira vez em semanas. O feiticeiro subiu suas escadas e deixou-a lá, choramingando como um gato doente.

Na manhã seguinte, quando ele desceu, ainda estava enrodilhada no canto como uma trouxa de roupa suja. Devia ser cruel a perspectiva de ter que deixar um lugar onde se acendia fogo à noite. Pela primeira vez em anos o feiticeiro sentiu-se humanamente comovido e contemplou no fundo negro de sua alma perdida a perspectiva de, mesmo de um jeito mau, fazer algo de bom no mundo. Contemplou-a, com desapego, mas com solidariedade. Não sabia o que dizer, porque havia anos que não sabia dizer nada agradável a ouvidos humanos.

— Velha, aonde vives?

— Não tenho lar desde que o Senhor de La Rochelle expulsou-me quando enviuvei sem filhos.

— Sabes fazer algum serviço doméstico?

— Cozinhar, lavar, varrer, cuidar de horta.

O visível brilho nos olhos da velha sugeria que, com argúcia típica dos desesperados, ela adivinhava o que o feiticeiro diria a seguir.

— Velha, Posso permitir que durmas dentro de minha torre todas as noites, desde que cozinhes para mim e me mantenhas uma horta. Também varras o chão quando eu mande, como eu mandar.

— Oh, senhor! Eu vos serei grata até no paraíso!

— Então começa agora.

O primeiro teste: o feiticeiro deu-lhe moedas, com ordem de ir à cidade e buscar sementes para a horta. Se ela não retornasse, ele estaria pelo menos livre de que voltasse a mendigar à sua porta. Se voltasse, talvez merecesse o bem que ele lhe fazia.

Ela voltou. Mesmo desvalida e morta de fome, a mendiga voltou com exata quantidade de sementes e com o troco devido. O feiticeiro refletiu, com a barba desgrenhada voejando ao vento, que teria de manter a palavra, e isso o divertia até.

A mendiga ficou trabalhando na habitação escura do habitante mais nefasto daquela região. Alquimista para os poucos mais letrados, feiticeiro para os que temiam a Deus em sua ignorância. Ela lhe cozinhava e mantinha uma horta notável por crescer primeiro que todas as outras.

Uma tarde, o feiticeiro estava comendo com voracidade um cozido de nabo com carne de porco enquanto a velha, respeitosamente de pé, aguardava o fim do repasto para servir-se das sobras do caldeirão. Enquanto raspava a tigela com um pão e lambia dos dedos a gordura, o feiticeiro, naquele dia especialmente bem humorado, começou a conversar com a pobre mulher, coisa que raramente fazia:

— Então tens estado feliz com a horta que plantas?

— Estou feliz como Deus me permite, senhor.

— Uma vez me disseste que estarias bem melhor nesse mundo se tivesses tido um filho.

— Certamente que sim, senhor.

— Então tenho uma proposta a fazer-te, minha velha. Posso dar-te um filho, se o queres, conquanto aceites dar-me o que eu quero.

— Oh, meu senhor. Fico lisonjeada que minhas carnes sofridas ainda atraiam vossos olhos, mas de nada adiantaria eu ceder-vos meu corpo, porque meu seio não vai mais gerar filhos.

Ao simplesmente imaginar-se a copular com a velha o feiticeiro teve uma repulsa quase incontrolável. Mas estava acostumado a imaginações piores do que aquela.

— Mas não se trata disso, velha. Eu bem sei que pelos métodos dados por Deus tu não terás filho algum.

— Então de que falais?

— De métodos não dados por Deus.

A velha ficou em silêncio. Seu coração temente a Jesus se confrangia de imaginar que tipo de artes obscuras aquele homem tão mal afamado talvez tivesse em mente. Mas o desejo de ter um filho varão que lhe valesse na vida falava mais alto:

— Eu aceitaria mesmo isso, sendo para ter um filho de meu sangue.

— Oh, o teu sangue ele certamente terá.

Naquela noite, pela primeira vez, a velha pôde subir ao alto da torre e conheceu uma miríade de instrumentos e livros que tinham uma aparência, uma presença, um eflúvio, um miasma… certamente malignos.

O feiticeiro tomou uma semente de repolho do envelope e a pôs na mão da mulher, a mão esquerda. Pegou então o outro braço e abriu uma ferida no punho, cuidadosamente fora do alcance das veias, e deixou que gotejasse o sangue ralo da velha sobre a semente enquanto repetia palavras rudes, esquecidas dos homens que vivem durante o dia:

— In nomine Ignis, Terrae, Aquae et Aeris. Homunculus creandum est.

A chama do candeeiro subiu por um momento, soprou um vento gélido pelas frestas das janelas, o feiticeiro derramou água e terra sobre a semente e levou a mão da mulher sobre a chama, queimando-a levemente. Então deu um grito alto, dizendo:

— Anima vilis, in semen fixat.

E soprou sobre a semente, fazendo a mover-se quase imperceptivelmente. Por fim apagou o candeeiro e conduziu a aterrorizada mulher para baixo, onde lhe instruiu:

— Planta a semente amanhã à sexta hora. Em uma cova feita retirando seis pás de terra e coberta com seis. Cada dia durante seis dias, regarás a cova com sangue de teu sangue. Quando germine a planta, deverás cuidá-la da mesma forma, até estar em ponto de colheita. Então me chamarás quando o repolho avermelhar, para que eu faça o que precisa ser feito. E se assim não fizeres, exatamente, um dia te arrependerás amargamente.

Mesmo sem entender quase nada, mesmo tendo a pavorosa sensação de estar colaborando com uma obra do demônio, a velha aceitou o trato e dedicou-se a cumprir o que o mago determinara. Cavou cuidadosamente uma cova na horta, contando seis colheres de terra sem que ficasse muito funda. Pôs a semente nela e cobriu com seis colheradas de terra e estrume. Depois, mesmo com horror, deixou de seu sangue sobre ela.

E por seis dias retornou, sempre pingando um pouco de sangue, mesmo que estranhasse a demora da germinação daquela semente. Por fim, ao sétimo, uma tenra folhinha saiu da terra escura. A pobre mulher, presa fácil do encanto do que lhe prometera o feiticeiro, continuou regando com sangue de seu sangue a misteriosa planta que crescia. Enfim, ao décimo oitavo dia o repolho começou a assumir uma cor diferente do verde pálido a que ela estava acostumada. Inicialmente pensou que fosse um tipo de repolho roxo que só mudava de cor muito tardiamente, mas a cor que ele ganhava, de forma tão inatural, era um rosado pálido que aos poucos escurecia, e parecia cada vez mais com a cor de sangue vivo, e as nervuras da folha, em vez de quase invisíveis, saltavam como veias, quase parecendo pulsar com o movimento da seiva, cuja aparência a velha nem ousava imaginar.

Foram ainda cinco semanas e um dia até finalmente o repolho parecer que era vermelho, todo vermelho. Chamou então o feiticeiro para que o visse e fizesse o que devesse fazer. Ele contemplou a sua obra, com orgulho e admiração:

— Nunca imaginei que desse certo com o sangue de uma mulher. Decerto este sucesso tem algum significado que escapou aos alquimistas do passado.

— O que tem dentro desse repolho, senhor?

— Um filho para a senhora, pobre velha, se eu consegui fazer o que tentei fazer.

O feiticeiro acercou-se do misterioso pé de repolho e executou, ajudado por seu punhal de prata, o mais estranho parto que já se imaginou neste mundo, fazendo nascer de entre as folhas uma criança minúscula, pequena a ponto de caber na mão aberta de sua mãe adotiva.

— Eis teu filho. Cuida bem dele, para que te ampare na velhice.

A velha contemplava a criaturinha que se mexia entre seus dedos, com um espanto incomensurável. Sentia no fundo de sua alma que estava perdida, que Deus em algum lugar estava irado com o tremendo sacrilégio que fora feito naquela horta, em plena luz do dia. Mas por outro lado tinha toda a alegria da maternidade, que nunca pudera imaginar.

— Como darei de mamar, senhor? Meus peitos murchos não têm leite!

O feiticeiro a encarou, com um sorriso obscuro nos lábios:

— Mas tens o que ele quer, velha. Não te preocupes.

A velha então levou a sua teta mole à boca do monstrinho, imaginando o que poderia acontecer, se talvez o feiticeiro lhe teria, também, produzido o milagre da lactação. Sentiu então uma pontada no mamilo, como se duas agulhas estivessem sendo fincadas ali e olhou, assustada, para a cara do minúsculo ser que nelas se dependurava: a criaturinha tinha os olhos abertos e um sorrisinho torto na boca que lambia o líquido vermelho que escorria das feridinhas. Lambia com avidez, grunhindo de satisfação.

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