O Mito da Acessibilidade

Uma das maiores polêmicas em que os jovens autores se envolvem é a questão da “acessibilidade”, um termo muito mal empregado no contexto da edição de livros. Teoricamente, o termo se refere a meios através dos quais pessoas deficientes de algum sentido teriam acesso a um lugar ou conteúdo. Por causa da acessibilidade existem os livros em braille, para que os cegos possam ler, os livros infantis têm letras grandes, adequadas à faixa etária, foram criados softwares de leitura para permitir que os cegos usem computadores, e as repartições públicas têm rampas inclinadas ao lado das escadas.

Porém, no mercado editorial, trata-se de acessibilidade para resolver a deficiência do leitor. Mas o uso da palavra no mercado editorial tem um sentido oposto ao seu uso na sociedade em geral.

Estamos acostumados à ideia de que a acessibilidade é um direito que os portadores de alguma deficiência física têm, para que possam usufruir de serviços públicos — como um ônibus, um museu ou uma agência bancária. Trata-se de algo imposto pela lei, que nenhuma empresa privada faria por livre e espontânea vontade, pois os portadores de deficiências são uma minoria.

No mercado editorial o termo “acessibilidade” não se baseia na imposição legal, às custas do lucro empresarial, para dar direitos a minorias. Em vez disso, parte da ideia de que a maioria dos leitores são mental ou culturalmente deficientes e, em nome da maximização lucro, almejam atingir pelo mínimo denominador comum, ao maior público possível.

Dito desta forma soa um tanto ofensivo, mas na essência é mesmo isso o que está por trás da ideia de uma literatura “acessível”. Porque o termo foi redefinido de uma maneira que não torna possível nenhuma outra interpretação.

Porque o que normalmente se considera como “acessível” em literatura é justamente aquilo que corresponde à própria definição de mediocridade. Se um autor emprega vocabulário extenso, é preciso ser menos arcaico. Se usa muitas metáforas, isso traz obscuridade. Se o tema é incomum, não traz empatia. Há alguma polêmica, isso afasta certos leitores.

Para que o texto se torne acessível é preciso “arredondá-lo”, amputar dele qualquer coisa que se destaque, boa ou ruim. O vocabulário deve ser limitado, porque o leitor não quer interromper a leitura para procurar o sentido de uma palavra. Se for inevitável introduzir uma palavra incomum, ela deve ser explicada. Qualquer simbologia deve ser destrinchada no equivalente a uma nota de rodapé, mas inserida no parágrafo. O tema deve, de preferência, ser algo que o leitor já conheça, as ideias que ele já tem ou conhece.

Sendo impossível que todo leitor seja igual, deve-se perseguir pelo menos a maioria dos leitores. Para onde sopre o vento, para lá deve ir o autor. Se muita gente está lendo sobre um tema, mesmo que este seja fezes, haverá uma renca de obras explorando o “filão”. Todas muito acessíveis. E aquilo que não siga isso, corre o risco de ser tachado de “cabeça” demais para o público. Em nome da acessibilidade aboliu-se o pretérito mais-que-perfeito e logo se abolirá o futuro do presente.

O problema é que uma das famosas “Leis de Murphy” diz que “se você criar um sistema que até um tolo pode usar, somente os tolos quererão usar.” O corolário disso, a julgar pelo sucesso da literatura dita “acessível”, é que temos no mundo uma maioria de tolos — ou de pessoas forçadas a consumir o que os tolos consomem.

A literatura “acessível” tem um imenso potencial emburrecedor. Houve um tempo em que se recomendava às pessoas que lessem, para que adquirissem vocabulário, desenvolvessem a capacidade de expressão e entrassem em contato com ideias novas. Tudo isso somente era possível porque os livros empregavam vocabulário mais extenso que o da maioria das pessoas, estavam vazados em uma linguagem mais criativa e apresentavam ideias contrárias ao senso comum. Se retirarmos da literatura essas qualidades, reduzindo-a àquilo que é “acessível” ao maior número de pessoas, o que teremos será uma literatura que não mais educará.

Eu não tenho a mais remota dúvida de que esta seja a intenção de algumas pessoas que estão em posição de poder, porém estas pessoas não são a maioria. Não há no mundo um frigorífico especializado em abater galinhas de ovos de ouro. É inconcebível um mercado editorial determinado a destruir o leitor, porque destruirá a literatura.

Então por que a acessibilidade entrou na pauta?

Esta é mais uma entre muitas evidências da crise cultural porque passamos. A tecnologia da informação, com seu grande potencial transgressor, bateu como um vendaval em tudo aquilo que se conhecia como cultura até há poucas décadas. O mercado encolheu, as pessoas já não compram tanta revista, nem tanto jornal e nem tanto livro. Mas nunca houve tantas editoras no Brasil, porque o investimento necessário à produção de livros se tornou muito menor.

A extrema competição produz extremismos estratégicos. Há uma imensa necessidade de vender, mesmo que seja papel sujo. Porque com idealismo e sem vendas não se sustenta um negócio. A literatura acessível funciona como modelo de negócio porque ela atinge o leitor “defeituoso” que antigamente era forçado a ler a literatura propriamente dita. Esse leitor antes se aventurava em livros que estavam acima de sua capacidade cultural, às vezes até intelectual. Alguns se deslumbravam, aderiam, perseveravam, aprendiam. Outros largavam mão dessa tal literatura e iam ganhar a vida. A existência de um público carente de uma literatura que soubesse ler e entender sem esforço era mal reconhecida, e certamente não era problematizada.

É inútil esgrimir contra a literatura acessível ou xingar o leitor que consome esse tipo de livro. O rancor dos que desejam fazer uma literatura de qualidade apenas soa ridículo aos ouvidos de quem não entende sequer a necessidade de haver tal literatura.

Fazer literatura nunca foi fácil, especialmente no Brasil. Historicamente a maioria dos livros publicados sempre teve apelo popularesco ou foram edições pagas por gente rica e vaidosa que queria brincar de escrever livro — um passatempo ainda hoje muito popular entre as elites do Brasil, haja vista o livro de poemas do nosso presidente. Quem escrevia obras de qualidade tinha de competir com esse tipo de produto, frequentemente curvando-se à necessidade ou explorando o sensacionalismo para atrair curiosos. Quando, eventualmente, como Machado de Assis, atingiam uma posição social confortável, libertavam-se dessas amarras e produziam suas obras de “maturidade”.

Temos que aceitar que o público da literatura de qualidade é hoje menor do que nunca, em termos relativos, mesmo que seja maior em termos absolutos. Há muito mais a competir com o livro pela atenção dos jovens: jogos eletrônicos, sexo, esportes, drogas, balada… Várias destas atividades vão desviar o jovem definitivamente da literatura, transformá-lo num cavalo ferrado quando chegar à idade adulta, mas uma cavalgadura puro-sangue, de respeito e de linhagem, como certos famosos-quem que confessaram jamais ter lido livros na vida…

A literatura “acessível” é uma tentativa de chegar até eles. Uma tentativa patética e que vai falhar a longo prazo, mas as editoras estão cagando e andando para isso. Em uma indústria decadente, como a do livro impresso, tudo o que importa é ainda ter lucro por uns anos abusando do fetichismo do cheirinho de tinta. O fim todos já mais ou menos sabemos. Não houve nenhuma “máquina de escrever avançada” que conseguisse sobreviver ao computador, e nenhuma carruagem de luxo que não ficasse para trás, na poeira do automóvel. Assim como em 1988 ainda se falava em máquinas de escrever “eletrônicas” e em 1914 ainda havia quem preferisse carruagens, ainda se fala no futuro do livro e do mercado editorial tradicional. A literatura “acessível” é a carruagem “melhorada”, é a Olympia Dismac EX 88.

Quem escreve e pensa a literatura não precisa e não deve se importar com esses últimos espasmos de um mundo morto que ainda não se enterrou por pura falta de cova. Devemos encontrar outro caminho para a literatura, no qual ela ainda seja relevante e não precise monitorar a última moda dos joguinhos de celular para lançar livros caça-níqueis sobre personagens deles.

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