O Lugar da Mitologia de William Hope Hodgson no Mythos Lovecraftiano

O autor inglês, cuja obra maior, A Terra da Noite, será editada ainda esse ano no Brasil, pela Editora Clock Tower, em tradução minha, foi, de diversas maneiras, um pioneiro da ficção científica. Muito já se escreveu sobre a originalidade de suas ideias, mencionando seu papel no desenvolvimento do gênero “terra moribunda” e na introdução de elementos como campos de força, armas brancas dotadas de energia mística, arcologias (grandes construções contendo ecossistemas fechados) e outros. Mas a obra de Hodgson inclui um aspecto menos lembrado, mesmo nos países anglófonos, e que revela o seu pioneirismo também de uma outra maneira: ele foi o criador de uma das primeiras “mitologias inventadas”.

1 Introdução

Todos que somos fãs de literatura de horror já ouvimos falar do “Mythos de Cthulhu” — essa extraordinária criação de Howard Phillips Lovecraft, mas você já ouviu falar do Manuscrito de Sigsand e de sua mitologia?

A maioria dos leitores brasileiros provavelmente só conhece de Hodgson o seu romance “A Casa no Limiar” e agora alguns privilegiados conhecerão “A Terra da Noite”. A mitologia do referido Manuscrito é que dá consistência ao universo fantástico de ambos os romances — e também de uma série de contos escritos pelo autor, além de pelo menos mais um romance, “Os Piratas Fantasma”. Portanto, conhecer a mitologia de Sigsand é importante para compreender as obras de Hodgson, preferivelmente depois de as ter lido.

Acredito que esse artigo não chegará a ser prejudicial a ponto de eu ter que incluir alerta para spoilers, mesmo assim eu recomendo que você não tome notas excessivamente cuidadosas dessas linhas quando for ler uma obra de Hodgson.

2 O Manuscrito na Obra de Hodgson

O manuscrito é citado várias vezes por Thomas Carnacki, o caçador de fantasmas, um personagem de Hodgson que aparece nos contos O Portal Para o Monstro, A Casa Entre os Lauréis, O Quarto que Assobiava, O Cavalo Invisível, O Buscador na Casa do Fim, A Coisa Invisível, O Porco, A Descoberta e O Assombrado ’Jarvee’.

A única das histórias de Carnacki em que o manuscrito não é citado, nem seu conteúdo, é A Descoberta, que é uma história sobre falsificação, não sobre fantasmas. Todas as histórias de Carnacki, exceto esta, se relacionam com a mitologia de Sigsand e oferecem elementos para compreender Os Piratas Fantasma, A Casa no Limiar e A Terra da Noite.

3 Origem e Conteúdo do Manuscrito

O manuscrito de Sigsand foi escrito, poucos anos após a conversão da Noruega ao cristianismo, por anônimo monge que tinha interesses em ocultismo. Poucas cópias foram feitas e pouco se ouviu falar desse manuscrito até que um ocultista inglês (ou escocês) chamado Harold Sigsand (que tinha alguma ancestralidade nórdica, provavelmente dinamarquesa), o encontrou em Trondheim, em 1562 e o trouxe para a Inglaterra, onde o traduziu para o inglês segundo as convenções ortográficas escocesas (daí a estranheza das palavras quando Hodgson as cita).

Existem diferenças importantes entre as versões norueguesa e escocesa, principalmente porque o tradutor deliberadamente censurou — ou não traduziu, por não conseguir compreender, diversas passagens. Por isso a versão norueguesa é mais procurada.

O manuscrito é um grimório — um típico compêndio medieval e renascentista de ciência oculta, que reunia aspectos teóricos e práticos. Sua principal divergência dos tradicionais é não ser de nenhuma maneira relacionado à Cabala ou mencionar quaisquer entidades cristãs ou judaicas, mesmo tendo sido escrito por um monge católico.

O conteúdo do manuscrito é incerto, mas sabemos, com base nas informações fornecidas por Carnacki que ele conteria, pelo menos:

  1. Uma descrição, mesmo que vaga, do “mundo astral” e suas entidades;
  2. Uma relação dos tipos de ameaças que os seres “astrais” oferecem aos habitantes da terra e suas almas;
  3. Um ritual — o Ritual de Saaamaaa — que oferece proteção e exorcismo contra as forças “exteriores”. Na versão inglesa a última frase do Ritual está ausente. Não se diz exatamente porque, mas há sugestões de que o autor a considerava particularmente horrível, pelas suas implicações teológicas, e também que não estava seguro de seu significado, por não estar em norueguês, mas em um idioma muito antigo. Infelizmente, essa última frase é a mais importante do Ritual e do livro em si, pois é uma “palavra de poder”, que bane ou neutraliza as forças exteriores, sem a necessidade de um ritual complexo.
  4. O Ritual, por sua vez, incluía oito signos (ou sinais), que poderiam ser usados separadamente como proteção “menor” ou exorcismo contra os poderes exteriores, e o Encantamento de Raaaee, que mais nada se fala.

4 Os Elementos Básicos do Mundo Astral

Segundo descrito pelo Manuscrito de Sigsand, o universo seria dividido em “casas”, protegidas por “círculos”, dos quais a alma humana não pode (ou não deve) escapar. Fora desses círculos persiste o “caos primordial” e os “poderes exteriores”, que podem destruir a alma humana.

Não há menções diretas a outros planetas, mas as sugestões quanto às cores da luz necessária para afastar certas entidades sugere que todas as entidades “exteriores” provêm das trevas. É no vermelho e no roxo, cores extremas do espectro solar, que se encontra a “vulnerabilidade” às forças exteriores.

Os Poderes Exteriores estão isolados de nós pelas radiações do sol e da Terra, mas podem penetrar essas proteções (especialmente à noite), em períodos de atividade solar instável ou quando algum tipo de desequilíbrio de forças lhes permite obter ingresso indevido em nosso plano de existência.

5 Espécies de Criaturas Exteriores

Hodgson cita as seguintes categorias de seres que habitam os “círculos exteriores”. Vejamos a seguir uma breve descrição delas:

Manifestações Aeiirii
são um tipo de poltergeist, caracterizando-se pela sua baixa inteligência e baixo potencial nocivo à alma.
Manifestações Saiitii
caractereizam-se pela extrema malignidade, pela sempre presente intenção de destruir a alma e pelo seu poder de vencer várias das medidas mais comuns de proteção.
Espíritos Atormentados
almas corrompidas pelo ódio ou pelo luto, através dos quais Poderes Exteriores obtêm ingresso em nosso plano de realidade.
Espíritos Abortados
almas corrompidas ou rebeldes que se recusaram a encarnar e ficaram presas num limbo entre o mundo espiritual e o mundo físico, enquanto a gravidez relacionada chega ao fim com um feto natimorto. Não se sabe de que maneira essas almas poderiam ser resgatadas de seu sofrimento ou protegidas do risco de serem destruídas.
Haggs
criaturas que governam a encarnação dos espíritos. Não se sabe se são realmente benévolas, malévolas ou neutras. Quando um espírito se recusa a encarnar, tentam levá-lo de volta ao mundo espiritual, ou forçá-los a encarnar em outra criança. Algumas almas particularmente rebeldes podem passar décadas ou séculos fugindo de seu encalço.
O Porco
parece ser uma criatura de imensa malignidade que tem o poder de corromper o espírito humano, despertando nele impulsos animalescos e fazendo o indivíduo aproximar-se da brutalidade. Não se sabe como o Porco obtém acesso à alma de suas vítimas, apenas que ele é a principal ameaça ao equilíbrio do Cosmos, no qual os seres vivos ficam presos em segurança em suas esferas.

6 Pontos em Comum com “A Casa no Limiar”

  1. Os homens suínos que atacam a casa do protagonista parecem ser, na verdade, humanos corrompidos pelo poder do Porco.
  2. A “bolha” dentro da qual vive o espírito da falecida amada é o “círculo de segurança” que permite às almas desencarnadas sobreviver até o fim dos tempos, quando ocorrerá a Reunião dos Amantes.
  3. A sensação de desespero do protagonista, ao contemplar o universo, se relaciona à hostilidade deste contra a vida humana.

7 Pontos em Comum com “A Terra da Noite”

  1. O círculo de proteção em torno do Grande Reduto é uma versão aumentada do círculo elétrico usado por Thomas Carnacki como isolamento contra as Manifestações.
  2. A Destruição do Espírito é algo a que Carnacki alude em várias de suas histórias.
  3. As Forças Exteriores parecem interessadas em alimentar-se do espírito humano, pois Hodgson as descreve como “tubarões famintos” que nadam em torno de um navio que transporta gado.
  4. Nesta obra Hodgson menciona diferentes “planos de existência”, de forma análoga aos “círculos celestiais” nos contos de Carnacki.
  5. Os Poderes do Mal têm semelhanças com as manifestações Saiitii.
  6. Hodgson cita que a humanidade abriu “portais” para os círculos exteriores, permitindo que as entidades de lá tivessem acesso “indevido” à superfície terrestre. Isto evoca certas alusões feitas no conto O Quarto que Assobiava.
  7. Os homens corrompidos pelo Porco e por outras entidades se tornaram os Ab-humanos.
  8. Homens-Porco atacam o herói durante sua viagem pela Terra da Noite.

8 Pontos em Comum entre “A Casa no Limiar” e “A Terra da Noite”

  1. A Casa onde reside o protagonista parece ser uma miniatura da Casa do Silêncio da Terra da Noite.
  2. Ela também é um portal, ou uma barreira posta sobre um portal.
  3. Homens-Porco atacam o herói durante sua viagem pela Terra da Noite.

9 Pontos Comuns a Todas as Obras Citadas

  1. A humanidade está confinada à Terra, pois sair da proteção da radiação solar e do campo magnético expõe o espírito humano à ação dos predadores espirituais.
  2. O sol oferece proteção contra os Poderes Exteriores, por isso estamos seguros dentro do sistema solar e por isso os portais pelos quais ingressam os Poderes Exteriores se abrem, em geral, somente à noite.
  3. Fora dos “Círculos Exteriores” pululam divindades do caos, que dominavam o universo “antes da criação” e que voltarão a dominá-lo no fim dos tempos — isso evoca certas frases de “O Chamado de Cthulhu”.
  4. Esses Poderes são repelidos pela luz, notadamente nas cores violeta e anil, e atraídos, também por ondas eletromagnéticas de baixa frequência, chegando até a luz vermelha.
  5. A alma humana é objeto do desejo dessas entidades e forças.
  6. A alma humana pode se tornar monstruosa pelo efeito do ódio ou da rebeldia contra os desígnios da Natureza.
  7. Houve uma “humanidade antes da humanidade”, que descobriu os Rituais e seres mencionados no Manuscrito.
  8. O manuscrito noruguês foi um texto revelado pelos Poderes do Bem.
  9. O espírito humano é imortal e reencarna através do tempo, para aprender o amor.
  10. A corrupção da alma humana pode levar à Monstruosidade, quando a inteligência humana remanescente passa a ser usada pelos Poderes Exteriores para trazer mal ao mundo, ou à Destruição pura e simples.
  11. A corrupção da alma é pior que a morte, porque faz com que deixemos de ser humanos e nos exclui da “Reunião dos Amantes” no fim dos tempos.

10 Pontos em Comum com H. P. Lovecraft

O universo descortinado pelo Manuscrito de Sigsand, criação de W. H. Hodgson, apresenta vários elementos em comum com o Mythos de Cthulhu, criado por H. P. Lovecraft. Algumas dessas semelhanças parecem apenas superficiais, mas é claro que um gênio como Lovecraft não plagiaria um outro autor, por mais que o admirasse — e a sua admiração por Hodgson nem era tão grande. O que aqui argumento é que Lovecraft pode ter se aproveitado de alguns elementos da obra de Hodgson para criar o seu universo. É difícil definir quais elementos foram tomados de Hodgson e quais foram por ambos tomados do repositório de arquétipos da humanidade, mas, de qualquer forma, eis uma lista das semelhanças que já encontrei:

  1. Existe um livro antigo que delineia a mitologia do universo ficcional (Manuscrito de Sigsand, em Hodgson, e Necronomicon, em Lovecraft).
  2. Esse livro foi escrito por um autor estrangeiro muito antigo (árabe, no caso de Lovecraft, noruguês, no caso de Hodgson).
  3. O autor morreu louco.
  4. O livro foi suprimido pela igreja e só sobreviveu em uma única cópia.
  5. A partir dessa única cópia foi feita uma tradução para uma língua mais acessível, mas ainda assim estrangeira (grego e latim, no caso de Lovecraft, escoto, no caso de Hodgson).
  6. A(s) tradução(ões) feita(s) é(são) defectiva(s), suprimindo trechos “abomináveis” (Lovecraft) ou “ininteligíveis no original” (Hodgson).
  7. Isso ocorreu porque o tradutor tinha domínio insuficiente da língua de origem (Lovecraft) ou porque o original estava danificado (Hodgson).
  8. Esta obra apresenta uma série de criaturas monstruosas e de entidades cósmicas hostis à vida.
  9. Uma dessas criaturas é um ser humanoide animalesco (o carniçal, em Lovecraf, o homem-porco, em Hodgson).
  10. Esse ser humanoide animalesco devora o ser humano (ainda que em Lovecraft o devoramento seja literal e em Hodgson seja metafórico, da alma apenas).
  11. Pelo menos uma parte desta obra reproduz um texto ainda mais antigo, supostamente escrito por civilizações antigas da terra (Lovecraft) ou de origem extraterrena (Hodgson).
  12. Existe um “selo” a partir do qual se pode identificar os cultistas dessas entidades. Em Lovecraft é o ramo de pinheiro, em Hodgson é o pentáculo inscrito em um círculo.
  13. O universo é hostil à humanidade.
  14. A humanidade está confinada à Terra.
  15. O contato com as forças exteriores corrompe o corpo e alma, tornando a vítima um ser “menos que humano”, um “ab-humano” (Hodgson) ou a enlouquece completamente, tornando-a uma pessoa decadente e bestial (Lovecraft).
  16. Existem criaturas originárias do contato sexual entre humanos e seres monstruosos, os “ab-humanos” (Hodgson) e os “deep ones” (Lovecraft).

11 Conclusões

Por tudo que foi acima explicado, a obra de W. H. Hodgson é um elo importante na sequência do desenvolvimento da fantasia e da ficção científica modernas, sendo um dos primeiros exemplares de um horror pós-gótico. Se você é fã desses gêneros literários, conhecer Hodgson é essencial para compreender a origem e o desenvolvimento desses gêneros nas primeiras décadas.

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