Este texto foi escrito nos tempos em que eu ainda não era persona non grata em certos círculos pseudo literários do Orkut, numa época em que ainda havia quem achasse que eu tinha conselhos a dar. Como nunca fui de bancar o padre e nem de fazer análise do sonho alheio, eu costumava usar de bom humor para provocar as reflexões que me interessavam. E de quebra, para justificar que lessem, eu botava de entremeio algum conhecimento extraído de minhas leituras ao longo da vida. […]
Monthly Archives: agosto 2010
O Charuto de Freud
E disse Freud à multidão de seus discípulos: — Não percebeis que o hábito de fumar é uma sublimação? O homem que fuma nada mais faz do que compensar sua libido adulta por uma frustração sofrida durante a fase oral de seu desenvolvimento psíquico! A personalidade do adulto é influenciada pelo que viveu enquanto menino. Um fariseu junguiano infiltrado entre os discípulos o interpelou: — Mestre, o senhor fuma! Sofrestes também uma frustração em vossa fase oral de desenvolvimento? E disse Freud a esse fariseu: […]
Improviso
O poema nasce, às vezes, como uma necessidade dos dedos. O toque deles contra as teclas, o prazer de ver as palavras formarem-se das letras, tornarem-se negras e deitarem-se na página. A frustração de retornar a apagar, o apego apertado de saber que o cursor retorna implacável condeno o erro a não ter havido. E aquele eterno temor de talvez haver algum perigo à espreita que destrua o arquivo, que delete inapelavelmente o esforço despencado em um verso. O poema, às vezes, nasce uma necessidade […]
Não Me Acusem
Não me acusem de saber muito, só porque tenho as mãos lisas. Não é que eu estudei a fundo, é que eu tenho tido outra vida. Porém não pensem que ignoro tudo que um homem deve. Minha vida inteira eu estudo, para algo certamente serve. Uns saem de casa, certos do saber e acham modos de moldar o mundo ao que Deus lhes disse antes. Eu saí ignorante e andei entre abismos e vazios. Quando cheguei aqui me estranharam. Não porque ensinasse, mas porque sonhava. […]
Confissões de um Sonhador
Sou um dos sonhadores derradeiros, talvez o último a fazer sentido, embora seja o que menos me interesse e o que tem menos horas ou motivos. Tenho tentado dormir pouco, mas as imagens me alcançam acordado: lembranças de lugares a que não fui, pessoas que nunca conheci. Sou do tipo pior dos sonhadores, os que dedicam seu sonhar unicamente a espécies de sonhos que sempre fenecem diante do dia claro, a espécies que só sobrevivem no silêncio da cama e nem são perfeitamente transpostas ao […]
A Noite com Johnny Walker
Uma das noites que lembro com mais carinho é uma noite perdida no tempo, entre 1990 ou pouco depois, em que houve uma noite de música no teatro do Colégio, sob o pretexto de comemorar o Halloween — essa absurda tradição anglo-saxônica que nosso servilismo nos está levando a adotar. Pouco lembro do que aconteceu naquela noite, exceto que tocaram muito da boa estirpe de uma outra absurda tradição anglo-saxônica que nem o meu pretenso nacionalismo pôde evitar que eu adotasse — o rock’n’roll. Depois […]
O Almoço de Um Solteiro
Cheguei em casa sentindo-me esquisito hoje e preciso ouvir uma canção bem triste, para arruinar meus nervos e me pôr deitado tragicamente em minha cama a lamentar minha sorte errante e as trevas que se impõem contra mim. Diante do fogão ainda está a poça de gordura que entornei ao preparar o meu almoço de solteiro. Dentro do banheiro a mecha de pêlos que se acumula no ralo de plástico, denunciando que há dias que não o limpo. As paredes acumulam mofo e teias de […]
A Última Noite do Velho Poeta
Vou andando sozinho pela escuridão da noite. Volto para casa com os ouvidos amortecidos e com amargura na boca pela décima vez no mês numa noite morna de outubro ou novembro. Subitamente eu me dou conta de estar imerso num silêncio sibilante e imenso que apenas raros carros cortavam. Com passos duros e pernas doloridas, cruzo a Ponte Nova e subo em direção à praça, onde já quase não há ninguém agora, salvo três fregueses de uma lanchonete comendo cachorros quentes e um bêbado gritando […]
Ode ao Palhaço
Um homem extremamente infeliz não consegue nunca crer na profundidade do abismo. A infelicidade necessariamente induz ignorância: somente esquecendo um pouco é que se pode tolerar a pressão das lágrimas que a alma exige, mas que os olhos não querem dar. Melancolia é diferente, há uma tristeza pouco aparente entre não ser alegre e não ser feliz. Pouca gente sabe, mas existem infelicidades muito alegres. O homem vivendo no extremo da felicidade aprende a fingir: somente quem finge consegue sobreviver ao espelho quando ele é […]
O Flautista
Amaralina tinha sido uma cidadezinha qualquer, com casas entre bananeiras, mulheres entre laranjeiras, pomares e amores para quem quer que soubesse vivê-los. Seguia sua vida besta bem devagar, entre montanhas bem altas, rios suficientemente traiçoeiros e solo providencialmente pobre de qualquer coisa que o bicho-homem pudesse querer arrancar à força de máquinas e dor. A gente de lá era arredia e desconfiada de estranhos. Colonos tricentenários, muito pouco acostumados a quem não tivesse o falar líquido que eles tinham aprendido com os índios e os […]