Goiabas, Cédulas e Pães

Quando terminei de contar as notas eu já estava com vontade de chorar. Faltavam dois mil e quinhentos no caixa e já estava atolado até o peito em dívidas. Contei, recontei, suspirei e, por fim, registrei penosamente a diferença no boletim de caixa, sacramentado pela rubrica rabiscada do supervisor. Com aquilo a minha vida de caixa acabava: até por uma questão de humanidade me “poupariam” de trabalhar mais no setor, o que significaria uma lamentável queda de quase quarenta por cento no contracheque. Algo lamentável, […]

Novos Céus, Nova Terra

Jesus desceu de seu trono na cidade de Jerusalém, a Nova Jerusalém, noiva de Deus, calçou as suas antigas sandálias de pescador galileu e saiu pelas ruas pavimentadas de jaspe e ônix, ocultando sua glória em um manto de humildade. Por toda a cidade reinava um estranho clima de eterna festa, e todos os seus cidadãos iam vestidos à mesma maneira, com idênticos cortes de cabelo. Todos levavam nos seus rostos uniformizados sorrisos muito limpos, de dentes muito alvos. Não havia nenhuma imundície no chão […]

Jó, o Justo

Jó era um homem justo. Na velha terra de Uz não havia ninguém tão querido e nem tão invejado. Era rico, mas a riqueza não o havia estragado, em vez disso, fazia dela um instrumento para ajudar o próximo — e era justamente por isso que o tinham em tão alto apreço. Tinha sete filhos e três filhas, de sua única e amada mulher. Todos já casados e com as respectivas famílias bem encaminhadas. Viver entre os filhos e netos, isso era o que tornava […]

Mortos Não Dão Unfollow

Fila de banco. Detesto, como muita gente. E como todo mundo tenho que ir. Aliás, eu devia agradecer por haver fila de banco no mundo: ninguém sobreviveria na minha profissão sem poder relaxar durante uma hora aguardando o atendimento. Antigamente era ruim, hoje tem até banquinho acolchoado para a gente sentar. Daí eu posso apenas ligar o som no meu telefone e ficar ouvindo alguma coisa dentro da minha cabeça, me injetando ritmo enquanto os caixas matraqueiam com os dedos nos teclados baratos. Fila de […]

Uma Tarde no Hospital

Amanheci com náuseas. Não é infrequente que isso aconteça comigo: mesmo depois de ter removida a vesícula eu ainda passo por esses perrengues ocasionais. Especialmente depois de comer chocolate, ou frituras. Mas quem disse que eu vou deixar de comer um belo pastel de queijo só por causa de um fígado? Pois é, rendi-me à gula e amanheci mareado como um marujo de primeira viagem. Só não vomitei. Talvez tenha sido o meu azar: os males materiais, tanto quanto os espirituais, nos deixam de atormentar […]

Romance Frustrado

Não estou conseguindo dormir. Deve ser sexta ou sétima vez só nesse mês. Minha mãe diz que passo tempo demais correndo solto por aí, vendo coisas que não devia e conversando com espíritos-de-porco. Se eu fosse viver de acordo com a vontade dela, ficaria trancado no porão mais fundo, sem uma vez sequer sair para ver a lua. Porém eu não sou um bicho medroso, gosto do frio da noite, do cheiro do ar limpo, do calor das pessoas. Quando não consigo dormir, como hoje, […]

O Meu Melhor Amigo

Um conto pessimista escrito em 2003, em homenagem a um melhor amigo real, que não quebrou um braço, mas disse algumas das coisas que o personagem expressa. O meu melhor amigo voltou das férias ontem com um braço quebrado.‭ ‬Ninguém ainda parece haver notado nada de estranho nisso, ‬como se férias normalmente quebrassem ossos.‭ ‬Mas eu não me contenho de perguntar por que motivo alguém voltaria do litoral com um membro na tipóia.‭ ‬Nada porém que me leve a romper o silêncio que ele,‭ ‬por […]

Caça às Bruxas

“Severo Snape” (nome fictício) era proprietário de uma empresa que ia razoavelmente bem. Era, no entanto, dotado de um ego maior do que sua grandeza e de uma insegurança que lhe obrigava a reinar sozinho. Por isso tratava de aproveitar-se do poder de todas as formas, submetendo seus empregados a um regime de intimidação e represálias, cuja principal finalidade era impedir que algum deles se destacasse mais que o proprietário. Era também amante de três funcionárias (e supostamente de um funcionário também). Seus relacionamentos se […]

Beijo Frio

Estava escuro ainda quando Manoel acordou. A cerração ainda recobria as encostas da serra e as estrelas estavam sumidas no meio de tanta umidade no céu. Mas tinha ficado difícil continuar dormindo, e ele não sabia porque. Dentro da barraca o frio não entrava tanto, o saco de dormir isolava bem a umidade, mas de alguma forma ele acordou e foi se sentar, ainda enrolado nos agasalhos que catou da mochila. Acendeu o fogareiro e começou a esquentar água para preparar um café solúvel. Reparou […]

“Garoto” no Quilômetro 101

Não houve julgamento formal. Ficou semanas preso, comendo do péssimo pão e da pior sopa. Bateram-lhe um pouco, mas não excessivamente. Um dia, por fim, puseram-no dentro de uma viatura no fim da madrugada, depois de lhe terem dado uma última sova, e o levaram por uma estrada de terra, solto e aos solavancos dentro do porta malas. A princípio parecera que seria morto em alguma clareira de floresta à beira da estrada, mas não foi o que aconteceu. O carro parou em um cruzamento […]