Papel, Pedra, Tesoura

Pedra quebra tesoura que corta o papel que embrulha a pedra. É sutil que a força bruta da pedra não seja quebrada nem cortada, mas apenas embrulhada. O papel é uma entidade poderosa, creiam-me. O papel — que pode ser uma folha de ofício, um pedaço de papel de pão ou a desafiadora e ilusória página eletrônica de um blogue — é a verdadeira nêmesis de quem escreve. Talvez lhes cause algum espanto que o papel seja inimigo do autor, que tanto depende dele para […]

Inocência Assassina

Jamais compreendi a origem das histórias de fantasmas, embora tenha sempre entendido a vontade, quase necessidade, que o ser humano tem de encontrar no mundo algo que vá além do concreto e do absurdo de nossas vidas uniformizadas. Por ódio à rotina é que tentamos beirar a transcendência, tentamos atingir o “algo mais”, romper o cimento cinza que recobre o jardim de inverno e encontrar terra úmida, cheia de vida, ali sepulta. Mas daí a crer em formas espectrais que vagam pelas noites, sem destino […]

Pastoral aos Descrentes no Amor

Tudo bem, agora que a paixão esfarrapou e o perdão nos violou. Agora que temos a paz com as mentiras queridas. Se o amargo de antes não vem à tua boca, e nenhuma secura sobe de teu ventre vazio com acusações fatais. Agora que montamos com sobras e refugos de sentimentos falidos esse teatro de sombras. Compraram-te na quinta oferta que lhe fizeram e achaste meritório ter resistido devidamente às quatro primeiras. Agora estás vendida e satisfeita com o preço, ou pelo menos precisa crer […]

Multiplicai-vos e Crescei

Nada saiu como planejado, e Selena engravidou da primeira vez que ficou com Marcelo. Ele teria entrado em pânico se compreendesse o que estava por vir, mas não tinha malícia suficiente para perceber. A agitação do Natal o consumia, o clima de festa o distraía de tudo e logo viria o Ano Novo, com suas novas prioridades, que o afastariam de mais coisas. Afinal, precisava escapar de todas as armadilhas de fase que a vida nos impõe, até o chefão final. Selena não notou tampouco, […]

Uma Noite em Malnéant

Original de Clark Ashton-Smith. Traduzido a partir da versão online em Eldritch Dark. Minha peregrinação pela cidade de Malnéant ocorreu durante um período de minha vida não menos obscuro e dúbio que a cidade mesma e as regiões nebulosas em que se localiza. Não tenho recordação precisa de sua situação, nem posso lembrar exatamente quando e como cheguei a visitá-la. Mas eu tinha ouvido falar vagamente que tal lugar estava situado ao longo de meu caminho habitual, e quando eu cheguei àquele rio envolto em […]

A Crueldade da Internet

Existe algo de muito cruel na Internet: ela nos expõe demais, cedo demais. Quando eu tinha dezesseis anos eu também escrevia e me achava uma reencarnação de Rimbaud (fazia poemas, lógico). A diferença é que minhas pobres páginas datilografadas não iam muito longe. Xerox era caro, mimeógrafo, trabalho. Os jornais da cidade só publicavam as coisas que os caras ricos escreviam, por mais bosta que fosse. Bosta de rico é perfume. Então só me sobravam as gavetas e a esperança. As gavetas foram enchendo e […]

S.P.A.M.

Não quero moedas verdes, já sei qual foi o dia de meu casamento. O de minha morte, não sou Idi Amin para querer saber. Não quero convites para o Novo, não preciso de alongar meu pênis, não me interessa comprar pílulas azuis e nem retirar, sem pagar a dívida, o meu nome do SPC. Eu quero é paz de espírito — ah, se vendessem isso a quilo! Eu quero saber apenas o que todo mundo sabe, mas que EU ainda não sei. Gosto de coisas […]