Uma Foto Infeliz

“Fica proibida, por decisão administrativa, a realização de eventos nas dependências da empresa, a não ser os organizados pela direção” — dizia o cartaz afixado no quadro de avisos da sala de café. Assim, seca e burocrática, era a reação, previsível, das instâncias superiores. Como todos, Geraldo já esperava por algo parecido, mas não deixava de ficar surpreso: — Dizem que os manda-chuvas não ficaram nem um pouco felizes com as imagens da festa de fim de ano que surgiram na net — observou Lula. […]

Seja um Tarado

Quando eu era moleque o terror de todo mundo era o “tarado”, esse estranho e incompreensível ser que habitava os romances de Nélson Rodrigues e Adelaide Carraro. As pessoas usavam a palavra como se fosse um codinome do capeta: “Fulano é um tarado” era uma ofensa pior do que dizer que era comunista. Aliás, os comunistas eram vistos como demônios exatamente por serem tarados (“comem criancinhas”, “amor livre”, etc.). Quando alguém mencionava a palavra, instintivamente punha as mãos para trás, num singelo gesto de proteção. […]

Noã Use Dorgas

Todo mundo deve ter o direito de viver anestesiado da dor de viver, se quiser. Talvez o que falte é mostrar para essa gente que anestesia não cura e que expansão de uma mente vazia apenas aumenta o vácuo que deveria ter sido preenchido com… uma vida. É um tremendo desperdício ocupar com drogas (lícitas ou ilícitas) espaços produtivos, vidas produtivas. Mas também é um tremendo desperdício ocupar com sexo, com amor, com passeios no parque levando o filho pela mão. Muitas são as coisas […]

O Sono do Ateu

Às vezes as pessoas me perguntam como consigo dormir em paz. Não compreendem que eu possa ser feliz sem conviver com o mesmo medo seu. Eu só lhes respondo que sei dormir tranquilamente, na verdade sou eu que não entendo como podem dormir à noite certas pessoas que dizem que encontraram sua paz. Lhes digo que durmo pacificamente porque tenho limpa a consciência de que não fui o culpado por nem um sofrimento infligido propositalmente a um semelhante meu, ainda que possa ter sido causador […]

Na Descida da Serra da Vileta

Era alta noite e eu estava na estrada, ouvindo uma rádio que oscilava e chiava de interferências, enquanto o carro escavava um túnel na escuridão da serra. Meus pés doíam de acelerar há tantas horas, os pneus roncavam na irregularidade do asfalto e eu me sentia profundamente só. De repente uma estação estranha interferiu com a rádio comercial: um som eletrônico longo e agudo irritou-me o suficiente para que levasse a mão ao controle para desligar. Tomei um choque ao fazê-lo e levei a mão […]

A Crueldade da Internet

Existe algo de muito cruel na Internet: ela nos expõe demais, cedo demais. Quando eu tinha dezesseis anos eu também escrevia e me achava uma reencarnação de Rimbaud (fazia poemas, lógico). A diferença é que minhas pobres páginas datilografadas não iam muito longe. Xerox era caro, mimeógrafo, trabalho. Os jornais da cidade só publicavam as coisas que os caras ricos escreviam, por mais bosta que fosse. Bosta de rico é perfume. Então só me sobravam as gavetas e a esperança. As gavetas foram enchendo e […]

S.P.A.M.

Não quero moedas verdes, já sei qual foi o dia de meu casamento. O de minha morte, não sou Idi Amin para querer saber. Não quero convites para o Novo, não preciso de alongar meu pênis, não me interessa comprar pílulas azuis e nem retirar, sem pagar a dívida, o meu nome do SPC. Eu quero é paz de espírito — ah, se vendessem isso a quilo! Eu quero saber apenas o que todo mundo sabe, mas que EU ainda não sei. Gosto de coisas […]

Ghost Writers in the Sky

Judah Stevens ganhou os primeiros trocados escrevendo discursos para políticos e anúncios de xaropadas curativas no jornaleco local. Tinha sido bom em redação na escola e por isso o haviam recomendado a um cargo na Prefeitura, por influência de sua família relativamente influente. Com o tempo tornou-se o braço direito de ambos os partidos. Na calada da noite, como vampiros, homens de terno o procuravam com encomendas ilegais: “queremos discurso contra a privatização da rodovia”. No dia seguinte outros homens, de ternos iguais e voz […]