O Tratamento Homeopático da Solidão

Comecei tendo os primeiros sintomas quando era ainda estudante. Vivia longe da família numa cidade distante e demorei a me enturmar com os meus colegas da faculdade: eles zombavam de meu dialeto, me chamavam de caipira e não compreendiam os meus valores. Isto me afastava das festas das repúblicas e progressivamente me empurrou para longe da vida social: aluguei um apartamento no centro da cidade e tinha um emprego de meia jornada. Posteriormente eu me formei e o meu chefe me ofereceu o emprego em […]

O Tesouro de Sérgio

Eu sou dos que não sentiram nunca pelo Sérgio nenhuma afeição especial. Na verdade eu pouco menos que o desprezava desde que o conheci. Mal lhe dava motivos para chamar-me de amigo. Mas ele me chamava assim, talvez por falta de verdadeiros. Era seu jeito auto-suficiente o que mais me indignava. Não era dado a intimidades, raramente sabia dizer palavras simpáticas e parecia que tinha prazer em desdenhar de tudo. Mas aos poucos foi-se consolidando entre nós um certo tipo de amizade que a convivência […]

O Louco e Seu Deus

O louco dançava à beira do rochedo, desafiando as ondas com seus versos: — Vamos para o céu, ou talvez… pulem, pulem! Andem logo, ele espera. Vocês não tem escolha! Pulem, pulem para os braços do dragão que esconde suas asas e seus dentes na maciez das ondas. Os homens continuavam construindo o barco sobre o gramado. Enquanto as mulheres colhiam frutas e preparavam carne-seca — provisões para a viagem. O louco observava e cantava seus versos desafinados: — Vocês não tem escolha, as velas serão rasgadas […]

Dilemas de Estudante de Literatura

Um estudante de literatura postou o seguinte no Orkut: > Gostaria de ajuda para entender as diferenças entre o realismo e o romantismo-naturalismo. Sempre disposto a dar cola para a nossa juventude que enfrenta os dilemas da graduação sem pré-requisitos, postei o seguinte: > O Romantismo-Naturalismo é uma corrente literária caracterizada por uma abordagem esquizofrênica da vida, ao mesmo tempo valorizando os sentimentos e compreendendo-os como fruto dos instintos humanos. O exemplo típico do romântico naturalista está nas letras do *funk melody* e do sertanejo […]

História de Amor Sem Amor

Augusta estava deitada quieta, nua, olhando para o teto, com o suor do corpo ainda evaporando após o amor, aquela sensação fresca, aquela preguiça, aquele formigamento… — Venha morar comigo. Assim, de repente, foi que Humberto pôs no ar a frase, solta e súbita. Mesmo a princípio se sentindo agredida, ela reagiu com moderação. — Não é assim, Humberto. Não faz ainda nem cinco meses que a gente se conheceu. — Por que não? Cinco meses me bastaram para querer você. Não devemos nada a […]

Uma Foto Infeliz

“Fica proibida, por decisão administrativa, a realização de eventos nas dependências da empresa, a não ser os organizados pela direção” — dizia o cartaz afixado no quadro de avisos da sala de café. Assim, seca e burocrática, era a reação, previsível, das instâncias superiores. Como todos, Geraldo já esperava por algo parecido, mas não deixava de ficar surpreso: — Dizem que os manda-chuvas não ficaram nem um pouco felizes com as imagens da festa de fim de ano que surgiram na net — observou Lula. […]

O Salário da Perseverança

Rosana se sentia enterrada cada vez que penetrava o recinto asséptico e formal daquele imenso edifício de cimento e vidro em que trabalhava. Para entrar ali tinha de se vestir com a formalidade que não se usa mais nem para ir a casamentos: terninho, lenço ao pescoço, maquiagem, cabelo preso, sapatos pretos de salto, joias de prata discretas e óculos sem aro. Depois que entrava e mostrava seu crachá na portaria, deixava de ser a Zaninha do André e passava a ser Dona Rosana Couto, […]

A Pilastra

Fernanda recebia cada bloco de mármore como outro desafio. Havia muitos, mutilados, espalhados pela sua oficina. Com o tempo aprendera a emendar seus erros transformando grandes obras em pequenos objetos. Uma estátua fracassada virava um monte de pequenos ornamentos, utensílios, pesos de papel em formatos variados. Liberta da necessidade de produzir algo grandioso, infundia ao mármore a inocência de cachorrinhos, escaravelhos, palhacinhos. Tais minúsculas manifestações migravam de seus sonhos para suas mãos e se instalavam na pedra como garatujas de uma adolescente em um caderno […]